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3 de Maio de 2024
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    Cura Gay: apertem os cintos, o bom senso sumiu!

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    Ato contra a decisão que autorizou a “cura gay”. Foto: NELSON ALMEIDA / AFP

    “ A estupidez não seria moralmente má se ficasse quieta no seu canto, besta e fátua da falta de discernimento de si mesma. Mas a incapacidade da falha do juízo que caracteriza sua obtusidade a produz justamente como alienação de si, prepotente e plena. E, porque ignorante de si, imediatamente manipulável. ”

    – João Adolfo Hansen

    Quando era estudante de Direito nas Faculdades Metropolitanas Unidas, nos idos de 1997 a 2001, existia uma lenda urbana jurídica denominada “Desordem no Tribunal”. Tratava-se de um livro cômico, no qual destacavam “casos verídicos” (não provados) dos mais bizarros erros judiciais ocorridos dentro dos Tribunais, cujo absurdo é tamanho que era difícil crer se de fato Juízes, Advogados e Promotores seriam capazes de cometer tamanhas barbaridades numa corte cujo objetivo é a busca por Justiça, pautada na coerência.

    Nunca achei esse livro, seja em livrarias para aquisição ou mesmo em sebos, bibliotecas ou similares, buscando conhecer estas comicidades. A provável causa não deve ser o esgotamento da obra junto à editora, mas o fato de que este livro nunca existiu.

    No entanto, se existisse, com certeza ele mereceria inclusão de destaque da bela e bizarra decisão liminar proferida pelo Juiz Federal da 14ª Vara do Distrito Federal, Doutor Waldemar Cláudio de Carvalho, que concedeu a dita liminar para que psicólogos (psicólogos ou missionários?!?) possam aplicar tratamento terapêutico de reversão ou reorientação sexual, popularmente conhecido como “cura gay”.

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    Desta medida judicial nascem reflexões importantíssimas para justificar a bizarrice e absurdez da decisão, muitas já amplamente divulgadas na mídia desde sua publicidade, das quais podemos destacar: o tratamento de cura gay é proibido pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) desde 1999; a homossexualidade não é considerada patologia pela Organização Mundial de Saúde desde o final dos anos 1990 (OMS); estas terapias não têm eficácia comprovada nos casos em que a pessoa opta pelo tratamento – quiçá os forçados a esta condição – tampouco há resolutividade da chamada “doença”; este – entre aspas – “tratamento” pode provocar sequelas e agravamentos ao sofrimento psíquico, não tem embasamento científico e, como bem evidenciado pelo Conselho Nacional de Combate à Discriminação de LGBT (CNCD/LGBT), envolvem “tremendo retrocesso social”.

    Sim, são argumentos significativos. Mas existe um argumento pouco mencionado que, a meu ver, sobressai a todos os demais: a total falta de bom senso desta decisão.

    Primeiramente, porque ela traz enorme contradição entre si. A liminar foi concedida em audiência de justificativa prévia na qual o Juízo afirmou a complexidade do tema sob análise e que necessitaria de suporte técnico para resposta às seguintes indagações:

    “a) pretendem os autores divulgar ou propor terapia tendentes à reorientação sexual?;

    b) os autores estão impedidos ou foram punidos pelo CFP por prestarem suporte psicológico, ainda que solicitados e de forma reservada, às pessoas desejosas de uma reorientação sexual?;

    c) no campo científico da sexualidade, em especial no que diz respeito ao comportamento ou às práticas homoeróticas, o que se permite ao psicólogo estudar ou clinicar sem contrariar a Resolução nº 001/1999 do CFP?”.

    As perguntas são deveras pertinentes, as respostas e esclarecimentos colhidos também. A conclusão extraída destes elementos, no entanto, não.

