Cobrar pelo ensino público superior de quem pode pagar?
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O congelamento das despesas primárias adotada pela Emenda Constitucional 95/2016, no plano federal, e a asfixia financeira dos Estados, no plano regional, vêm sendo responsáveis por uma grave crise de financiamento da educação, a partir da eleição de prioridades governamentais que não prestigiam as despesas sociais.
Nesse quadro, que no plano do ensino superior se agudiza rapidamente, o caso da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que há vários meses não recebe os recursos a ela destinados no orçamento público, se apresenta como exemplo mais agudo, mas não solitário, muito pelo contrário, como prenúncio do que deve acontecer em um futuro próximo com a generalidade das universidades públicas brasileiras.
Aliás, o fenômeno não é nacional, em um ambiente de economia globalizada em que os Estados nacionais travam verdadeira concorrência fiscal internacional, renunciando à arrecadação dos recursos necessários para adimplir as prestações sociais dirigidas à população, com base em sistemas tributários que funcionam como mecanismo de transferência de renda da base para o topo da pirâmide social.
Diante desse panorama bastante desanimador para a educação superior, volta à pauta uma velha proposta, que sempre encontra bem-intencionados: o pagamento de mensalidades para aqueles que “podem” pagar, como medida destinada a gerar recursos próprios para as instituições superiores de ensino.
Abstraindo o caráter inconstitucional da proposta, uma vez que na avalanche de mutilações das salvaguardas do Estado Social consagrados no texto maior que vêm sendo perpetradas pelo Congresso Nacional, tudo passou a ser possível no processo de transferência de renda dos segmentos mais pobres para os mais ricos nas políticas públicas, vale considerar a sua completa ineficácia e inconveniência, mais atendendo ao interesse de acabar de vez com o caráter público e gratuito ensino superior do que de promover uma fonte viável de financiamento universitário.
Isso porque o “cobrar de quem pode pagar”, se poderia produzir algum resultado expressivo no século XX, quando as vagas nas universidades eram majoritariamente preenchidas por egressos da rede particular de ensino, hoje é realidade bastante diversa com a implementação da política de cotas raciais e sociais. Atualmente, apenas 12,2% dos alunos que estão matriculados na rede pública possuem renda familiar superior a três salários mínimos.[1] Considerando que a mensalidade de uma boa universidade particular supera esse montante, é desprezível o percentual de alunos da rede pública que “pode pagar” pela Universidade, já que não é razoável supor que toda a renda de uma família seja carreada para a educação superior de uma única pessoa. Assim sendo, tal exigência não resolveria o problema de financiamento universitário.
Porém, a medida não seria apenas inócua para resolver a questão que se propõe. Seria, na verdade, bastante perigosa para a própria manutenção do ensino público gratuito para a esmagadora maioria “que não pode pagar. ” É que, retirada a cláusula da gratuidade do ensino público gratuito da Constituição Federal, ou promovida a sua “flexibilização” jurisprudencial, a regra que quantificaria a renda daqueles que teriam o dever de pagar seria dotada de baixa densidade normativa, provavelmente atribuída ao terceiro escalão do Poder Executivo, e facilmente alterada diante do primeiro ajuste fiscal baseado na austeridade seletividade, podendo levar a praticamente todos o ônus de pagar.
No entanto, não faltariam vozes para aplaudir o fim do ensino público gratuito a partir de exemplos extraídos de outros contextos históricos e sociais, de casos bem-sucedidos de universidades públicas pagas, a despeito do seu caráter excludente para a maioria da população, como revelam as intermináveis dívidas de estudantes norte-americanos com o crédito educativo, que atormentam o início de sua vida profissional. Hoje, não há mais dúvida que o investimento intensivo que os países hoje desenvolvidos fizeram em educação a partir do financiamento público, foi um dos principais fatores de sua equalização social e desenvolvimento econômico[2].
