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    Artigos - Imunidade parlamentar: garantia ou privilégio?

    há 15 anos

    Como citar este artigo: FILHO, Agassiz. Imunidade parlamentar: garantia ou privilégio? Disponível em http://www.lfg.com.br. 06 de janeiro de 2009.

    Os problemas políticos despertam o que há de melhor e pior nas pessoas. Talvez porque, no final das contas, eles terminam interferindo na esfera de ação dos indivíduos, afetando interesses, direitos e verdades consolidadas. Geralmente, o espaço político é palco de grandes paixões. É propício à formação de uma opinião pública volátil por natureza, cenário de discussões muitas vezes conduzidas pelo calor das perspectivas ideológicas. Na nossa atualidade global, a Política e a atuação dos órgãos representativos estão sempre em crise, tentando se adaptar a um conjunto de mudanças que surpreendem tanto o Brasil contemporâneo como aquela parte do país que nunca se libertou do século XIX. É nesse quadro geral, colorido pelos ataques da imprensa e pelo desprestígio atual do Poder Legislativo, que costuma situar-se o instituto da imunidade parlamentar. Mas como entendê-lo adequadamente?

    De acordo com a Constituição de 1988, há duas espécies de imunidade parlamentar. A primeira goza de caráter absoluto (inviolabilidade). De acordo com ela, o parlamentar não se sujeita a quaisquer conseqüências civis ou penais em razão das suas opiniões, palavras e votos, desde que, naturalmente, suas manifestações ocorram nos marcos do exercício do mandato. Normalmente, não há muitas controvérsias em relação à necessidade de preservar a inviolabilidade da função parlamentar. A segunda espécie de imunidade, por sua vez, consiste na impossibilidade de prender os membros do Congresso Nacional, desde a expedição do diploma, salvo em flagrante de crime inafiançável. Também se configura por meio da possibilidade que a Casa respectiva (Câmara ou Senado) tem de sustar o andamento da ação, recebida a denúncia contra senador ou deputado, por crime praticado após a diplomação. É sobretudo em relação à imunidade formal ou processual - esta última - que recaem as críticas mais acentuadas.

    Mas a imunidade parlamentar processual surge com a Constituição de 1988 ou faz parte da tradição jurídico-política brasileira? Todas as Constituições do Brasil - inclusive os diplomas autoritários -, numa tradição que começa em 1824, trazem a figura da imunidade parlamentar processual ou formal como uma das bases do estatuto jurídico dos congressistas. Perante esse dado histórico, pode-se concluir, à primeira vista, que a nossa tradição política se baseia em tendências autoritárias e distribuição de privilégios entre os membros do poder. De fato, o passado autoritário do país e a pressão que essa herança exerce sobre o funcionamento da democracia de certo modo ainda condicionam nossa cultura política. Mas a imunidade parlamentar não é fruto do autoritarismo. No que diz respeito às garantias processuais dos parlamentares, a matriz política sobre a qual se desenvolve a civilização brasileira segue a tradição ocidental, o que não permite, portanto, que essas garantias sejam apontadas como uma característica nacional. Ao contrário do que divulgam algumas opiniões mais apressadas, a figura da imunidade não é criação brasileira. E não existe apenas no Brasil. Trata-se de um dispositivo funcional presente na quase totalidade das democracias contemporâneas.

    Sendo assim, cabe a pergunta: como e onde surge a imunidade parlamentar processual (freedom from arrest)? Deixando as divergências teóricas de lado, pode-se dizer que as origens do instituto remontam à Inglaterra do século XVII e à França revolucionária de 1789. São tempos de construção do Estado de Direito e das liberdades fundamentais, de substituição do Antigo Regime pelo legítimo direito de autodeterminação dos povos. Que os indivíduos decidam acerca da sua própria existência política. Eis a aspiração das revoluções liberais. E toda essa reestruturação do domínio passa pela implantação da democracia representativa e dos seus valores.

    Entre os ingleses, a imunidade parlamentar funcionava, entre outros aspectos, como um mecanismo de proteção contra a prisão por dívida. Em 1603, Sir Thomas Shirley, membro da Câmara dos Comuns, foi encarcerado em uma das prisões de Londres. O Legislativo exigiu a imediata libertação do detido. Diante da negativa do guardião (warden), contra este foi expedida ordem de prisão que terminou por conquistar a liberdade do parlamentar preso. No caso francês, a imunidade surgiu como proteção dos convencionais contra a pressão real. Em 20 de junho de 1789 - como nos lembra Carlos Maximiliano -, na Sala do Jogo da Pela, o Terceiro Estado jurou que só se separaria quando a França tivesse uma Constituição . Diante da ordem real de dissolução levada pelo mestre de cerimônias, Mirabeau profere suas célebres palavras: "Vá dizer ao seu amo que estamos aqui pela vontade do povo e não sairemos senão a ponta de baioneta". A partir de então, a imunidade parlamentar instalou-se definitivamente em solo francês.

