Ainda sobre os novos crimes sexuais: entre erros e acertos
Foto e imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil
Em 13 de agosto de 2018, eu e a Beatriz Accioly Lins publicamos o artigo “Novos crimes sexuais: avanço ou armadilha?”, comentando a aprovação pelo Senado Federal do Projeto de Lei 5452/2016, que altera previsões do Código Penal sobre os crimes sexuais – até o momento de conclusão da coluna, o PL estava ainda pendente de sanção ou veto presidencial.
Agora, na coluna desta semana, volto ao tema para aprofundar os comentários referentes a alguns pontos já abordados no artigo anterior e levantar outras questões sobre o tema.
O primeiro ponto diz respeito à redação final aprovada para o crime de importunação sexual, conforme o Parecer nº 142/2018 da Comissão Diretora[1], em Plenário, nos seguintes termos:
Importunação sexual
Art. 215 – A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.
Como se verifica, o parecer com a redação final substituiu a problemática expressão “na presença de alguém” por “contra alguém”, em redação muito mais exata que a proposta original. Com a modificação, o tipo penal define não só quem é a vítima, mas a própria conduta em si, afastando ou, no mínimo, dificultando a interpretação de que a prática consensual de atos considerados libidinosos entre duas pessoas na presença de terceira que não houvesse consentido poderia configurar o delito.
Além disso, pela nova redação, não restam dúvidas de que a descrição é residual em relação à configuração do crime de estupro. Ainda que no texto original já constasse a ausência de consentimento da vítima e a previsão de aplicabilidade da pena somente quando o ato não constituísse crime mais grave, a redação vaga não permitia uma interpretação nos moldes exigidos pelo princípio da taxatividade penal.
+[ASSINANDO O +MAIS JUSTIFICANDO VOCÊ TEM ACESSO À PANDORA E APOIA O JORNALISMO CRÍTICO E PROGRESSISTA]+Na redação final, se não houver violência física nem grave ameaça, mas tampouco a vítima tiver consentido com o ato libidinoso, configura-se o novo tipo penal da importunação sexual. Este ponto exemplifica-se no caso das “encoxadas”, apalpadelas, passadas de mão e outros abusos sexuais praticados no interior dos meios de transporte e público e fora deles, até então no vácuo legislativo da discussão sobre sua subsunção ao tipo penal do estupro ou à contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor.
Ainda assim, há pontos que mereceriam ajustes. Poderia ter sido substituída a expressão “ato libidinoso” por “ato sexual”, pois o termo indica a equivocada noção de que os crimes sexuais têm relação com um excesso de libido do agente, quando, na verdade, são uma expressão de poder e violência. É de se questionar também a incorporação da expressão “estupro coletivo” para se referir à figura do crime praticado em concurso de agentes, já prevista no Código Penal desde 1940. Neste último caso, o PL faz apenas uma modificação da fração de aumento de pena, de 1/4 para 1/3 a 2/3.
Na mesma rubrica de aumento de pena, passará a constar o “estupro corretivo”, consistente no estupro praticado “para controlar o comportamento social ou sexual da vítima”, cuja redação pode deixar a desejar quanto à exatidão de sua extensão e dificuldade de produção probatória a respeito deste dolo específico.
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Mulher: sujeito de direito
De qualquer forma, o importante é lembrar que a boa redação da norma penal tem por função primordial assegurar duas prerrogativas. Primeiro, o direito do cidadão acusado de crime de que a imputação que lhe é feita corresponda com precisão àquilo que eventualmente tenha praticado. E, segundo, garantir que as penas previstas e aplicadas sejam pautadas pelos princípios da proporcionalidade e da intervenção mínima.
Em outras palavras, a boa técnica do Direito Penal é verificada quando os direitos e garantias do réu estão assegurados. Sendo aprovado o texto na forma como se encontra, os homens acusados de ataques sexuais cujas condutas não correspondam com precisão ao crime de estupro não mais estarão sujeitos às elevadas penas de 6 a 10 anos de reclusão, muitas vezes desproporcionais ao ato praticado.
Sem fazer aqui qualquer relativização quanto à gravidade e à simbologia social dos crimes marcados pela assimetria entre os gêneros, não é razoável afirmar que o ato de apalpar uma mulher sem sua anuência apresente a mesma lesividade penal que uma relação sexual forçada pela violência física ou pela ameaça de uma arma. Trata-se, portanto, ao menos em tese e caso sancionada a alteração da lei, de norma que pode proporcionar uma aplicação do Direito Penal dentro dos ditames constitucionais.
Mas, como sempre ocorre quando se pretende usar o Direito Penal para resolver conflitos sociais, permanece a pergunta: o que está sendo feito para evitar que haja novas vítimas desse tipo de crime? E para que as mulheres já submetidas a essa violência tenham algum acesso a algum tipo de política pública para restauração de sua integridade e dignidade?
Maíra Zapater é Doutora em Direitos Humanos pela USP e graduada em Direito pela PUC-SP, e Ciências Sociais pela FFLCH-USP. É especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, Professora e pesquisadora. Autora do blog “Deu Na TV!”.
[1] Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7823298&ts=1535639191754&disposition=inline&ts=1535639191754
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