A falta de acesso da população à educação superior acaba também comprometendo a própria eficiência econômica, pois como adverte Branko Milanovic[3], “se o acesso dos jovens a uma boa educação depende fortemente da riqueza dos seus pais, isto equivale a privar a sociedade das qualificações e conhecimentos de um segmento grande dos seus membros (os pobres) (…). Em qualquer caso, a sociedade decide que as competências de um determinado grupo de pessoas não serão utilizadas. Economicamente, é pouco provável que tais sociedades tenham sucesso. “
Por outro lado, para permitir que as pessoas saiam da pobreza a partir dos seus próprios esforços é necessário promover investimentos estatais, por meio da educação superior, se não queremos ser um país mero exportador de matérias-primas, reduzindo o caráter elitista do acesso das pessoas pobres ao topo da pirâmide.[4] Deste modo, o papel dos investimentos em educação como fundamento do desenvolvimento econômico é destacado por Angus Deaton[5], para quem, nos países onde o poder é concentrado em poucas mãos, os ricos se opõem à emancipação da maioria e a educação é restrita à elite.
Como destaca François Bourguignon[6], o nivelamento das desigualdades educacionais através da padronização da qualidade das escolas, permitindo o acesso dos melhores alunos ao ensino superior, também contribui para uma divisão menos desigual da renda. Para o autor francês, os progressos verificados no campo da educação podem representar, ao longo do tempo, um crescimento econômico mais rápido e mais igualitário.
Ademais, a adoção de um modelo de educação pública, gratuita e universal, em que os filhos dos trabalhadores tenham as mesmas possibilidades de acesso à universidade de qualidade do que os filhos dos setores mais abastados, é o maior fator de coesão social que pode ser estabelecido por políticas públicas. Ao revés, uma educação superior excludente, exacerba a desigualdade social, constituindo um elemento de enorme divisão social, sendo, ao mesmo tempo, causa e consequência da desta última[7], uma vez que as diferenças no padrão de vida constituem indicadores de diferenças de estatuto. De modo geral, cada pessoa tem a tendência a escolher os amigos entre aqueles que lhe são mais iguais.
Como dizem Richard Wilkinson e Kate Pickett[8]: “A posição de cada um na hierarquia social afeta a visão que temos de quem pertence ou não ao nosso grupo – numa dicotomia “nós” e “eles” – e afeta igualmente a capacidade de nos identificarmos e simpatizar com as pessoas. A desigualdade não só tem impacto na forma como o outro, que menos possui, é desprezado, como afeta também outros tipos de discriminação como o racismo e o sexismo, gerando atitudes que são justificadas pelo pensamento de que “essas pessoas têm um tipo de vida completamente diferente do nosso”.
Assim, o aumento da desigualdade alimentado por um sistema educacional excludente é um grande fator desagregador da coesão social, tornando inviável que as pessoas considerem que estão no mesmo barco, na expressão de Chuck Collins,[9] com a construção de paredes físicas onde os mais ricos vivem em condomínios cercados de seguranças, e mantêm com os pobres uma relação de medo, distância, mal-entendidos, desconfiança de classe e antagonismos raciais, e perda da solidariedade social, que sempre pressupõe que as pessoas se conheçam, frequentem as mesmas instituições escolares e culturais.
Para Robert Frank[10], os ricos criaram o seu próprio país virtual, construindo um mundo completamente fechado em si mesmo, com o seu próprio sistema de saúde, sua rede de viagens, seus clubes, sua própria economia, não apenas ficando ainda mais ricos, mas tornando-se financeiramente estrangeiros com a criação de seu próprio país dentro do país, sua própria sociedade dentro da sociedade, sua própria economia dentro da economia.
Deste modo, fica claro que o acesso de todos os cidadãos às mesmas escolas, com os mesmos direitos e obrigações, é o caminho mais fácil para atingir a igualdade de oportunidades e a coesão social necessárias à preservação de uma democracia social. Assim, o caráter distributivo do orçamento deve ser efetivado pelas receitas públicas, a partir de um sistema tributário progressivo, que tribute mais os ricos do que os pobres, a fim de financiar, pela via da despesa pública, serviços públicos universais, como é o exemplo adotado nos países escandinavos e pela Europa ocidental antes da introdução das políticas neoliberais implementadas desde os anos de 1980, que tanto contribuíram para o aumento da desigualdade social.
