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19 de Junho de 2024
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    Crowdfunding estatal: alternativa para entes públicos

    Publicado por Justificando
    há 8 anos

    Imagine-se uma ferramenta mobile (aplicativo para smartphone) por meio da qual o cidadão, georreferenciado, poderia reportar focos e criadouros do mosquito Aedes Aegypti diretamente para o Ministério da Saúde que, em contato com estados e municípios, remeteria equipes para desmantelar a situação. Além de menos custoso e ágil, o Ministério da Saúde teria acesso a uma série de dados e metadados para construir um mapa de calor dos focos que, com inteligência artificial, de baixo custo, hoje plenamente acessível, preveria com razoável grau de confiança onde e quando surgiriam novos focos, auxiliando sobremaneira no combate ao zika vírus, dengue e chikungunya.

    Não faz mais sentido exigir que o cidadão realize uma chamada telefônica para um telefone fixo da Administração Pública - como ocorre atualmente - na era do smartphone, do 3G/4G, do Wifi, do GPS, do Whatsapp e do Google Maps.

    Infelizmente, iniciativas tecnológicas como essa, cujo desenvolvimento é relativamente simples em razão dos notórios avanços na área de programação de aplicações eletrônicas, ainda passam ao largo das iniciativas empreendidas pelo Estado brasileiro.

    Já não mais espanta a percepção de que o empreendedorismo e a inovação tecnológica podem ter impacto maior para o desenvolvimento socioeconômico do que arranjos e revoluções jurídico-políticas. Desde há muito tempo, novidades tecnológicas são experimentadas, com variados graus de êxito, em diferentes contextos para a resolução de problemas da sociedade (comunicação, locomoção, produção de alimentos, comércio, logística, engenharia, medicina, etc).

    Apesar da razoável celeridade com que os indivíduos incorporam as novas tecnologias, a Administração Pública ainda não consegue adotar o mesmo ritmo. Seja por questões burocráticas ou legais, a Administração Pública não tem revelado a mesma desenvoltura da iniciativa privada no que se refere à assimilação e à incorporação de processos e tecnologias em sua rotina de atividades. E o que é mais grave: não raramente os seus contratos administrativos adquirem tecnologias obsoletas, são celebrados por valores acima do mercado e com prazos de desenvolvimento extremamente elásticos. Exemplo claro de insucesso é a implementação de ERP (software de gestão) pelos Correios, que levou mais de 7 anos para a sua completude [1] e ainda assim apresenta uma série de problemas [2].

    O que justifica este cenário remete a elementos próprios da Administração Pública contemporânea, como a lentidão dos seus processos administrativos e a cultura de baixa tolerância a riscos. O temor aos órgãos de controle, hoje potencializado por uma cultura de desconfiança da sociedade sobre as relações público-privadas contratuais, fomenta uma postura mais conservadora dos agentes públicos, em oposição à criatividade e o arrojo característicos de quem investe em desenvolvimento tecnológico.

    Aliás, o próprio processo de identificação de qual a tecnologia necessária para a satisfação de uma necessidade pública é mais penoso, uma vez que o know-how tecnológico dificilmente pertence de forma orgânica à Administração Pública. Esta assimetria informacional é agravada pela ausência de procedimentos administrativos típicos para a condução de diálogos público-privados legítimos entre a Administração Pública e a iniciativa privada.

    Na prática, o resultado é que um Município, por exemplo, ao contratar serviços de desenvolvimento de um aplicativo para smartphone na plataforma iOS passará por um processo infinitamente mais complexo e moroso do que uma startup. Noutro exemplo, dificuldades semelhantes ocorrerão para a contratação de um sistema informatizado para a administração de serviços de uma unidade hospitalar, o que é um processo relativamente simples para a iniciativa privada.

    Ainda que superados os obstáculos de ordem técnica e financeira, o processo de contratação de um produto ou da prestação de um serviço leva um período tão longo que, muitas vezes, quando concretizado, o seu objeto já perdeu a eficácia planejada para satisfazer aquela determinada necessidade pública.

    Diante deste cenário, propõe-se uma alternativa.

    Alternativa

    A ideia apresentada neste texto encontra-se alinhada à noção de economia do compartilhamento. O plano é empregar a lógica dos crowdfunding para financiar contratações públicas compartilhadas na área tecnológica.

    Os pressupostos fáticos assumidos como verdadeiros para esta proposta são os seguintes: (i) existe uma oferta reprimida de desenvolvedores de tecnologia, que poderiam oferecer soluções com maior relação entre benefício e custo para a Administração Pública brasileira; (ii) o modelo de contratação compartilhada (crowdfunding) para o desenvolvimento de novas tecnologias é atrativo para esses desenvolvedores; (iii) em inúmeros casos, uma mesma tecnologia, ainda que de forma autônoma, pode ser aproveitada por diferentes órgãos e entidades da Administração Pública; (iv) atualmente, os órgãos e entidades da Administração Pública brasileira contratam individualmente o desenvolvimento de tecnologias.

