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3 de Maio de 2024
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    A prova da vida e as faces da igualdade

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Imagem: Arquivo/Internet

    Uma pista de atletismo oficial conta com 8 raias de 1,22 metros de largura, a raia interna tem 400 metros de comprimento. Quanto mais externa for a raia, maior é a distância para percorre-la inteiramente. Por esse motivo, especialmente nas provas de 200 metros e 400 metros, adota-se a largada escalonada visando corrigir as distorções que seriam causadas caso os atletas largassem exatamente dos mesmos pontos de partida em uma pista cuja circunferência proporciona distâncias desiguais a depender da raia.

    Essa me parece uma metáfora razoável para compreender as faces da igualdade, bem como a necessidade de desigualar para alcançar uma situação fática de justiça.[1]

    É comum o ataque feroz às políticas públicas de redistribuição de renda e de reconhecimento utilizando-se da justificativa de que “todos somos iguais perante a lei”. De fato, mas essa é apenas metade da história, pois somos mulheres, homens ou pessoas que não se identificam com essa binariedade; somos brancas, negras, indígenas; somos LGTBI ou heterossexuais; somos classe média, pobres ou ricas. Para além da humanidade que deveria nos unir, somos caracterizadas por infinitas diferenças que constroem nossas identidades, histórias e experiências.

    A pista sob os nossos pés é marcada por distinções decorrentes do gênero, da raça e da classe[2]. O percurso é diferente para cada pessoa que se dispõe a correr, pois quanto mais próxima estiver da margem exterior, mais distante estará de completar as provas da vida: ter acesso a direitos, viver dignamente, entrar na universidade, encontrar um bom trabalho, adquirir bens de consumo, constituir uma família etc. As políticas públicas de redistribuição de renda e de reconhecimento funcionam como a largada escalonada que visa corrigir as distorções fáticas para propiciar uma corrida mais equânime para grupos historicamente marginalizados.

    Essa primeira fase do constitucionalismo representou a ruptura com o absolutismo, contudo somente com a crise do Estado Liberal de Direito e com a ascensão do Estado Social de Direito é que a igualdade alcançaria a sua dimensão material. Sob essa perspectiva, não basta a igualdade perante a lei, é necessário que o Estado intervenha para erradicar a pobreza, enfrentar a discriminação que inferioriza e promover condições para uma vida digna, considerando-se as diferenças decorrentes dos marcadores de classe, raça e gênero.

    Enquanto a primeira dimensão da igualdade consiste na proibição da discriminação indevida, a segunda implica em uma discriminação positiva a favor de segmentos vulnerabilizados. O Brasil é signatário de tratados internacionais que impõem a necessidade da adoção de discriminações positivas como a Convenção das Nações Unidas para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1967); a Convenção das Nações Unidas para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulher (1981) e; a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007), essa última incorporada ao ordenamento jurídico com status de emenda constitucional.

    André de Carvalho Ramos aponta que o Estado possui dois instrumentos para promoção da igualdade e eliminação da discriminação odiosa, os instrumentos repressivos e os promocionais. Os primeiros referem-se à possibilidade de tipificar penalmente condutas violadoras da dignidade humana e da igualdade como o crime de racismo. Os segundos são as políticas compensatórias que visam acelerar a inclusão de grupos marginalizados e o alcance de igualdade, também conhecidas como ações afirmativas ou políticas de discriminação positiva.[5]

    A jurisprudência dos tribunais superiores é farta no sentido de reconhecer a dupla dimensão da igualdade e a legitimidade das ações afirmativas adotadas pelo país. Ações afirmativas são espécie do gênero política pública.

    O Programa Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), a reserva de vagas para pessoas com deficiência em concurso público, as cotas raciais para ingresso nas universidades públicas são exemplos de políticas públicas de natureza redistributiva e de reconhecimento que visam à promoção da igualdade material por meio da correção de distorções históricas que geram impacto no presente[6].

    Em síntese, as citações de Aristóteles, “Tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua igualdade”[7] e de Boaventura de Souza Santos, “Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza e temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e, de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”[8] expressam claramente a necessidade de observar as faces da igualdade perante a prova da vida.

    Juliana Frei Cunha é Mestra, Especialista e Bacharela em Direito pela UNESP/Franca – SP e Professora de Direitos Humanos, Constitucional, Filosofia do Direito e Hermenêutica Jurídica da UNIP – São José dos Campos.

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/a-prova-da-vida-e-as-faces-da-igualdade/604417578

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