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17 de Junho de 2024
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    A palavra impeachment

    Publicado por Espaço Vital
    há 8 anos


    Por Gustavo Cardoso, advogado (OAB-RS nº 34.761)

    Finalmente estamos chegando ao clímax (não à conclusão) de um processo que se arrasta há um ano e meio: o do afastamento de Dilma Rousseff da Presidência da República. Nos próximos dias saberemos se a Câmara dos Deputados admitirá a instauração de processo, pelo Senado Federal, para julgá-la por crime de responsabilidade.

    Cada um tem sua opinião sobre o que a Câmara deveria deliberar. Aqui não me ocupo do processo político, mas da melhor palavra para denominar o processo. Deveríamos usar "impeachment", como faz a maioria da imprensa; "impedimento", como preferem aqueles que se incomodam com os estrangeirismos; ou outro nome qualquer?

    Apesar de sistema legal pertencer à família romano-germânica, foi inevitável que o Direito Constitucional anglo-saxônico nos influenciasse, como aconteceu em boa parte do mundo, já que a Magna Carta inglesa remonta ao Século 13 e que a Constituição dos EUA pode ser considerada a primeira do mundo moderno.

    Foi assim que importamos alguns termos ingleses como ´writ´, que normalmente usamos como sinônimo de "mandado de segurança", apesar de ter acepção mais ampla na língua original; ´due process of law´, traduzido aqui como "devido processo legal"; e o famoso impeachment, que veio preencher uma lacuna.

    De fato, a lei brasileira não usa e nunca usou esta palavra - nem na Constituição, nem na chamada "lei do impeachment". Mas também não usa nenhuma outra pela qual lhe poderíamos substituir. É mais por este motivo e menos por nosso inegável amor pelos anglicismos que incorporamos esta expressão à nossa doutrina jurídica, e, mais recentemente, às nossas conversas de bar.

    Na maior parte da América Espanhola a locução correspondente é ´juicio´ político, mas o legislador brasileiro não teve criatividade para inventar o que lhe valesse, e na verdade sempre teve impeachment em mente, por falta de alternativa. Os tribunais e os estudiosos têm a tomado emprestada desde os primeiros anos da República.

    A Constituição de 1891 já tratava do crime de responsabilidade do Presidente, em termos quase idênticos ao da Carta de 88. E a Lei nº 30/1892 definiu os tais crimes de responsabilidade com o mesmo espírito da lei corrente, a de nº 1079/50. Ainda quando a Lei 30 ainda estava em tramitação, um de seus mentores, o jurista José Higino, futuro ministro da Justiça e membro do Supremo Tribunal, já usava o vocábulo nos debates no Senado.

    Então, podemos dizer que o termo tem tradição em nosso direito. Nem por isso deixa de ser problemático, já que a correspondência com o original não é exata. Na Grã-Bretanha o procedimento é criminal, apesar de conduzido pelo Parlamento. Nos EUA, de cuja legislação realmente extraímos o instituto, impeachment equivale apenas ao indiciamento da autoridade pela Câmara, ao que se segue o processo no Senado, que pode resultar na absolvição do réu ou em sua remoção do cargo.

    Assim é que Bill Clinton foi efetivamente "impeached" pela Câmara, e posteriormente absolvido no ´trial´ do Senado, enquanto aqui diríamos que a Câmara autorizará (ou não) a abertura do processo de impeachment contra Dilma, cabendo ao Senado a decisão final. Note-se outras duas diferenças: nos Estados Unidos a Câmara decreta o impeachment por maioria simples (e não de dois terços, como no Brasil), mas o Presidente não é afastado do cargo para o julgamento no Senado.

    A maior dificuldade com a transposição do conceito de impeachment para o direito brasileiro é que o chamado indiciamento (indictment) é um procedimento típico da família anglo-saxônica, muito mais solene e complicado que os nossos equivalentes.

    E o que dizer da palavra impedimento, que alguns insistem que deve ser preferida, por ser da língua portuguesa? Em minha opinião, você pode utilizá-la, mas é uma escolha pior que impeachment, por duas razões. A primeira é que se trata, de uma óbvia tentativa de traduzir o termo para o português, e assim traz os mesmos problemas de equivalência conceitual.

    Impeachment, na língua inglesa, vem do verbo francês ´empêcher´, que pode ser traduzido como impedir. Porém o estatuto legal do qual estamos tratando só surgiu mesmo na Inglaterra, e não tem, como vimos, quase nenhuma relação com o que nós chamaríamos de "impedimento". Na própria França se fala impeachment, não ocorrendo a ninguém substituir esta palavra pela nativa ´empêchement´.

    Outro motivo para evitar impedimento é que a expressão já é muito empregada no direito brasileiro, com conceitos diferentes. Usa-se, por exemplo, para descrever o fenômeno do juiz impedido de julgar um processo por já ter atuado no mesmo em outra função (digamos, como advogado ou promotor). Pior, a própria Constituição traz outro sentido de impedimento, aplicável especificamente ao Presidente da República.

    Segundo os artigos 79 e 80, em caso de impedimento do Presidente este será substituído no cargo, sucessivamente, pelo Vice e pelos Presidentes da Câmara, do Senado e do STF. Só que "impedimento", aqui, quer dizer a impossibilidade temporária do Chefe de Estado de exercer suas funções (p.ex., por doença grave ou viagem ao exterior).

    O conceito é oposto ao de "vacância", que se aplica ao próprio cargo, significando que foi desocupado em definitivo. O impeachment de um presidente resulta, portanto, na vacância de seu cargo, e não no impedimento do mandatário.

    A propósito, alguns jornalistas e cientistas sociais mal informados têm lido os artigos acima como se o "impedimento" ali previsto fosse o mesmo que impeachment, daí concluírem que a palavra portuguesa é mais técnica, quando na verdade é o contrário que acontece. Isto quando não julgam ter encontrado ali o próprio rito do processo.

    Estas são as minhas razões para preferir impeachment a impedimento. Se você gostar mais da última, tudo bem, mas de qualquer forma eu recomendaria que não usasse o termo "impedir" como sinônimo de "decretar o impedimento". Isto não está dicionarizado, e nem todo substantivo tem um verbo que lhe corresponda.

    Dizer que Dilma está para ser "impedida" é tão errado como dizer que "outorgar uma procuração" é o mesmo que "procurar".

    "Impichar", então, nem se fala...

    Talvez a melhor opção fosse "destituição", como se costuma falar em Portugal. Mas ainda haveria o inconveniente de empregarmos uma palavra comum demais para um instituto que é, por definição, excepcional.

    Se bem que, no Brasil... melhor deixar para lá.


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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/a-palavra-impeachment/324996424

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