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16 de Junho de 2024
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    Admissão da ADI do zika e a legitimidade do STF como guardião de direitos fundamentais

    Publicado por Justificando
    há 8 anos

    Em fevereiro de 2016, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou que a epidemia de vírus zika e as desordens neurológicas a ele associadas constituem uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII). O Brasil está no epicentro dessa crise de saúde pública global, com quase 10 mil casos de fetos e recém-nascidos notificados para a síndrome congênita do zika. Em agosto de 2016, a Associação Nacional de Defensores Públicos (ANADEP) protocolou a ADI 5581 junto ao Supremo Tribunal Federal, com um conjunto de pedidos de enfrentamento à epidemia que incluem: acesso à informação de qualidade para mulheres em idade reprodutiva; ampliação da oferta de métodos contraceptivos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e distribuição de repelente para mulheres grávidas; direito de interrupção da gestação para mulheres grávidas infectadas pelo zika que estejam em sofrimento mental; acesso universal ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) para crianças afetadas pelo zika; garantia de acesso e transporte gratuito de crianças e suas famílias para serviços de saúde. 11 ministros e ministras da Corte Suprema poderão que decidir que tipo de resposta o Estado brasileiro dará à epidemia. Nesta conjunto especial de artigos, 11 juristas de todo o país argumentam porque o STF deve levar a ADI 5581 a sério. O artigo a seguir é parte do Manifesto 11 por 11, uma iniciativa do Justificando em parceria com a Anis – Instituto de Bioética.

    Cortes constitucionais são, na literatura do direito constitucional comparado, instituições ambíguas. Se, por um lado, a teoria busca justificar seu papel e sua relevância a partir, sobretudo, de sua defesa de direitos fundamentais, realçando, assim, seu papel contramajoritário, por outro, estudos empíricos têm indicado que elas mais tendem a preservar interesses hegemônicos de determinados grupos. Na literatura comparada, o importante trabalho de Ran Hirschl, intitulado Towards Juristocracy: The Origins and Consequences of the New Constitutionalism, que examinou empiricamente o trabalho das Supremas Cortes do Canadá, Nova Zelândia, África do Sul e Israel, concluiu que as elites políticas, econômicas e jurídicas têm estrategicamente utilizado as Cortes Constitucionais como “forma preservação hegemônica auto-interessada”[1]. No Brasil, pesquisa por nós realizada intitulada A Quem Interessa o Controle Concentrado de Constitucionalidade?: O Descompasso entre a Teoria e a Prática na Defesa dos Direitos Fundamentais,[2] concluiu, em uma análise do período de 1988 a 2012, que, ao menos no âmbito das Ações Diretas de Inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal tem pouco se voltado para, efetivamente, a defesa dos direitos fundamentais e, em sintonia com as conclusões de Ran Hirschl, concentrado suas decisões em benefício de importantes corporações, especialmente aquelas ligadas ao serviço público.

    Essa contradição, que afeta o próprio argumento de legitimidade da Corte Constitucional, precisa ser bem pontuado, até porque é preciso que esse diagnóstico sirva como um alerta às próprias práticas das Cortes. No caso do Supremo Tribunal Federal, a realidade expõe uma profunda disfuncionalidade. Isso não significa, obviamente, que esta Corte não tenha realizado importantes contribuições para a defesa de direitos fundamentais – todos sabemos de importantes decisões nesse propósito-, mas sugere que é preciso muito mais e que uma mentalidade voltada para sua função precípua se consolide. Nesse propósito, conforme nossa pesquisa constatou, um dos principais entraves a essa virada necessária para uma maior atuação na defesa dos direitos fundamentais está no argumento de “pertinência temática”, que, no âmbito do controle concentrado, se tornou um argumento de defesa corporativa. Na medida em que o conceito de “pertinência temática” passa a exigir uma restritiva e imediata conexão com as atividades e objetivos da parte proponente da ação, a consequência imediata é, obviamente, uma restrição à defesa de direitos fundamentais de forma ampla.

    Porém, no caso em questão, o conceito de “pertinência temática”, independentemente de uma necessidade de uma análise mais abrangente, não é um impeditivo. A Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP) é, por excelência, uma instituição voltada para o Outro e para a defesa dos direitos fundamentais de pessoas vulneráveis e hipossuficientes economicamente. Não há, certamente, instituição mais legitimada a propor ações no controle abstrato que esta instituição, quando se está em debate a proteção de direitos fundamentais de pessoas vulneráveis e hipossuficientes economicamente, porque a identidade entre legitimação e função é direta. O interesse de agir desta instituição é, fundamentalmente, o interesse alheio desses grupos excluídos, que, no fundo, se identifica com o próprio interesse da instituição e isto é espelhado em sua função constitucional, legal e estatutária.

    Qualquer interpretação restritiva, neste aspecto, significa a plena confissão do Supremo Tribunal Federal de que, ao aplicar o conceito de “pertinência temática”, seu olhar pouco se atenta ao Outro vulnerável e economicamente hipossuficiente. Mais grave, mostra que, especialmente para uma instituição com tamanha nobre função, como a Defensoria Pública, a única possibilidade de propositura de ação em controle abstrato é para a defesa de interesses corporativos. É um contrassenso profundo que macula a legitimidade do Supremo Tribunal Federal como corte defensora dos direitos fundamentais, especialmente quando está em questão a situação de grupos vulneráveis e excluídos economicamente, exatamente aqueles que a Corte, por princípio de isonomia e justiça, deve mais zelar.

    O caso em questão aborda um tema de ampla sensibilidade nacional e internacional e aponta uma direção clara: a urgência de determinações para que o Estado, exercendo seu papel constitucional de zelar por sua população mais vulnerável, adote providências para minorar um drama que já se faz cotidiano de populações há muito esquecidas. Mais do que o tradicional debate sobre o papel do Supremo Tribunal Federal na defesa da Constituição, aqui se está a desafiar o seu próprio papel e sua própria legitimidade: será a Corte a guardiã das minorias ou, ao contrário, deixará passar essa realidade à sua frente, corroborando pesquisas que colocam em xeque sua própria justificação?

    Juliano Zaiden Benvindo é professor de Direito Constitucional da Universidade de Brasília. É doutor em Direito Público pela Universidade Humboldt de Berlim, Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília. Coordena atualmente o Centro de Pesquisa em Direito Constitucional Comparado da Universidade de Brasília. É membro do “Linkage and Engagement Advisory Board of the Younger Comparativists Committee of the American Society of Comparative Law” e da “International Society of Public Law” (ICON-S) e escreve regularmente para o International Journal of Constitutional Law Blog (I-CONnect).

    [1] Hirschl, Ran. Towards Juristocracy : The Origins and Consequences of the New Constitutionalism, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2004.

    [2] Costa, Alexandre; Benvindo, Juliano Zaiden, A Quem Interessa o Controle Concentrado De Constitucionalidade? – O Descompasso entre Teoria e Prática na Defesa dos Direitos Fundamentais (Who is Interested in the Centralized System of Judicial Review? – The Mismatch between Theory and Practice in the Protection of Basic Rights) (Abril1, 2014). Disponível no SSRN: https://ssrn.com/abstract=2509541 ou http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2509541

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/admissao-da-adi-do-zika-e-a-legitimidade-do-stf-como-guardiao-de-direitos-fundamentais/402397976

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