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17 de Junho de 2024
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    A guerra às drogas também viola corpos

    Publicado por Justificando
    há 8 anos

    Um dos principais fatores que proporcionaram a ampla aceitação da política de drogas globalizada como está hoje foi o fator moral. Interesses econômicos e políticos estratégicos tiveram influência, mas a criminalização de uma conduta tida, há um pouco mais de um século, como natural, não teria se expandido sem o vigor de um proselitismo moral (NADELMANN, 1990) que imperou no cenário internacional.

    O argumento de que determinados tipos de droga, arbitrariamente selecionadas, causavam relaxamento moral, desvios de todo tipo, como promiscuidade, prostituição e até homossexualismo (CAMPBELL, 2000), está na origem da retórica que possibilitou a criminalização dessas substâncias.

    Guerras precisam de argumentos morais, posto que são momentos de licença para o exercício da violência, e a guerra às drogas não seria diferente. A moral que a sustenta, como sói acontecer em todas as guerras, é uma moral masculina, moral estigmatizadora do fraco e legitimadora do forte, que dá preferência ao combate militarizado, favorecendo uma masculinidade hegemônica, “fundo comum que une as culturas de violência presentes em todas as escalas de guerra” (MOURA, 2010, p. 93).

    Paralela à guerra às drogas, na história da humanidade só outra guerra permitiu ao Estado um poder tão abrangente, de entrar nas casas das pessoas, vasculhar seus pertences, suas roupas íntimas, e esse período foi o período de caça às bruxas. Por coincidência, na guerra às bruxas, também se buscavam plantas, substâncias, como indícios de culpa desta ou daquela mulher.

    Como uma espécie de episódio onde se misturam guerra às drogas e caça às bruxas, no início da proibição das drogas, em 1931, houve a prisão de uma mulher no México, Felipa Castillo, curandeira, com 1,64 quilos de maconha, planta usada nas suas porções contra artrites e reumatismo. Mulher que nunca entendeu porque estava sendo presa fazendo o que sempre tinha feito na vida, caso em que inclusive seus vizinhos fizeram um abaixo-assinado confirmando a sua atividade terapêutica (CAREY, 2004).

    Como no período de caça às bruxas, em que também houve bruxos, na guerra às drogas também são encarcerados homens e mulheres. Mas igualmente como no período da caça às bruxas, na guerra às drogas se pune desproporcionalmente muito mais mulheres. Em relatório do Departamento Penitenciário Nacional, enquanto 63% das mulheres encarceradas estavam presas acusadas de crimes relacionados às drogas tidas como ilícitas, apenas 25% dos homens estavam presos pelos mesmos fatos (2014).

    São as mulheres que mais permanecem em casa, e quando a polícia chega não quer saber se a droga é do filho, do marido ou do irmão, vai preso quem estiver na casa. Há que se cumprir metas e as drogas tidas como ilícitas têm esse efeito, de contaminar, de macular a imagem de quem se aproxima delas. Em pesquisa com presas na Cidade de Juiz de Fora, sete de dez presas estudadas foram detidas quando estavam em casa (HELPES, 2014).

    E é na liberdade permitida à polícia no âmbito da guerra às drogas que acontecem abusos dos mais diversos. Sempre se ouviu falar das violências sexuais, dos estupros mesmo, praticados por soldados em situações de guerra, às vezes racionalizados como uma forma de humilhar o inimigo. O mesmo padrão acontece na guerra às drogas.

    Os casos que vêm à superfície são raros, mas, aos poucos, têm se acumulado. Johann HARI (2015), ao fazer a biografia de um traficante, narra o estupro de sua mãe, usuária, por parte de policiais. Em estudo no Brasil, Simone ASSIS e Patrícia CONSTANTINO trazem o depoimento de uma mulher presa sobre a violência sofrida e sobre o quanto muitas outras violências ficam camufladas: “tenho várias amigas que transaram com os vermes para ter liberdade” (2001, p. 152).

    A guerra às drogas violenta as mulheres de muitas outras formas. É ela, a guerra às drogas, que proporcionou a invenção da revista íntima, conhecida como revista vexatória, em presas e suas familiares. Nenhum outro tipo penal, que não o da posse de drogas, poderia dar esse poder ao Estado, o de mandar uma pessoa tirar a roupa, agachar, tossir ou pular, na frente de um funcionário púbico, com o fim neurótico de se achar algum envelope ou trouxinha em suas partes íntimas.

