Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
16 de Junho de 2024
    Adicione tópicos

    Apesar de abertura à sociedade, Supremo não representa o povo

    Publicado por Consultor Jurídico
    há 13 anos

    [ Artigo publicado originalmente pelo site Jus Navigandi. ]

    O Brasil, por meio da mídia, acompanhou o episódio decorrente das prisões do conhecido banqueiro, Daniel Dantas.

    Repercussão maior do que as prisões foi a gerada com a concessão, pelo então Presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, de habeas corpus pleiteado pelo banqueiro (HC 9.500-9/SP).

    A sociedade, numa grande parcela, virou-se contra o Ministro, criticando sua decisão. Dos mais ricos aos mais pobres. Os eruditos e os ignorantes. Poderosos e despossuídos. Todos tinham posição formada a respeito da concessão.

    A controvérsia deu margem a variadas esferas de discussão.

    Constitucionalistas falaram, como também falaram os penalistas. A Polícia Federal comentou o caso, assim como juízes federais e acadêmicos. Editoriais dos grandes jornais deram espaço ao debate em torno da decisão de soltura. Capas de revistas estampavam a foto do Presidente do STF. Numa delas, o Ministro aparecia com chaves de carcereiro às mãos, de braços cruzados e olhar levemente enfurecido [1]. As televisões brigavam entre si por detalhes. A internet disseminou informações e bastidores da operação da PF. O povo, às ruas, foi ouvido. Comunidades no site de relacionamentos orkut foram criadas. Uma delas, a mais curiosa, diz: "Fora Gilmar Mendes!". No passado tivemos, nas ruas, o "Fora Collor!". Depois, "Fora FHC!". Mais adiante, "Fora Lula!". Ainda tivemos o "Fora Severino!". Agora, o "Fora Gilmar Mendes!".

    É preciso problematizar todos esses fatos.

    Qual a razão de tamanha reação a uma decisão judicial? Como o contexto atual ajuda ou atrapalha o acesso das pessoas às informações decorrentes de atos de tribunais? Qual a participação dos integrantes do próprio Supremo nesses acontecimentos? Como o ministro Gilmar ajudou a trazer a população para o debate constitucional? Por que ele foi alvo da fúria de uma parcela popular?

    Tentaremos, no presente ensaio, encontrar as respostas. Esse é o nosso desafio.

    O Supremo de ontem e o de hoje

    Quando discutimos a maneira de interpretar a Constituição, temos um debate teórico recorrente entre, de um lado, os chamados substancialistas e, do outro, os procedimentalistas. Gustavo Binebojm trabalha com a primeira corrente como "jurisdição constitucional como instrumento de defesa dos direitos fundamentais", enquanto a segunda seria a "jurisdição constitucional como instrumento de defesa do procedimento democrático" [2].

    Para os primeiros [3], uma Constituição deve consagrar direitos fundamentais, princípios e fins públicos que realizem os mais relevantes valores de uma sociedade: justiça, liberdade e igualdade. Para que tais valores não se transformem em promessas esquecidas, podem os juízes e tribunais implementar tais aspirações constitucionais.

    Já os procedimentalistas [4] não veem no intérprete constitucional a possibilidade de ser um aplicador de princípios de justiça. Ele seria um fiscal do funcionamento adequado do processo político, só extrairia da Constituição "condições procedimentais da democracia", cabendo à jurisdição constitucional protegê-las.

    Substancialistas permitem que um ministro do Supremo, concretizando a Constituição, faça valer regras, valores e princípios nela constantes. Os procedimentalistas, mais discretos, entendem que os julgadores devem preservar o processo democrático para que ele próprio concretize valores e aspirações da população.

    O Supremo de Ontem: Procedimentalista e de jurisprudência defensiva

    O STF [5], nos últimos tempos, mudou sua política judicial. Antes, adotava linha procedimental. Em julgamentos polêmicos, com forte carga de política, que traziam a possibilidade de tensão para com os Poderes Executivo e Legislativo, o Tribunal adotava uma jurisprudência defensiva ( self restraint) [6], deixando, para aqueles Poderes, a missão de solucionar o conflito inerente a seus representados, o povo.

