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17 de Maio de 2024
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    A Soma e o Déficit: a decisão do STF no caso Vila Soma e o direito à moradia

    Publicado por Justificando
    há 8 anos

    Em 13 de janeiro de 2016, a pedido da Defensoria Pública de São Paulo, o STF proferiu decisão suspendendo ordem de reintegração de posse contra moradores da Vila Soma, em Sumaré. A reintegração da posse da área estava agendada para o dia 17 de janeiro de 2016 e a decisão conferiu efeito suspensivo ao recurso extraordinário, ainda pendente de exame de admissibilidade no TJ-SP. Residem na Vila Soma cerca de 2,5 mil famílias há mais de três anos – antes, tratava-se de um terreno abandonado há pelo menos 20 anos, de propriedade da massa falida da empresa Soma Equipamentos Industriais.

    Na decisão do Ministro Enrique Lewandowski, este considerou que a retomada da posse poderia exacerbar o conflito, “em especial quando o cumprimento da ordem judicial é levada a efeito por força policial desacompanhada de maiores cuidados com o destino dos evictos”. Assim, em razão de não haver “qualquer indicação de como será realizado o reassentamento das famílias”, o Ministro entendeu ser o caso de suspender a ordem de reintegração.

    A preocupação com “o destino dos evictos” e com “o reassentamento das famílias” é o que sobressai no pedido da Defensoria Pública e na decisão do STF. O entendimento adotado pela Corte Suprema é inovador para o Poder Judiciário e pode proporcionar maior efetividade ao direito à moradia e à função social da propriedade. De fato, a maior parte do Judiciário, em ações possessórias, relega a segundo plano a análise destes direitos, privilegiando a posse decorrente da propriedade. O julgado do TJ-SP, atacado pelo recurso extraordinário, é emblemático e basta para exemplificar este entendimento:

    “(...) pretensão de suspensão do cumprimento da reintegração de posse para aguardar desate da questão a respeito do destino das famílias ocupantes do local, pelos órgãos públicos competentes – descabimento - ordem proveniente de decisão transitada em julgado – direito dos agravados que não pode ficar à mercê de decisões políticas - reintegração que será acompanhada pelo Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (GAORP) deste Tribunal - problema social da falta de moradia que não deve ser enfrentado por decisões judiciais que, em detrimento do direito constitucional de propriedade, legitimem ou façam perdurar esbulhos possessórios evidenciados - função social da propriedade que deve se conformar aos requisitos constitucionais e legais que a disciplinam e não servir de justificativa para comportamentos ilegais que se travestem de justiça social - necessidade de resposta célere do Poder Judiciário” (Agravo de Instrumento 2088936-45.2015.8.26.0000).

    A decisão reconhece que há um “problema social” de “falta de moradia” e, neste ponto, está coberta de razão: segundo a Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional em 2013 era de 5,846 milhão de domicílios[1]. Por outro lado, segundo dados do Censo 2010 do IBGE, há 6,07 domicílios vagos no Brasil[2]. O confronto destes dados mostra que o “problema social” em questão não ocorre no sentido de inexistência de imóveis suficientes para atender a todos – o número de domicílios vagos é superior ao número de pessoas sem teto. Este “problema social” ocorre por razões econômicas[3] e com respaldo do direito – incluindo aí o modo pelo qual o Judiciário lida com o problema.

    As quase 6 milhões de famílias que sofrem da “falta de moradia” não conseguem pagar aluguel, muito menos um financiamento imobiliário, sem prejuízo do próprio sustento. O poder público não dispõe de programas habitacionais que proporcionem acesso universal à habitação - atualmente, a política pública habitacional em todo o Brasil se apoia principalmente no Programa Minha Casa, Minha Vida[4], um programa que busca não o acesso universal à habitação, mas o aquecimento dos mercados imobiliário e de construção civil. As políticas fundiária e urbana não se valem de instrumentos que reprimam o uso especulativo da terra urbana e o descumprimento da função social da propriedade - os instrumentos do Estatuto da Cidade ou outros instrumentos, como os previstos no projeto de lei de responsabilidade territorial, PL 3057/2000, são enfaticamente ignorados por quase todos os municípios. O caso da Vila Soma mostra bem esta dinâmica: um terreno de quase 1 milhão de metros quadrados, próximo ao centro da cidade - portanto, próximo a toda infraestrutura urbana custeada por todos ao longo dos anos - jaz intocado e com dívida de IPTU estimada em cerca de 10 milhões de reais.

    Todas estas ilegalidades não interessaram ao TJ-SP diante do “direito constitucional de propriedade”. Tampouco entendeu o Tribunal haver prejudicialidade entre demanda para atendimento habitacional prévio dos moradores da Vila Soma e a retirada das pessoas das suas habitações. Neste sentido, decretou o julgado que o “problema social da falta de moradia ... não deve ser enfrentado por decisões judiciais que, em detrimento do direito constitucional de propriedade, legitimem ou façam perdurar esbulhos possessórios evidenciados”.

    A importância da decisão do STF está em estabelecer novo marco jurídico sobre a questão: confere juridicidade, efetividade e oponibilidade a dois direitos básicos, o direito à moradia e a função social da propriedade. Afinal, por que decisões judiciais não devem enfrentar o problema social da falta de moradia? Em outros termos, por que o direito à moradia e a função social da propriedade não são oponíveis a outros direitos, como a posse e a propriedade? O descumprimento da função social, assim como o direito à moradia, deve ser oponível ao proprietário ou possuidor.

    A decisão do STF soma justamente ao firmar que o atendimento habitacional prévio pelo poder público é prejudicial à reintegração de posse. O destino dos evictos deve ser objeto de tutela jurisdicional, seja em ação autônoma, seja por providências judiciais quando do cumprimento da reintegração de posse – inclusive, em caso envolvendo particulares, com a intimação do poder público para providências que garantam este atendimento.

    Ainda precisamos de muitas reviravoltas jurídicas e políticas para que tenha plena eficácia o direito à moradia e o consequente direito ao atendimento habitacional prévio em casos de reintegração de posse. A luta da Vila Soma permitiu vermos uma decisão que pode iniciar uma destas reviravoltas, pela qual direito combaterá, ao invés de respaldar, o déficit habitacional.

    Rafael Lessa V. de Sá Menezes é Mestre em direitos humanos pela USP; Doutorando em direitos humanos pela USP; Defensor Público do Estado de São Paulo
    [1] MINAS GERAIS. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Déficit Habitacional no Brasil 2013: Resultados Preliminares. Disponível em http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/cei/deficit-habitacional/596-nota-tecnica-deficit-habitacional-2013normalizadarevisada/file, consulta em 17/01/2015. [2] Vide INSTITUTO POLIS. Moradia é Central – Lutas, Desafios e Estratégias, 2012, disponível em http://www.polis.org.br/uploads/1512/1512.pdf, consulta em 17/01/2015. [3] Para uma leitura mais aprofundada sobre o tema, vide VILLAÇA, Flávio. O que todo cidadão precisa saber sobre habitação. São Paulo: Global, 1986. [4] Para uma análise do programa, vide ROLNIK, Raquel. Guerra dos Lugares. São Paulo: Boitempo, 2015.
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