    Pior, além de a guerra às drogas propiciar esse acesso ao corpo, facilitando obviamente o abuso – isso quando a própria revista vexatória não pode ser considerada um estupro – é a guerra às drogas, em muitos aspectos, que também promove os altos índices de estupros não apurados ou não comunicados.

    Embora os números possam ser muito mais expressivos, principalmente no Brasil, onde pesquisas desse tipo não angariam muito interesse, apenas 32% dos estupros praticados é informado à polícia, sendo que destes, somente 2% leva a alguma condenação.

    Por certo, o ambiente eminentemente masculino da delegacia de polícia, bem como a violência que o envolve naturalmente, já são elementos a desestimular a notícia de um estupro. Mas o que mais causa essa evasão de notificações, não só do estupro como de qualquer outro crime, é mais uma vez a guerra às drogas.

    Estupros, assaltos, roubos e até furtos dão muito mais trabalho de investigar do que ficar parado na esquina ou em uma blitz qualquer esperando o primeiro desavisado passar com alguma quantidade de droga. A guerra às drogas tem sido a grande responsável pela cultura do B.O. A pessoa é sequestrada, assaltada ou estuprada, vai à delegacia de polícia, sai com um B.O., e nunca mais é chamada sequer para ser ouvida.

    Não por acaso, dentre as instituições existentes, as delegacias de polícia comuns são os locais menos procurados pelas mulheres vítimas de qualquer abuso sexual (SCHARAIBER, et al., 2005).

    Nesse contexto de desestímulo e medo fica mesmo difícil comunicar um estupro. A guerra às drogas, enquanto agrava o descrédito de nossas instituições, já tão debilitadas por falta de legitimidade, é fator de aumento da violência no meio social e de desvirtuamento da relação da polícia com a sociedade.

    Com relação aos estupros praticados por traficantes, note-se que, se não houvesse proibição das drogas, traficantes não existiriam, nem a violência que envolve o comércio de drogas. Donos de bar, comerciantes da droga que mais causa violência, não se reúnem para estuprar ninguém.

    A guerra às drogas mata inocentes, viola corpos, desrespeita intimidades, dentro de um padrão militarizado que reforça o padrão masculino estereotipado, ao mesmo tempo em que é reforçada por ele. Policiais e comerciantes se militarizam, a guerra é posta na rua, estupros e mortes são casualidades, acidentes de uma guerra estúpida.

    Luís Carlos Valois é Juiz de direito, mestre e doutor em direito penal e criminologia pela Universidade de São Paulo – USP, membro da Associação de Juízes para Democracia – AJD e porta-voz da Law Enforcement Against Prohibition (Agentes da Lei contra a Proibição)– LEAP.
    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSIS, Simone Gonçalves de; CONSTANTINO, Patrícia. Filhas do mundo: infração juvenil feminina no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2001. BRASIL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN. Brasília-DF: Departamento Penitenciário Nacional - MJ, 2014. CAMPBELL, Nancy D. Using women: gender, drug policy, and social justice. New York, EUA: Routledge, 2000. CAREY, Eliane. Women drug traffickers: mules, bosses, & organized crime. Novo México, EUA: University of New Mexico Press, 2014. HARI, Johann. Chasing the scream: the first and last days of the war on drugs. New York, EUA: Bloomsbury, 2015. HELPES, Sintia Soares. Vidas em jogo: um estudo sobre mulheres envolvidas com o tráfico de drogas. São Paulo: IBCCRIM, 2014 NADELMANN, Ethan A. Global Prohibition Regimes: The Evolution of Norms in International Society. In: International Organization, Vol. 44, No. 4 (Autumn, 1990). Massachusetts, EUA: The MIT Press, pp. 479-526. MOURA, Tatiana. Novíssimas guerras: espaços, identidades e espirais da violência armada. Coimbra: Almedina, 2010. SCHAIBER, Lilia Blima, et al. Violência dói e não é direito: a violência contra a mulher, a saúde e os direitos humanos. São Paulo: Editora Unesp, 2005.
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