    A imunidade parlamentar processual surge no período das revoluções liberais como garantia do parlamento e do parlamentar frente à ingerência do Poder Executivo. Na época, o enfrentamento entre o monarca absoluto e as forças políticas que se inspiravam na idéia de soberania popular - soberania do parlamento (Inglaterra) e soberania nacional (França) - se caracterizava pela supressão das liberdades e pelo ataque aos alicerces da representação política. Era uma espécie de cabo-de-guerra entre o princípio democrático e o princípio monárquico. Nesse contexto, que só se resolve no final do século XIX, as garantias do exercício do mandato parlamentar foram verdadeiras plataformas de resistência contra a centralização e personificação do poder político.

    Na Inglaterra de hoje, como nos lembra Pinto Ferreira, há uma certa tendência para a relativização do instituto, baseada no equilíbrio político que vem sendo construído pelo parlamentarismo inglês desde as suas origens pré-modernas. Na França, porém, a imunidade formal continua a gozar de plena aplicação. Não se trata apenas de assegurar a independência parlamentar individual, apoiada no princípio da representação política e na vontade popular - decisão eleitoral que escolhe os representantes do povo. A imunidade é um mecanismo de equilíbrio entre os poderes, existindo, com pequenas variações, em países como Alemanha, EUA, Portugal e Espanha. Sem ele, o Poder Legislativo deixaria de gozar da autonomia de que necessita para o exercício pleno das suas funções constitucionais.

    O princípio da divisão dos poderes exige que se preserve a autonomia das várias funções do Estado. O instituto da imunidade processual funciona como mecanismo de proteção do Poder Legislativo contra a ingerência política (quando indevida) do Poder Executivo e do Poder Judiciário. Trata-se de um instituto jurídico-político que está na base da própria idéia contemporânea de democracia. Afinal, a estruturação do domínio político pressupõe que a divisão entre as funções executiva, legislativa e judiciária funcione como instrumento de limitação do poder. Nessa linha, qualquer análise a ser feita acerca da imunidade parlamentar precisa levar em consideração o equilíbrio entre os poderes. Trata-se de buscar a democracia real. Quer dizer, não basta olhar para a situação formal do parlamento, analisando, por exemplo, como o Poder Legislativo está descrito na Constituição . Com base nisso, é preciso saber se o funcionamento do instituto assegura uma adequada esfera de independência funcional para a atuação parlamentar ou se é foco de impunidade.

    A imunidade parlamentar é uma garantia. Mas como todos os instrumentos que estão na base da democracia contemporânea, também ela precisa adaptar-se às contingências históricas e à realidade de cada país. No caso brasileiro, a imunidade parlamentar precisou passar por algumas recentes transformações com o fim de evitar que ela se convertesse em veículo de impunidade. De acordo com a versão original da Constituição de 1988, a instauração de processo-crime dependia de autorização de uma das Casas do Congresso Nacional, conforme fosse o parlamentar senador ou deputado federal. De acordo com esse modelo, eventual processo-crime dependeria de autorização prévia para ser iniciado. Em 2001, a Emenda Constitucional n. 35 alterou o texto da Constituição para adotar um modelo segundo o qual qualquer denúncia contra deputado ou senador pode ser recebida pelo Supremo Tribunal Federal. Porém, em razão da imunidade de que gozam os parlamentares este "dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação". Com a mudança, a suspensão do processo torna-se algo excepcional.

    É possível pensar na gradativa supressão do instituto da imunidade parlamentar? Sem nenhuma dúvida, visto que a Política e o Direito também são fruto do processo histórico. Mas isso depende da criação de outro critério de equilíbrio entre os poderes ou de um longo amadurecimento das instituições democráticas: representação política e participação popular como uma só força dinâmica. No dia em que houver verdadeiro equilíbrio entre os grupos que exercem e dependem do poder, quando o povo organizado finalmente definir as opções políticas do país, a imunidade deixará de ser garantia para transformar-se em privilégio. E numa democracia "realmente democrática" nenhum privilégio pode vilipendiar a igualdade entre as pessoas.

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