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8 de Maio de 2024
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    Como se pode narrar uma decisão judicial

    há 10 anos

    A teoria da decisão judicial é atravessada por uma aporia incontornável: se, de um lado, parece idílico, no atual estágio da arte, exterminar por completo a discricionariedade da decisão judicial, embora não se desista; de outro, o estado de natureza hermenêutico (Streck), que torna o é-porque-é fonte do Direito por excelência, torna a atividade judicante um jogo que requer dos seus jogadores destreza, estratégia e sorte, elementos que passam ao largo do ensino jurídico professado nas escolas de graduação.

    Essa discricionariedade (inautêntica) acaba por se tornar obstáculo à concretização de direitos e de garantias constitucionais, fazendo com que esta problemática, que está no epicentro da teoria da decisão judicial, atrite-se também com as teorias críticas do Direito de viés interdisciplinar, com a hermenêutica jurídica e com as teorias constitucionais da argumentação jurídica e do garantismo. Os dramas que envolvem a construção de uma teoria da decisão judicial estão presentes tanto nas (i) narrações do fenômeno jurídico feitas em âmbito acadêmico, quanto na narratividade que é materializada na (ii) atividade judicante, por todos que participam do processo judicial (desde a narração do Poder Legislativo, passando pela prática narrativa dos profissionais que atuam representando as partes nos processos, até a narratividade dos julgadores nas decisões judiciais).

    Na academia se digladiam diferentes narrações do fenômeno jurídico que oferecem um manancial de instrumentais teóricos acerca da decisão judicial que prometem, de lado a lado, o controle (ou amenização dos efeitos) da discricionariedade. Na práxis judicial, o drama da discricionariedade se materializa tanto por conta do solipsismo e da ignorância do senso comum teórico dos juristas, que efetivamente não ancoram suas decisões em nenhuma teoria por absoluto desconhecimento; quanto pela utilização retalhada das propostas de interpretação e aplicação presentes nas teorias contemporâneas da decisão judicial, que, invariavelmente, não são capazes de inserir a condicionante da pré-compreensão que se antecipa ao dilema da discricionariedade na atividade jurisdicional.

    Esse conhecido dilema foi o mote para que o jurista espanhol José Calvo González, estudioso da intersecção Direito e Literatura, utilizasse a teoria literária para fazer com que a decisão deixasse de, paranoicamente, buscar Verdades Maiúsculas, para, a partir das narrações produzidas de lado a lado no jogo do processo, se pudesse extrair não Verdades, mas verossimilhanças narrativas.

    A Teoria Narrativista do Direito proposta por José Calvo González está inserida na dimensão interdisciplinar de estudos de aproximação entre o Direito e a Literatura e se filia à noção de um Direito ondulado, que intenta amenizar a rigidez do Direito por meio de propostas de inserção de características como a flexibilização (Carbonier) e a ductibilidade (Zagrebelsky). Ela se situa precisamente dentro de um dos sintagmas gramaticais que, segundo Calvo, funcionam como pontes capazes de articular o jurídico e o literário. Muito embora se possa contemplar as perspectivas do Direito na Literatura e do Direito da Literatura, é o Direito como Literatura que aproxima a narratividade literária da decisão judicial, pois apresenta os produtos jurídicos como criações literárias (literatura legislativa, judicial, doutrinária, etc.) e submete a perspectiva metodológica de cânone literário à análise crítica e compreensiva dos discursos, experiências, critérios interpretativos e construtivos jurídico-dogmáticos.

