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30 de Abril de 2024
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    A lei e a anorexia - Eudes Quintino de Oliveira Júnior

    há 14 anos

    Como citar este artigo: JUNIOR, Eudes Quintino de Oliveira. A lei e a anorexia. Disponível em http:// www.lfg.com.br - 01 de março de 2010.

    A LEI E A ANOREXIA

    Há um consenso na literatura mundial que a mulher mais bonita é Ana Karenina, personagem do autor russo Leon Tostoi. De tão formosa, fazia as pessoas perderem a fala. Para o nosso lado, com o suor e a cor indígena, José de Alencar pintou Iracema como a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que as asas da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira. Bonita e misteriosa, Capitu foi descrita por Machado de Assis com olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Beleza é fundamental, cantava Vinicius de Morais, com as escusas devidas às mulheres não portadoras do predicado. Nenhuma delas, no entanto, somando-se a elas a Mona Lisa de Leonardo da Vinci, apresentava-se magra, ou melhor, magérrima, como a exigência atual.

    O padrão de beleza evolui com os critérios da própria humanidade. Cada época adota seu modelo. Atualmente, pelas exigências da indústria da moda, as modelos devem apresentar um corpo cada vez mais magro. Para tanto, sacrificam-se e muitas vezes rejeitam alimentos ou fingem saboreá-los, ingressando no transtorno psicológico da anorexia. É a beleza presente, já fugidia no corpo esquálido.

    Para evitar que os adolescentes se entusiasmem com o padrão imposto, tramita pelo Senado Federal um projeto de lei do Senador Gerson Camata (PMDB-ES), que proíbe o desfile e propaganda em anúncios de modelos muito magras. O conceito de magra terá como base o índice de massa corporal (IMC) ideal a 18 kg., mínimo considerado saudável pela Organização Mundial de Saúde. Para se chegar ao peso permitido, basta pegar a altura e multiplicar por ela mesma. Em seguida, divida o peso pelo resultado da primeira operação. Alguns médicos e estilistas manifestaram-se contrariamente à proposta legislativa e argumentaram que Gisele Bündchen estaria proibida de trabalhar e se apresentar no Brasil, pois seu IMC é um pouco maior do que 17, antes de sua gravidez.

    O projeto carrega virtude, mas também atrela uma inconstitucionalidade. A saúde pública, principalmente a da juventude, deve nortear a ação governamental. A preocupação com a aparência física é louvável, mas a modelagem do corpo para se adaptar à ditadura da moda, com o jejum obrigatório e a consequente utilização de laxantes, diuréticos e medicamentos para emagrecimento, transformam jovens saudáveis em belezas esqueléticas, atingindo a magreza em seu nível excessivo e prejudicial à saúde. Somam-se já no país vários casos de morte por anorexia. A imagem do corpo, a intromissão estatal nesta intimidade particular, são situações que justificam um posicionamento governamental, em ação preventiva, impedindo a jovem de agredir o próprio corpo e provocar sua morte, numa visão holocáustica, como árvore seca no coração de um deserto, descrito pelo Nobel da Paz Elie Wiesel. O padrão de beleza desloca-se, portanto, da exigência imposta comercialmente pelas agências da moda e meios de comunicação e ingressa no limite ético determinado pelo bem estar físico e mental, nos parâmetros de respeito à dignidade humana, um dos fundamentos de nossa Constituição. Por incrível que pareça, o Estado passa a ditar o conceito de beleza. Pelo menos tenta encontrar um padrão que vai ao encontro da saúde e do bem-estar físico do cidadão.

    Por outro lado, apontando agora a ilegalidade, a proposta atinge o princípio constitucional da isonomia, pois considera desiguais pessoas portadoras de IMC abaixo do referendado. O óbice afeta a garantia de exercer o trabalho, que será proibitivo para tais pessoas e tal entrave se contrapõe à igualdade social, que abrange a igualdade de ocasiões e oportunidades. A respeito, adverte BOBBIO: O processo de justiça é um processo ora de diversificação do diferente, ora de unificação do idêntico. A igualdade entre todos os seres humanos em relação aos direitos fundamentais é o resultado de um processo de gradual eliminação de discriminações, e portanto de unificação daquilo que ia sendo reconhecido como idêntico: uma natureza comum do homem acima de qualquer diferença de sexo, raça, religião, etc.[ 1 ].

    A outra diferença que se evidencia ictu oculi é que a lei pretende se preocupar somente com o extremamente magro, desprezando o excessivamente gordo. Os dois extremos acarretam perigos e danos para a saúde da população, principalmente a obesidade que exige a intervenção médica pela cirurgia bariátrica, conhecida como redutora de estômago. De acordo com a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, o Brasil conta com cerca de 70 milhões de indivíduos acima do peso. Destes, 18 milhões estão na categoria dos obesos.

    O Estado, desta forma, vê-se obrigado a cuidar das duas categorias. Se acudir somente uma das pontas, a outra ficará sem a tutela necessária. Além do que, antes de qualquer intervenção, seria aconselhável preventivamente a realização de programas que visem proporcionar uma orientação alimentar correta à sociedade para que não incentive pessoas a cultivar um corpo magérrimo e nem mesmo obeso com complexidades futuras.

    Na realidade, exige-se a mobilização e penalização às agências que estabelecem critérios que contrariam regras mínimas de saúde da coletividade. A Câmara dos Deputados da França aprovou recentemente projeto de lei que pune os responsáveis por sítios de propaganda que apóiam a anorexia, incitando o excesso de magreza entre os jovens. A estética não pode sobrepujar a ética. O belo não pode contrariar o saudável. A natureza é a responsável pela criação da beleza. J. Goethe, escritor alemão, que se dedicou a escrever poesias e peças de teatro, enfatizava que o belo é a manifestação de leis secretas da natureza, que, se não se revelassem a nós por meio do belo, permaneceriam eternamente ocultas. A poesia e a música suplicam pelo belo e não podem ficar sem suas musas inspiradoras.

    Notas de Rodapé :

    [1]Bobbio, Norberto. O terceiro ausente. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. Barueri, SP, 2009, p. 93.

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