    No caso de greve dos servidores públicos, se limitava a dizer que o Poder Legislativo estava demorando a editar a lei. Quanto à limitação anual de juros a doze por cento trazida pela Constituição Federal, afirmou que a norma não tinha eficácia plena [7]. Acerca do confisco da poupança dos cidadãos pela equipe econômica do então Presidente do Brasil, Collor, o Tribunal preferiu silenciar [8]. Quando chamado a se pronunciar sobre concretização de normas programáticas e direitos sociais, recorria à separação dos poderes para entregar ao Poder Executivo a missão de conduzir as políticas públicas nessas áreas. Em relação à observância dos critérios de relevância e urgência para edição de medidas provisórias, afirmou tratar de seara na qual não poderia se inserir, pois, caso o fizesse, estaria substituindo ao próprio Presidente da República.

    Era um Tribunal defensivo. Limitava-se a garantir o funcionamento das estruturas democráticas. Atuava de forma procedimentalista e defensiva.

    A Crise de Legitimidade dos atores democráticos e a mudança de postura do Supremo

    Com a restauração do regime democrático no Brasil, da promulgação da Constituição Federal de 1988 e a ocorrência das eleições gerais, vimos, tempos depois, o país se deparar com suas primeiras turbulências institucionais.

    Com o passar dos anos, a coisa piorou. Uma década e meia depois, pirou ainda mais. O Poder Executivo, mergulhado em denúncias, atravessava uma crise de identidade sem precedentes. O Poder Legislativo, desgastado, caminhava rumo ao pântano da rejeição popular [9]. Os partidos políticos eram alvo de questionamentos, sob o argumento de que não tinham fidelidade programática, além de acusações de práticas nada republicanas [10]. O modelo adotado para as organizações não-governamentais (ONG's) também passou a ser criticado. Os sindicatos também sofreram sua crise de representatividade. O fenômeno é bem tratado pela doutrina nacional [11].

    Os Poderes Executivo e Legislativo, atores centrais do processo democrático e da representatividade popular, atravessavam uma crise de legitimidade [12]. Nesse cenário, um outro ator surgiu preenchendo o vazio deixado [13]. Falo do Supremo Tribunal Federal.

    O Supremo de hoje: Substancialista e Ativista

    Passada a promulgação da nova Constituição, consolidado o regime democrático que sobreviveu bem a várias crises, no alvorecer do ano 2000, surge algo de novo no ar.

    O Supremo se agigantou. Virou o centro das atenções. A população começou a atribuir a ele uma função que a Constituição Federal não lhe deu [14], o de Poder que representa o povo. Ali, pensavam muitos, se atendia à população fazendo justiça [15].

    O Tribunal passou a adotar uma postura substancialista e ativista [16].

    Deu início a um processo no qual decidia temas controvertidos avançando em questões próximas da competência do Poder Legislativo. Começou a influenciar a pauta do Congresso [17]. Deu azo à Reforma Política quando se pronunciou acerca da fidelidade partidária, alterando sua histórica jurisprudência. Determinou que o Presidente do Senado da República instalasse uma Comissão Parlamentar de Inquérito [18]. Assegurou que deputados federais adentrassem ao Plenário do Senado Federal, numa votação secreta aos Senadores, sob o fundamento de direito líquido e certo [19].

    No âmbito do Poder Executivo, a tensão não foi diferente. Temas tributários tiveram uma guinada de entendimento [20]. Os direitos sociais passaram a ser concretizados. O direito à educação passou a ser implementado em atendimento à força normativa da Constituição [21]. O Direito à saúde, da mesma forma. Ingressou-se no mérito de atos discricionários do Poder Executivo [22], influenciando, com suas decisões, a formulação de políticas públicas. Ordenou-se, por parte do Executivo, a realização de procedimentos que impunham reflexos diretos em seus orçamentos [23]. O Supremo passou a governar quem governava [24].

    As técnicas de interpretação da Constituição e de declaração de inconstitucionalidade mostraram-se criativas[25]. A Corte tornou mais presente a chamada doutrina prospectiva. As declarações de inconstitucionalidade sem redução de texto se multiplicaram. Ali se consolidava um novo Supremo.

    O povo comemorava as decisões. A Constituição se inseria no cotidiano. A expressão "então recorre ao Supremo!" se popularizou. A Corte estava "legitimada".

    O Tribunal virou, no imaginário popular, uma casa de representantes daqueles que almejavam "justiça". Era como se fosse uma Câmara dos Deputados ou uma Presidência da República, sendo que, ao contrário dessas, gozando de uma respeitabilidade fora do comum e passando ao largo de crises institucionais.