    A solução proposta é de reunir um grupo de potenciais órgãos e/ou entidades contratantes para o financiamento do desenvolvimento de uma determinada tecnologia. Os entes públicos contribuíriam, individualmente, com uma parcela do valor, de forma a realizar uma contratação compartilhada. Formaria-se, assim, a partir da contribuição parcial de de diferentes órgãos ou entidades da Administração Pública, uma espécie de crowdfunding público. Veja-se o seguinte diagrama:

    Os maiores benefícios do crowdfunding público para a contratação compartilhada de tecnologias decorrem da economia de escala, da padronização e da viabilidade de replicação desses produtos tecnológicos. Futuramente, inclusive, é possível que surjam plataformas eletrônicas dedicadas exclusivamente a realizar o intercâmbio de informações e propostas entre agentes públicos e empreendedores. Neste contexto, é provável que uma cultura de maior transparência, participação e responsividade seja incorporada nessas contratações.

    Aspectos jurídicos

    A despeito das dificuldades anteriormente apresentadas, o ordenamento jurídico brasileiro confere um caráter desenvolvimentista ao Estado, especialmente no que se refere ao setor tecnológico, tanto para o fomento à iniciativa privada como para o desenvolvimento e assimilação de novas tecnologias pela Administração Pública.

    Prova disso é a recente promulgação do Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação (Lei Federal nº 13.243 de 11 de janeiro de 2016), que simplificou o processo de contratação de “produtos para pesquisa e desenvolvimento” pela Administração Pública e permitiu a contratação direta, sem licitação pública, de “bens, insumos, serviços e obras necessários para atividade de pesquisa científica e tecnológica, desenvolvimento de tecnologia ou inovação tecnológica, discriminados em projeto de pesquisa aprovado pela instituição contratante.” (inciso XX do art. 6º e inciso XXI do art. 24 da Lei Federal nº 8.666/1993).

    A despeito das críticas que podem ser eventualmente direcionadas à sobredita simplificação, é seguro afirmar que a desnecessidade de licitação pública para a contratação objetos relacionados à inovação e ao desenvolvimento tecnológico descobertou um conjunto de soluções jurídicas que anteriormente era de difícil implementação.

    Uma dessas soluções jurídicas é justamente a simplificação da possibilidade de se estruturar uma operação de crowdfunding público para a contratação compartilhada de uma tecnologia.

    Em termos práticos, basta que os órgãos ou entidades da Administração Pública interessados numa solução disponível no mercado compartilhem a aprovação de um projeto de pesquisa que inclua o desenvolvimento desta tecnologia. Esta contratação pode ser realizada a partir de uma modelagem de aquisição definitiva de tecnologia, de aquição de licenças ou de SaaS - Software as a service.

    Após a verificação do valor total da contratação e a regular identificação do potencial prestador de serviços, os órgãos e entidades participantes podem se associar para a contratação compartilhada, sendo que cada parte remunerará parcialmente o particular até completar o valor total da contratação. A tecnologia desenvolvida pelo particular, então, poderá ser aproveitada autonomamente por cada um desses órgãos e entidades participantes.

    Lembre-se que o compartilhamento do procedimento licitatório, que configura uma operação semelhante, já é uma realidade no âmbito das contratações públicas. No Sistema de Registro de Preços, o Decreto Federal nº 7.892/2013 permite que uma única licitação pública seja realizada para o registro de preços de bens ou serviços que serão posteriormente contratados autonomamente pelos órgãos e entidades participantes.

    A proposta de crowdfunding público para o compartilhamento de uma contratação direta, assim como o compartilhamento de uma licitação pública no Sistema de Registro de Preços, não possui previsão específica na legislação.

    De fato, não há necessidade de previsão legal específica para a contratação compartilhada de tecnologia, uma vez que a única diferença desta contratação para uma contratação comum, no que diz respeito à relação jurídica entre Administração Pública e o contratado, é a cláusula condicional de que a eficácia do contrato está vinculada ao atingimento de um número mínimo de contratações por outros órgãos e entidades da Administração Pública. Ou seja, é preciso atingir a "meta" do crowdfunding para que as obrigações contratuais sejam exigíveis para ambas as partes.

    Dessa sorte, cada órgão ou entidade da Administração Pública será responsável pelo seu próprio contrato administrativo e por todo o processo de pagamento (empenho, liquidação e pagamento). Apesar da independência entre os partícipes, é recomendável que esta relação de associação para a compra compartilhada seja formalizada por meio de um ajuste próprio, a fim de estruturar e organizar a operação de crowdfunding.

    Luccas Augusto Adib é Bacharel pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), diretor-executivo da EvoBra - Inovação em Políticas Públicas.
    Gustavo Henrique C. Schiefler é Bacharel e mestre em Direito (UFSC). Doutorando em Direito do Estado (USP). Consultor e professor na Zênite Informação e Consultoria S/A. Advogado.
    REFERÊNCIAS 1 PLANO EDITORIAL, Forum TI & Governo. Após sete anos, os técnicos dos Correios concluem a instalação do ERP. Disponível: . Acesso em: 06 de junho de 2016. 2 TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Acórdão nº 1.775/2012. Plenário. Relator: Ministro. Walter Alencar Rodrigues. Sessão de 11/7/2012. Diário Oficial da União, Brasília, DF.
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