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25 de Maio de 2024
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    A redação do Enem à luz da Criminologia Crítica

    Publicado por Justificando
    há 9 anos

    “Nossa capacidade de prever um outro mundo depois do grande encarceramento em curso pode depender de nossa capacidade de renunciar a metáforas que realimentam o princípio da punição, ou seja, o princípio – jamais demonstrado! – segundo o qual a imposição de sofrimento previne transgressões ou restaura a ordem virtuosa violada.”
    Nilo Batista, A Lei como Pai, p. 38

    Em nome de mulheres como Angela Davis, Lola Aniyar de Castro, Luciana Boiteux, Maria Lúcia Karam, Rosa Del Olmo, Vera Malaguti Batista, Vera Regina Pereira de Andrade (que tenho a honra de dizer que foi minha colega na disciplina de Justiça Restaurativa na FADISMA!) e como novato estudioso da área, não poderia de tecer algumas considerações - depois de passar o dia elogiando a escolha do MEC - sobre o tema da redação do ENEM deste domingo.

    O problema, a meu sentir, no pronunciamento de muitas "feministas" (entre aspas porque já dizia Marx que não devemos analisar pessoas por aquilo que dizem sobre si próprias) é esta associação completamente obsessiva, neurótica e por que não dizer, reacionária, entre violência de gênero = imposição de pena criminal + demanda neocriminilizadora + hipertrofia da legislação penal com a criação de novos tipos penais, etc.

    A justiça pode se manifestar de inúmeras formas e, poucas vezes, se realiza como pena criminal.

    Como assevera Ana Claudia da Silva Abreu[1], parte do movimento feminista utiliza o Direito Penal como uma forma de empoderamento feminino e advoga o recrudescimento das normas penais e processuais penais para o enfrentamento da violência. Sob o ponto de vista de que a violência contra a mulher é banalizada, somado ao sentimento de impunidade e fomentados pelo discurso acientífico inconsequente da criminologia midiática, que requer uma máxima intervenção penal,advoga-se, destarte, a emancipação feminina por meio de um discurso criminalizador e recrudescedor.

    As pretensões de criminalização tão festejadas pelo movimento feminista nada mais são que o uso simbólico do Direito Penal, o qual traz, inicialmente, uma sensação de tranquilidade e segurança, o que é, na verdade, uma ilusão. Ao invés de diminuir os crimes, criam-se mais delitos e, como o Estado não dá conta, incrementa-se ainda mais a sensação de impunidade e com ela a insegurança. Trata-se, na verdade, de um ciclo vicioso.

    Esse empoderamento via Direito Penal, ao invés de evitar a violência contra a mulher, apenas a fomenta. Não estou dizendo que a pena e o penal não possuam eventual e emergencialmente uma importância indiscutível no combate à violência contra a mulher.

    Porém, no afã de promover a defesa às mulheres e combater a discriminação de gênero inutilmente recorre-se ao discurso criminalizador como forma de empoderamento feminino, representando um falacioso discurso de emancipação da mulher.

    O resultado é o seu oposto: o Direito Penal oferece uma resposta meramente simbólica e apenas abranda a sensação de insegurança por alguns instantes. O problema continua sem solução até porque a solução não será encontrada via Direito Penal.

    Não é função do Direito Penal fazer política social, ou seja, não é ele um instrumento idôneo para a efetivação da emancipação feminina.[2]

    Eugenio Raúl Zaffaroni[3] assinala que a pena, para atingir os seus objetivos previamente estipulados, deve cumprir uma função de natureza preventiva particular, eis que quando esta se limita a função simbólica, de prevenção geral, tem-se sanção “(...) inconstitucional, violadora de direitos humanos, e, consequentemente, não se justifica a sua imposição (...)”.

    Zaffaroni já esclarecera, em seu texto intitulado “O discurso feminista e o poder punitivo”[4] que a saída para a violência sofrida pelo feminino não é o poder punitivo estatal. Se bem entendi seu texto, o poder punitivo penal do estado é machista e serve muito bem para discriminar. Razão pela qual o uso da punição estatal como forma de garantir direitos é uma mentira sem fim. O estado cria leis penais para um verdadeiro faz-de-conta e assim parece acalmar os nervos femininos que já não suportam tanta discriminação, mas em nada altera a realidade violenta em que as mulheres estão inseridas.