    Isto porque o Juízo colheu informações sobre a questão, destacando inclusive o polêmico Projeto de Lei nº 4931/2016, do Deputado Federal Ezequiel Teixeira (PTN-RJ), denominado “cura gay”, destacando que este “é passível de críticas, na medida em que parece equiparar a homossexualidade a outros transtornos da sexualidade, ideia essa não defendida pelos autores”. Será, Excelência? Que tal analisar a entrevista concedida por uma das autoras desta ação, a autointitulada “Missionária” Rozângela Alves Justino, que afirmou com todas as letras, acentos e destaques que “HOMOSSEXUALISMO (sic) é uma doença. ”

    Se é uma doença, nada de novo no front um Projeto de Lei que busque sua cura. E não qualquer cura: a cura gay! Estas afirmações deixam claras que a pergunta a do rol do Juiz merece um enorme X afirmativo de que há uma pré-disposição dos autores da ação de propor cura do dito homossexualismo baseada em tratamento terapêutico sem qualquer validação científica e sim religiosa: a Missionária em questão divulga em seu blog um infame áudio do comentarista global Alexandre Garcia, sob o título “Esplêndido! Alexandre Garcia desmascara a farsa da ideologia de gênero” onde este faz menção de que há diferença sim entre homens e mulheres e graças a esta diferença nós nos reproduzimos, sendo a questão de caráter meramente biológica e em nada envolvendo os efeitos sociais destas dinâmicas.

    Se estudasse mais a fundo o tema – Alexandre e Missionária – certamente se deparariam com dados que já deixam claro que o sexo biológico, ou seja, a genitália e cromossomos de quando o ser veio ao mundo, não guardam correlação com a orientação sexual, que é um indicador de quem/por quem você sente atração e tampouco guardam ainda correlação com a chamada por eles “farsa” da identidade de gênero, que significa nada além do modo com as pessoas se percebem em relação ao seu gênero, a maneira como cada um de nós nos identificamos a este respeito, pura e simplesmente o gênero com o qual cada pessoa, desde os primeiros dias de socialização, passa a ser interpelada e passa a se reconhecer ao longo da vida.

    Essa psicóloga é tão irresponsável em sua profissão, que propaga mentiras tais como a de que “Brasileiros poderão morrer em massa na infância se for legalizada a “IDEOLOGIA DE GÊNERO E ORIENTAÇÃO SEXUAL” nos planos municipais e estaduais de educação. Isso porque as crianças seriam induzidas nas escolas a experimentarem as mais diversas “identidades de gênero”, tudo disfarçado de política contra a discriminação e o preconceito. ”

    Perguntas b e c respondidas, Nobre Julgador! Por óbvio que uma pessoa que utiliza sua profissão para tecnicamente infirmar inverdades a seus pacientes como soluções terapêuticas, quando na verdade busca evangelizar homossexuais dizendo que são doentes e que para sua condição há cura, por certo que o mínimo a se fazer é aplicar a devida punição administrativa a esta profissional sem ética, bem como criar diretrizes para valorização do real tratamento a que pacientes são submetidos na esfera psicológica.

    Quando você decide que existe possibilidade de tratamento de reversão sexual de uma doença (doença?!?), afirmando-se que este tratamento se encontra em “conformidade com a Constituição” (e tratar os desiguais de modo desigual na medida de sua desigualdade, onde foi parar?!?), sendo que “a melhor hermenêutica a ser conferida àquela resolução deve ser aquela no sentido de não privar o psicólogo de estudar (neste sentido, uma série de pesquisas já vêm apontando no mundo, há pelo menos 50 anos, e no Brasil, há pelo menos 30 anos, a importância da valorização da diversidade e do respeito às identidades consideradas divergentes de uma matriz familiar heterossexual, que podem ser localizadas no campo da psicologia comportamental e na psicologia social, mas também na sociologia, na antropologia, na ciência política, na educação, nos estudos de saúde, na filosofia, no direito, na linguística e nos estudos de políticas públicas, artes plásticas, visuais e audiovisuais, para ficar apenas em alguns campos do conhecimento) atender àqueles que, voluntariamente (será voluntário um tratamento que inicia na indução a erro de que são doentes, de que possuem patologias tratáveis?!?), venham em busca de orientação acerca de sua sexualidade, sem qualquer forma de censura”, o magistrado parece esquecer que as pessoas que procuram estes profissionais trazem angústias e inquietações dentro de si que, mal trabalhadas tecnicamente por quem lhes atende, podem gerar consequências expressivas, seja para o paciente ou mesmo para a sociedade.

    Aliada a esta questão, o atendimento a ser dado “àqueles que, voluntariamente, venham em busca de orientação acerca de sua sexualidade” é simples: você é um doente, uma anomalia e necessita de “cura gay” em detrimento do “compreenda-se, você é um ser pensante que tem oportunidade de ser o que quiser desde que não machuque outros seres, inclusive ante o fato de não se reconhecer em seu corpo físico (genitália) ”. Ou seja: reforça que uma condição normal, mas diferente da tradicional, é anormal.

