Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
16 de Junho de 2024
    Adicione tópicos

    Crônica: vítimas da violência

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    Sou servente aqui na escola. Posso fazer uma pergunta?

    Sim, claro que pode.

    Meu filho foi assassinado na porta da minha casa faz cinco anos. Até hoje o assassino do meu filho não foi julgado. O senhor que falou tanto das prisões e que precisamos olhar para essas pessoas presas, o senhor acha justo o assassino do meu filho não pagar pelo que fez?

    Como juiz da execução penal, numa noite quente de verão, eu havia ido num colégio em Joinville para falar com adolescentes sobre direitos humanos, prisões, violência. A minha frente, estudantes, professores, pais de alunos lotavam o salão. Aos fundos uma senhora, em pé, segurando uma vassoura. Minha fala fazia parte de uma série de palestras em escolas, a partir de um projeto desenvolvido junto à Agência de Desenvolvimento Regional e Gerência de Educação.

    Essas palestras eram importantes para mostrar aos estudantes que existem referências sólidas e instituições do Estado nas quais eles podem se apoiar e ter como norte. Além disso, conversar sobre violência urbana, respeito às leis, à Constituição era, não só fundamental, como gratificante para mim.

    Sempre saia dos eventos exausto, mas especialmente renovado de energias, pois percebia que a juventude, os professores, os trabalhadores da educação continuavam a acreditar em um mundo melhor, mais digno. Também eram oportunidades para desenvolver temas caros para a sociedade, como os direitos humanos e as garantias constitucionais, bem como para trazer aquele ambiente educacional um pouco dos estudos feitos e experiências vividas em sede de direito, criminologia e execução penal.

    Numa linguagem que tentava fugir um pouco da técnica eu tratava de esclarecer sobre os tempos do absolutismo, passando pela revolução francesa, seguindo no positivismo até as duas grandes guerras do século XX e o holocausto. Assim, explicava o nascimento em 1948 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

    Depois falava sobre a Constituição Federal, para então adentrar no fenômeno da violência urbana, na necessidade de se buscar um mundo não violento através do respeito às leis e em especial através da redução da desigualdade social e econômica, com oferta de oportunidades iguais de partida e de percurso para todas as pessoas, mais investimento na educação, num país de cidadãos e não apenas de consumidores.

    Finalmente, adentrava na questão das prisões e das graves violações que esses navios negreiros do século XXI praticam, procurando ser solidário para com os atores do sistema de justiça criminal. Eu deixava todos bastante à vontade para me interromper, perguntar, opinar, criticar. E interrupções, perguntas, opiniões e críticas sempre aconteciam, no começo um pouco envergonhadamente, mas depois de um tempo absolutamente espontâneas, pertinentes e respeitosas. Daquela vez não tinha sido diferente.

    Mas o ponto de distinção foi aquela senhora aos fundos, primeira a perguntar. E que pergunta profunda! Como a vida podia ser tão cruel. Se ao menos os atores jurídicos, os governantes e parlamentares pudessem ouvir aquela mulher! Mas não, muitos preferem não ouvir, não ver, não olhar, preferem apostar atrás de interesses nem sempre claros no recrudescimento das leis penais e no superencarceramento cruel e desumano, tendo neles as pílulas milagrosas da segurança, que por esses caminhos jamais será alcançada.

    Por isso a importância do estado criar e fortalecer redes de atenção para essas pessoas vítimas da violência. Não se pode mais deixá-las no abandono. E uma das hipóteses talvez encontre efetividade na chamada justiça restaurativa, que visa resgatar o protagonismo da vítima na superação dos traumas sofridos.

    Enquanto isso, ao juiz da execução penal cumpre fazer seu trabalho, que por imperativo legal significa tratar dos processos dos apenados, cumprir a Constituição e respeitar os direitos fundamentais, com isso reduzindo os danos do aprisionamento sobre a pessoa e aumentando a possibilidade de seu retorno à liberdade em harmonia social.

    Minha senhora, eu não tenho como sentir o que a senhora está sentindo, não tenho como saber o quanto essa dor machuca – comecei a responder aquela mulher, procurando as palavras que transmitissem a sinceridade que era necessária – O que eu posso lhe dizer é que hoje eu estou aqui, falando com todos, porque eu desejo que o mundo não tenha mais violência, que não existam mais vítimas, que outras mães não percam seus filhos assassinados na frente de suas casas. Eu acredito que isso é possível, eu tenho essa esperança. Por isso continuo a fazer meu trabalho – e continuando, ainda esclareci sobre o excesso de serviço a que os juízes estão sujeitos, as pilhas e pilhas de processos que precisam julgar, sem nunca esquecer que atrás de cada documento existe uma pessoa, um ser humano – E respondendo finalmente à sua pergunta – finalizei – não, não é justo que a pessoa que matou o seu filho ainda não tenha sido julgada.

    Novas questões vieram, sobre todos os assuntos, desde as drogas, armas, inviolabilidade do domicílio, direito à ampla defesa, legítima defesa, até conflitos familiares e estatuto da criança e do adolescente. Tarde da noite, terminada a palestra, enquanto arrumava o material sobre a mesa, ouvi uma pessoa se dirigindo a mim.

    Agora eu entendo o seu trabalho –parada ao meu lado estava a mulher da pergunta inicial. Sem tempo para responder, ela deu um passo a frente e me abraçou forte – Eu não acreditava mais na Justiça. Agora voltei a acreditar. Obrigada – disse ela com a voz embargada.

    Fiquei sem reação, sem palavras, emocionado. Ela era a vítima, mas era eu que sentia muito.

    João Marcos Buch é juiz de direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Joinville e escritor.

    • Sobre o autorMentes inquietas pensam Direito.
    • Publicações6576
    • Seguidores948
    Detalhes da publicação
    • Tipo do documentoNotícia
    • Visualizações135
    De onde vêm as informações do Jusbrasil?
    Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/cronica-vitimas-da-violencia/507400717

    0 Comentários

    Faça um comentário construtivo para esse documento.

    Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)