A Época do Tapetão: sobre a abertura de impeachment contra Fernando Pimentel
Fernando Pimentel, Governador de Minas Gerais. Foto: Agência Brasil
Ainda vai demorar algumas décadas para que possamos avaliar, com um nível aceitável de precisão, as consequências políticas e jurídicas do impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Não faltou, porém, aviso quanto ao risco que a destituição de um governo democraticamente eleito sem um sólido fundamento jurídico poderia representar.
Há quem diga, mesmo ciente da fragilidade da acusação que motivou a interrupção precoce do mandato da presidenta, que o seu impeachment foi legítimo ainda que não estivesse comprovada a prática de crime de responsabilidade. Argumenta-se que “não há golpe” porque o impeachment seguiu todos os trâmites processuais necessários, com ampla oportunidade de defesa, produção de provas e publicidade dos atos processuais, e que “o próprio Supremo Tribunal Federal atestou a legitimidade do impeachment quando reconheceu que ele carece de legitimidade para revisão judicial deste ato administrativo”.
Leia também: Abertura de impeachment de Pimentel revela incômodo do MDB com Dilma
Esse argumento, no entanto, está baseado em uma evidente falácia. O que o Supremo Tribunal Federal decidiu – e vem decidindo ao longo de toda a sua história – é que ele carece de competência para realizar um juízo de mérito sobre a existência do crime de responsabilidade, é dizer, não pode anular um processo de impeachment senão para corrigir um vício procedimental. Sustentar que este seria um argumento em favor da legitimidade do impeachment é simplesmente um erro categorial; é confundir um juízo de mérito com um juízo de competência. Quando o tribunal reconhece que carece de competência para anular um ato administrativo ou um julgamento político, obviamente não está afirmando a legitimidade deste ato, mas apenas que esta matéria já foi decidida em última instância, e não pode ser submetida a qualquer forma de reexame judicial.
O que define um golpe de estado é a deposição de um governo legítimo sem causa jurídica suficiente para tal julgamento político, e não a ausência de um remédio jurídico disponível para reverter esse tipo de decisão.
O risco de um impeachment sem crime de responsabilidade é o risco da instabilidade institucional. É a formação de uma cultura política que substitui o ideal de submissão ao direito e de fidelidade à lei – que constitui o núcleo duro do princípio do “estado de direito” – por um voluntarismo que não respeita os obstáculos que a moralidade e as regras democráticas impõem ao poder decisório das maiorias parlamentares. A regra de ouro de todo sistema democrático consiste na capacidade de aceitar derrotas e desfrutar respeitosamente de vitórias políticas. É preciso saber vencer e perder na democracia. É preciso saber se resignar com a vontade da maioria e aguardar a sua vez, quando vencido em um processo deliberativo. E é preciso, igualmente, não transformar suas vitórias circunstanciais num poder arbitrário; não transformar a mera potência fática de se sobrepor aos direitos de seu adversário num justo título para fazê-lo quando houver certeza de ausência de punição.
O risco do processo de impeachment é o risco de uma constante instabilidade, o risco de surgimento de uma incapacidade de reconhecer derrotas eleitorais e de respeitar os mandatos populares sempre que houver certeza de ausência de anulação pelo Judiciário. É o exercício da política sem responsabilidade política. Não faltam exemplos latinoamericanos para tal tipo de descontrole democrático. No Equador, por exemplo, durante mais de 10 anos (1996 a 2007) nenhum presidente conseguiu completar o seu mandato, e três presidentes foram destituídos sem qualquer fundamento jurídico ou justificativa moral.
O que observamos agora é novamente a mesma aliança, com o mesmo personagem principal, que entrará para a história como o principal responsável pelo impeachment de Dilma, ao produzir em seu Relatório os fundamentos da farsa jurídica que deu base à decisão do Senado Federal, e ao se beneficiar diretamente com a inviabilização da candidatura de Pimentel. Num contexto em que o governo do Estado de Minas Gerais encabeça um movimento nacional para responsabilizar a União por uma série de apropriações indébitas de recursos estaduais, como as denominadas perdas da “Lei Kandir”, que foram recentemente reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal e já ultrapassam o montante de R$ 150 Bilhões, ou a apropriação de receitas estaduais decorrentes da desvinculação das receitas da DRU, que invadem a competência de impostos estaduais e causaram prejuízos superiores a R$ 20 Bilhões aos cofres estaduais, o PMDB mineiro parece ter recebido uma ordem de cima para repetir a dobradinha PMDB-PSDB e utilizar novamente o artifício do impeachment para inviabilizar uma decisão eleitoral.
O que torna odiosa a prática do impeachment não é apenas a hipocrisia da retórica política e a desfaçatez das falácias que povoam as mentes férteis de juristas venais e autoritários, mas a convicção despudorada de que política não se faz nas urnas, e de que a traição e a deslealdade são um capital político que pode ser legitimamente empregado para se manter no poder. Não se trata apenas de um golpe no estado de direito e na democracia, mas uma desconstituição da própria ideia de que as decisões legislativas devem se submeter ao direito e à democracia. Eis aí uma pequena amostra de quão baixa a disputa pelo poder consegue chegar.
Thomas Bustamante é Professor de Filosofia do Direito da UFMG.
0 Comentários
Faça um comentário construtivo para esse documento.