    Aqui está o primeiro motivo a explicar a dura reação popular e o pedido de impeachment do Presidente do Supremo, ministro Gilmar Mendes, quanto ao "Caso Daniel Dantas", mais adiante tratado.

    O Supremo como Poder que representa o povo no seu anseio de justiça

    Como exemplo do grau de repercussão que os temas tratados pelo Tribunal atingiu, citemos o julgamento do Inquérito nº 2.245/MG, o chamado "Caso Mensalão [26]".

    O relator do inquérito, ministro Joaquim Barbosa, até então desconhecido de boa parte dos brasileiros, após aceitar, ao vivo, em transmissão via rádio, TV e site, a denúncia formulada pelo Procurador-Geral da República, conquistou multidões [27].

    Nas semanas seguintes, os jornais falavam da decisão. As principais revistas do país estamparam sua foto na capa. O Ministro ganhou o prêmio, em uma delas, de "Brasileiro do Ano" [28]. Na rede de relacionamentos da internet, orkut , dezenas de comunidades foram criadas em sua homenagem. Numa delas, constava o título: "Joaquim Barbosa para Presidente!". O Tribunal, definitivamente, tinha virado um lugar no qual se atendia aos anseios populares.

    Para que recorrer ao burocrático Executivo? Qual a razão de bater às portas do questionável Legislativo? O Judiciário era repositório da confiança popular.

    Além dessa mudança de política judicial, antes procedimentalista, depois substancialista, o Supremo passou a dar azo ao pensamento de Häberle, autor da obra "sociedade aberta dos intérpretes da constituição".

    Aqui está o segundo ponto que explica a razão do pedido de impeachment do ministro Gilmar Mendes por conta da concessão do habeas corpus a Daniel Dantas.

    O Brasil, de pouca originalidade na criação dos próprios institutos jurídicos, é pródigo em importá-los, descaracterizando-os.

    Os Estados Unidos tributam basicamente a renda. A Europa, o consumo. O Brasil tributa os dois. A Alemanha criou a cláusula de barreira que impedia a posse do candidato filiado a partido que não a ultrapassasse. No Brasil, o instituto permitia a posse e todas as vantagens dela decorrentes, mas impedia o parlamentar de trabalhar. As affirmative actions , logo no Brasil, tiveram como critério a cor da pelé. Nos Estados Unidos, quanto aos tipos de controle de constitucionalidade, vigora o controle difuso. Na Europa Continental, o concentrado. No Brasil, os dois. No caso da adoção da doutrina da "sociedade aberta dos intérpretes da Constituição", mais adiante tratada, seus defensores são adeptos da visão procedimentalista, que reduz a discricionariedade do Poder Judiciário no exercício da jurisdição constitucional. No Brasil, uma Corte substancialista o adota. Criatividade com institutos alheios, como se vê, não falta.

    Sigo com Peter Häberle. Sua ideia, confesso, seduz.

    O livro, traduzido por Gilmar Mendes, virou febre: "Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição".

    Em apertada síntese, seus escritos dizem que vivemos numa sociedade plural, formada por diversos grupos que interpretam os fatos de forma diversa, mas que se toleram e que, por meio do diálogo e da persuasão racional, convivem harmoniosamente [29]. Esse processo de variadas interpretações feitas pela sociedade em relação aos mesmos fatos traz uma contínua renovação e atualização da Constituição, tudo feito de maneira aberta, pública [30].

    O povo participa do processo de interpretação constitucional, os julgadores têm acesso a mais pontos de vista e suas decisões são prolatadas com uma carga de legitimidade. É essa a ideia.

    Caminhando sobre essa trilha, o Tribunal passou a realizar uma abertura no espaço de debate acerca da interpretação da Constituição Federal.

    A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: A criação de um a...

    Ver notícia na íntegra em Consultor Jurídico

    • Sobre o autorPublicação independente sobre direito e justiça
    • Publicações119348
    • Seguidores11019
    Detalhes da publicação
    • Tipo do documentoNotícia
    • Visualizações45
    De onde vêm as informações do Jusbrasil?
    Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/apesar-de-abertura-a-sociedade-supremo-nao-representa-o-povo/2698562

    0 Comentários

    Faça um comentário construtivo para esse documento.

    Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)