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3 de Maio de 2024
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    A intolerância ao intolerável como virtude democrática

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Situações variadas da política brasileira atual e as repercussões de diversos fenômenos na esfera pública têm destacado a urgência de se discutir a virtude democrática da tolerância na mediação de diversas facetas da convivência social.

    Urgente, sobretudo, na interdição de práticas e políticas arbitrárias, fascistas e totalitárias que concorrem à derrocada de direitos sociais e à criminalização da política e dos movimentos sociais, além do esvanecimento substancial das instituições democráticas e suas funções de proteção e promoção de direitos e garantias fundamentais “para todos” (sem quaisquer discriminações).

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    Pode-se diagnosticar que muito da cultura do ódio e da intolerância decorre de desajustes interpretativos, perversos ou não, dos planos em que seria oportuno ser tolerante e, por outro lado, daqueles em que seria um imperativo moral e democrático justamente ser intolerante.

    O equívoco de uma ideia geral e irrestrita de obrigação de tolerância, laxismo e leviandade, assim como um excesso de violências nas convicções, parecem marcar o desdobramento de práticas alarmantes de retrocessos em termos da realização de preceitos mínimos de liberdade e solidariedade e, igualmente, de uma manutenção mínima de indicativos de democracia.

    Exemplos breves: este candidato “diz o que pensa”, mas pouco importa o que diz ou o que propõe, ou, ainda, se esta propositura carrega em si uma violação substancial de um direito alteritário ou inviabiliza uma continuidade democrática. Este julgador condena porque tem poder para tanto, pouco importando sua contrariedade ao processo como técnica democrática e aos direitos humanos que limitam a atuação estatal.

    Portanto, a partir de uma aparente facilidade da linguagem e do conceito, se dissemina uma condescendência em momentos equivocados, em conjunto a uma intolerância desnecessária e indevida em outros – ataca-se insistentemente um ou outro gosto musical, ou modo de vida, que tranquilamente se poderiam tolerar em um cenário verdadeiramente cívico.

    Um recurso importante, nesse sentido, pode ser a discussão da tolerância a partir do filósofo francês Paul Ricouer[i] (1913-2005), posta sua central presença na contemporânea teoria hermenêutica filosófica, assim como pela atuação na analítica crítica do mundo pós Segunda-Guerra.

    Para Ricoeur, “tolerância”evoca o sentido de uma abstenção de interdição ou exigência (o que pressupõe uma autoridade para agir) e da liberdade decorrente desta abstenção. E, ainda, da admissão individual da diferença do outro acerca do pensar e do agir distinto daqueles que pessoalmente se adota.

    O filósofo, assim, insere no jogo “tolerância-intolerância” a figura do “intolerável” como discrímen que possibilita o discernimento e, assim, a construção democrática – daí não existir, para o autor, propriamente um paradoxo da tolerância, porque o intolerável está para além do não gostar ou não suportar: ele inviabiliza as liberdades. Quando se está diante do intolerável, a possibilidade democrática é aniquilada e a tolerância impraticável.

    É a partir desta distinção, que permite situar a ambiguidade, que se pode localizar a fronteira da “rejeição” ou da “abjeção” constantes da afirmação de que algo é “intolerável”, considerando-se que é da oposição que se abre o problema da tolerância. A questão passa a ser, assim, a motivação da indignação de acordo com os planos de sua ocorrência e os seus efeitos no espaço político.

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    Ricoeur destaca a confusão como ameaça no sentido de que as conclusões acerca da tolerância são diferentes em diferentes planos de análise: os limites no direito constitucional são os mesmos das tradições culturais e das mentalidades, ou da reflexão teológica? É nesta questão de gêneros que o filósofo desenvolve o problema. Deste modo, os jogos “tolerância” e “intolerância”, bem como o ponto intolerável, funcionam com diferentes dinâmicas nos planos institucional, cultural e religioso.

    No plano institucional, da relação Estado e Igreja, estar-se-ia, em historicidade, diante do Estado Laico e do Estado de Direito, associado à ideia de justiça e dependente, portanto, das noções de liberdades públicas, igualdade legal, proteção e promoção de minorias.

    O intolerável se apresentaria naquele momento em que justiça e verdade revelada são confundidas, ou seja, em que o poder político insiste em “[…] dizer a verdade em vez de se limitar a exercer a justiça, que é a suprema ascese do poder” (p. 190).

    Por sua vez, no plano cultural, das mentalidades e mutações, novamente segundo um referencial leigo, a marca da tolerância seria o consenso conflitual, com o reconhecimento do direito de existência do outro e com a vontade de convivialidade cultural na diversidade, o que dependeria de atitudes fundamentais diante do outro, sobretudo, a de não imposição das próprias convicções e o respeito pela liberdade do outro quando da adesão originária às crenças dele.

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    O intolerável, então,seria o que escapa do consenso conflitual do viver-comum, aquilo que expressa o irrespeitável, ou seja, “[…] a recusa de presumir a liberdade de adesão na crença adversa” (p. 186), delimitando-se, pois, o “abjeto”, aquilo que exclui a possibilidade do respeito mútuo.

    No plano teológico, por fim, Ricouer busca identificar a unidade plural das interpretações religiosas, indicando a justificação da tolerância justamente a partir da noção de que as comunidades de fé são comunidades de escuta e de interpretação, que reiteradamente operam compreensões finitas em horizontes infinitos de sentido.

    Disto, seria possível a cooperação e a emulação em proximidades, que não se reduzem em fusão e confusão, segundo uma hospitalidade eucarística. Trata-se, assim, do reconhecimento mútuo na diversidade de compromissos possíveis. O intolerável, neste contexto da palavra e do compromisso, seria unicamente o intolerante.

    Ao mesmo tempo, no plano cultural, diversas são as manifestações da violência das convicções, acompanhadas das práticas abjetas de exclusão de qualquer viabilidade de respeito mútuo, seguidas da própria aniquilação do outro (ainda que disfarçada e simbólica) e das possibilidades de sua existência diferente, sobretudo, pela subtração de direitos.

    Ao mesmo tempo, é marcante a intolerância religiosa, em que se atacam as bases da convivência na diversidade dos compromissos que a liberdade religiosa permite assumir.

    O escopo valorativo do Direito Internacional dos Direitos Humanos, em especial em sua configuração pós Segunda Guerra Mundial, representa um excelente indicativo (deontológico) dos rumos da condução da vida política e coletiva, das políticas públicas e dos caminhos de interpretação e de valoração cívica – reitera-se, incluindo-se os princípios informativos de decisão bioética.

    Desperdiçam-se instituições, tempo, dinheiro público, possibilidades de vida, tranquilidade social e efetividade jurídica, bem como se capturam e consomem subjetividades, a partir de uma confusão, intencional ou não, dos espaços, figuras e finalidades legítimas de atuação.

    A construção de uma cultura democrática – se esta ainda importar em um futuro cada vez mais distópico – encontra na virtude da tolerância um dos seus pilares intransplantáveis, ao compasso de a fixação consciente de práticas da intolerância necessária uma das mais caras atitudes de resistência e de reconstrução democráticas e republicanas fundamentais.

    Eliseu Raphael Venturi, doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

    [i] RICOEUR, Paul. Tolerância, intolerância, intolerável (1990). In: ______. Leituras 1: em torno ao político. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1995.p. 174-186.

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