Em consequência, a despeito da possibilidade das universidades gerarem os seus próprios recursos, a partir de projetos, doações e outros cursos – que não componham a formação acadêmica formal, como graduação, mestrado e doutorado – o seu financiamento não pode depender dessas iniciativas, pois a origem pública do custeio é a garantia da democracia no acesso e da independência na pesquisa científica. Por outro lado, a autonomia universitária depende da adoção de mecanismos que confiram efetividade no plano financeiro a ela, a partir de mecanismos como a transferência compulsória de duodécimos orçamentários mensais.[11]
Assim, a manutenção do ensino superior público e gratuito para todos é não só a garantia da permanência de sua gratuidade, mas a pavimentação de um ambiente de coesão social entre egressos de vários segmentos, que desapareceria com a divisão entre pagantes e não pagantes. A implementação do sistema de cotas, que abriu as universidades brasileiras aos mais pobres, com todos os problemas financeiros para a sua completa efetivação, provou que esse caminho é possível a partir da atribuição da Universidade pública de um papel de ponta de lança com uma política pública de inclusão, ascensão e combate à desigualdade social. O retorno social e econômico é garantido.
Ricardo Lodi Ribeiro é Diretor da Faculdade de Direito da UERJ. Professor de Direito Financeiro da UERJ.
[1] NIEROTKA, Rosileia Lucia; TREVISOL, Joviles Vitório. “Os jovens das camadas populares na universidade pública: acesso e permanência”. R. Katál., Florianópolis, v. 19, n. 1, p. 22-32, jan./jun. 2016, in: https://periodicos.ufsc.br/index.php/katalysis/article/view/40150/31961. Acesso em 03/08/2017.
[2] MEADE, James E. Efficiency, Equality and The Ownership Property. New York: Routledge, 2012, p. 33.
[3] MILANOVIC, Branko. Ter ou Não Ter – Uma Breve História da Desigualdade. Trad. Francisco Liz. Lisboa: Bertrand, 2012, p. 24-27.
[4] CHANG, Ha-Joon. Economia: Modo de Usar – Um Guia Básico dos Principais Conceitos Econômicos. Trad. Isa Mara Lando e Rogério Galindo. São Paulo: Schwarcz, 2015, 311.
[5] DEATON, Angus. The Great Escape: Health, Wealth, and the Origins of Inequality. New Jersey: Princeton University Press, 2013, p. 164.
[6]BORGUIGNON, François. The Globalization of Inequality. Trad. Thomas Scott-Railton. New Jersey: Princeton University Press, 2015, p. 145, 167 e 170.
[7] STIGLITZ, Joseph, O Preço da Desigualdade. Trad. Dinis Pires. Lisboa: Bertrand, 2014, p. 131.
[8]WILKINSON, Richard; PICKETT, Kate. O Espírito da Igualdade – Porque Razão as Sociedades Mais Igualitárias Funcionam Quase Sempre Melhor. Trad. Alberto Gomes. Lisboa: Editorial Presença, 2010, p. 77-78.
[9] COLLINS, Chuck. 99 To 1 – How Wealth Inequality Is Wreck The World And What We Can Do About It. San Francisco: Berrerr-Koehler, 2012, p. 79.
[10] FRANK, Robert. Richistan: A Journey Through the American Wealth Boom and the Lives of the New Rich. New York: Crown Publishers, 2007, p. 3-4.
[11] RIBEIRO, Ricardo Lodi. A autonomia financeira da universidade pública. Revista Colunistas – Direito do Estado nº 334/2007. In: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/Ricardo-Lodi-Ribeiro/a-autonomia-financeira-da-universidade-pública
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