    Percebe-se a falta de bom senso da decisão, ao se permitir que psicólogos, com autorização judicial, possam se empoderar determinando tratamento homofóbico, impondo a uma pessoa muitas vezes vulnerabilizada por uma série de violências no curso da vida que ela é doente, que o que faz é errado, sem qualquer plausibilidade dos motivos que comprovem a existência dessa doença e real necessidade de cura?

    Outrossim, a sociedade já não progrediu a ponto de não permitir abusividade de poder, impondo-se crenças e valores em unicidade, ou seja, como se apenas uma crença e pequenos valores fossem corretos e os demais erros a serem coibidos?

    Lembremos que não se trata de uma decisão que afeta minorias, como bem nos recordou a ativista trans e assessora do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), Alessandra Makkeda, em seu perfil do Twitter, mas um público de pessoas LGBTs que são calculadas entre 10% a 17% da população brasileira.

    Essa população, no entanto, até a década de 1970, não tinha qualquer orgulho daquilo que é uma condição social, tanto quanto a heterossexualidade, vivendo na penumbra, evitando qualquer exposição pública de sua sexualidade. Eventos como Stonewall, onde em 28 de junho de 1969 alguns gays, lésbicas e transexuais latinas foram severamente atacados pela polícia de Nova Iorque. Por conta de rebelião em represália ao tratamento que sofreram, iniciou-se um importante movimento em defesa dos direitos civis de LGBTs nos EUA, que passou a ser marco da luta LGBT nos anos 1970. Enfatizar que não são doentes e sim revolucionários que conquistaram o direito de ser o que são é essencial.

    Ademais, esta liminar abre perigoso precedente: a de que regras profissionais podem ser interpretadas judicialmente, amoldando-se a premissa não prevista em seu conteúdo. No caso desta liminar: mantenha-se o texto, mas interprete-se sob meu exclusivo prisma de magistrado que sequer atuo nesta especialidade. Pasme se a moda pegar!

    E observando-se a aplicação da Resolução do CFP, não pairam dúvidas de que seu teor nunca impediu o tratamento da sexualidade do paciente, visando impedir tão somente que o profissional “reoriente” homossexuais a tornarem-se heterossexuais, pois como bem alerta o movimento de apoio criado no Facebook: “não há cura para o que não é doença! ”

    Não há como se extrair outra conclusão que a de que esta liminar deve ser cassada com urgência, pois fere de morte a Constituição que alega defender.

    Permitir que tratamentos como este sejam permitidos por pseudoprofissionais como a Missionária homofóbica e psicóloga nas horas vagas Rozangela Alves Justino, autora, reitere-se, da ação em estudo que gerou ofensiva medida liminar, é atacar o direito de igualdade de todos os cidadãos, dos quais destaca-se a população LGBT.

    Já temos na sociedade uma série de doenças – estas sim, doenças mesmo, reais – estigmatizantes, como os portadores de HIV, que sofrem enorme discriminação em sua condição e precisam não só passar por tratamento de suas condições físicas como das dores psicológicas ocasionadas pelo preconceito que sofrem, sendo que, inclusive, esta doença já foi por longo período denominada de “doença gay”. Criar doença ilusória e respectivos tratamentos para a tal da “cura gay” por não aceitarmos o diferente, por não permitirmos as escolhas do indivíduo e por termos dificuldade em entender que ninguém decide a própria ideologia de gênero, que ninguém é obrigado a viver oprimido em sua condição biológica, é não respeitar a dignidade da pessoa humana, princípio basilar de nossa Constituição.

    E se homossexuais, no final das contas, são mesmo “doentes” por serem assim, que possam então padecer desta “doença” incrível de ser o que se é de forma desmedida e que todos possamos respeitar essa feliz passagem desta para outra melhor, proibindo-se cura. Tratemos de compaixão, essa sim merece ser terapeutizada. Até mesmo porque, como sabiamente diz o ditado: “bicha não morre, vira purpurina, meu bem!” E hashtag “fica a dica”: #TrateSeuPreconceito.

    Janaina de Santana Ramon é militante LGBT, advogada trabalhista especializada em Direito Empresarial e Sindical e membro do Grupo de Trabalho – “GT Diversidades” da Crivelli Advogados.

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