    O poder de punir do estado sempre serviu para delimitar os papéis esperados pelo homem e pela mulher na sociedade patriarcal ocidental. Os crimes tipicamente femininos são aqueles em que a mulher é punida por não querer cumprir o papel que é dela esperado na sociedade. Explico: pune-se o aborto porque, no fundo, uma mulher não quer ser mãe e isso seria inadmissível. O poder punitivo estatal não nos servirá como poder antidiscriminatório, diria Zaffaroni. Vejam bem o que o Estado as atira no rosto com leis: mulheres são vítimas e como vítimas deverão permanecer. “O poder punitivo sempre está do lado do mais forte.”

    Um equívoco recorrente de pessoas (seja de boa ou má-fé) que se dizem progressistas consiste em pretender o que, há algumas décadas, se chamava de uso alternativo da lei penal.

    Nas suas indicações para uma política criminal das classes subalternas, Alessandro Baratta já advertia para os riscos de supervalorizar “um tal uso alternativo”, que resultaria numa política “panpenalista”.

    O “uso supletivo” da lei penal procura encobrir a crise de eficácia dos direitos humanos, deixados ao relento pelo Estado mínimo neoliberal. A punição espetaculosa de um violador procura revalorar positivamente a pena, ocupando simbolicamente o lugar da eficácia dos direitos humanos violados.

    A seletividade inerente aos sistemas penais em geral, e muito especialmente naqueles que operam em sociedades de classes, converterá seus esforços numa acentuada dinamização da criminalização das classes dominadas.

    Pelo exposto, espera-se que os discursos feministas (e são tantos, incorre em erro quem uniformiza o pensamento feminista, pois há vertentes diversas dentro do movimento, não há “o feminismo") incorporem as contribuições da criminologia crítica, e não os discursos de legitimação do poder punitivo extraídos do senso comum compartilhado pelos penalistas coroadores da pena, do castigo, e da punição como categorias fundantes de solução; uma"solução"fadada ao (des) controle punitivo, cujo poder de"solução", como demonstrado, em verdade traduz-se num maior poder de decisão, tão-somente. Há que se construir as bases de uma criminologia feminista (deslegitimante do poder punitivo), crítica, abolicionista, libertária e humana, em constante construção e fatal oposição à dogmática jurídico-penal engessada e ao mundo jurídico brutalizante, com seus limitadíssimos elementos legitimadores da pena, da dor e do sofrimento nonsense, “sofrimento estéril, sofrimento pelo sofrimento, dor pela dor” (Louk Hulsman), como bem leciona Guilherme Moreira Pires.[5]

    Por que razão devem as pessoas mais vulneráveis ao poder acreditarem no poder punitivo, manifestação do poder por excelência? Um poder arbitrário e seletivo que sempre se mostrou contra os extremamente vulneráveis, que sempre se mostrou contra as mulheres.

    O sistema penal é machista.

    Em síntese, NÃO confie, NÃO deposite esperanças (a não ser no que tange a neutralização de um “intolerante máximo”, termo que tomo de empréstimo de Amilton Bueno de Carvalho) no mesmo poder que lhe pune por não querer ser mãe para resolver as violências suportadas por você todos os dias.

    Gabriel Abelin é acadêmico do 9º semestre do curso de Direito da Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA) e Pesquisador do Núcleo de Estudos em Direito e Marxismo (NUDMARX) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
    REFERÊNCIAS [1] O movimento feminista e o feminicídio como reflexo do Direito Penal Simbólico. Disponível em: https://www.google.com.br/?gfe_rd=cr&ei=D1AuVvO7AYaw8weBjbu4Cw&gws_rd=ssl#q=o+movimento+feminista+e+o+feminic%C3%ADdio+simb%C3%B3lico [2] BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro. Editora Revan, 2001, p. 86. [3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIRANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2013, pp. 103-104. [4] http://pt.scribd.com/doc/126582986/Zaffaroni-El-Discurso-Feminista-pdf#scribd [5] PIRES, Guilherme Moreira. A aposta no poder punitivo como (equivocada) estratégia de ação às conquistas femininas - à luz da criminologia crítica e perspectivas abolicionistas do sistema penal. Revista Pensamiento Penal, 2015. Disponível em: http://www.pensamientopenal.com.ar/doctrina/40697-apuesta-al-poder-punitivo-equivocada-estrategia-accion-conquistas-femeninas-portugues
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