    Essas novas virtudes revelam a elasticidade, a adaptabilidade e a fluidez como propriedades ou condições das formas figuradas do Direito contemporâneo. Para Calvo, essas novas características destacaram parâmetros figurativos do Direito que a purificação do normativismo jurídico kelseniano havia ocultado e, desde logo, impedido. Foi nesse ponto, precisamente, que a linha reta do Direito começou a riçar-se, de modo a formar uma linha ondulada.[1]

    A Teoria Narrativa do Direito desloca a ênfase geralmente dada à decisão judicial, que se preocupa, antes, com uma coerência de caráter normativo, e não com a coerência das narrativas feitas pelos concernidos/jogadores. Dito de outro modo: Calvo percebe a overdose de teorias acerca da norma jurídica e a carência de análise dos fatos do processo judicial. Assim, a coerência narrativa dos fatos no processo judicial é o produto jurídico extraído a partir do uso da narratividade, que é um instrumento originariamente literário. A necessidade de alternativas para o dilema da discricionariedade nas decisões judiciais pode ser considerada efeito do falacioso constructo da segurança jurídica. É pela necessidade de conhecimento prévio sobre os efeitos da aplicação da norma, que o ideal de segurança jurídica ainda sustenta mesmo que de modo subliminar as principais teorias da decisão. O misoneísmo como instinto psíquico de negação do novo, encontra no ideal de segurança jurídica um aliado.

    Como uma fábrica de relatos, a análise da produção dos textos elaborados pelo Poder Judiciário e da narratividade aí embutida, segue a trilha das demais teorias da decisão, já que pretende, igualmente, constituir-se como tentativa de controle do poder de arbítrio do julgador.

    Ainda que parcialmente conhecida no Brasil (André Karam Trindade, Lenio Streck, Luis Olivo Cancellier, Germano Schwartz, Alfredo Copetti etc.), a hipótese da justificação judicial a partir do conceito de coerência narrativa se transformou ao longo da obra de Calvo. Inicialmente, na obra Derecho y Narración, o autor afirma que a coerência narrativa se relaciona com a teoria da argumentação jurídica, para proporcionar o desenvolvimento da atividade jurisdicional como teste de verdade ou probabilidade nas questões de fato ou dos fatos controversos que carecem de uma prova diretamente observável. Uma vez que a verdade não pode ser dada, cabe ao produtor da verdade a tarefa da redescrição, como sugere o filósofo Richard Rorty, dado que a linguagem, além de nos sustentar no mundo, dá sustentação ao próprio mundo. Rorty se aproxima de Calvo tanto pela similitude que a proposta de redescrição tem com a de narratividade, quanto pelo fato de que Rorty, assim como Calvo, percebe que a cultura literária, muito mais do que a ciência, oferece uma multiplicidade de alternativas para ampliar os vocabulários capazes de redescrever e narrar os fatos, estejam eles ou não dentro do espectro jurídico. Além disso, quando Calvo elogia a verossimilhança como pressuposto de validade da coerência narrativa nas decisões judiciais[2], também se aproxima de Rorty, para quem a redescrição é a narração fragmentada de uma verdade que está condenada à parcialidade de quem a descreve.

    Calvo sustenta que um enunciado fático acaba sendo discursivamente coerente como resultado, também, do influxo de subsistemas de sentido como são a memória individual ou os imaginários sociais. [3] Assim, para que se possa aprofundar o amplo espectro do conceito de coerência narrativa na decisão judicial e para que também seja possível colocá-lo à prova, faz-se necessário confrontá-lo com o conceito de consistência narrativa[4], uma vez que este busca identificar os elementos precedentes ao fato, situados na pré-compreensão de quem, depois, os narrará no processo judicial. E disse complexo processo se faz decisões, embora não se saiba, na maioria das vezes.

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    Fonte: Conjur - Alexandre Morais da Rosa e Paulo Ferrareze Filho

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    [1] GONZÁLEZ, José Calvo. O Direito Curvo. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2013.

    [2]GONZÁLEZ, José Calvo. El discurso de los hechos. Editorial Tecnos: Madrid, 1993, p. 75-77.

    [3] GONZÁLEZ, José Calvo. O Direito Curvo..., p. 38.

    [4]Conforme GONZÁLEZ, José Calvo. O Direito Curvo..., p. 38, [...] é claro que para a Teoria Narrativista do Direito, também no estudo das estruturas e estratégias narrativas sobres os fatos (e as normas), o problema da consistência narrativa é relevente, se talvez não for o primeiro que deveria ter sido posto.

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