Diário de um agente penitenciário: primeiro dia de trabalho no Raio I
Por Diorgeres de Assis Victorio
“Na verdade, como salienta AASHLEY MONTAGU, mestre das Universidades de Nova York e Harvard, não sabemos de maneira científica e detalhada porque o homem se comporta dessa maneira. Ele entende que estamos tão avançados no estudo da violência humana quanto no estudo do resfriado comum ou como estávamos no estudo do átomo em 1889″[1]
Como mencionei anteriormente, no primeiro dia trabalhei junto ao Setor de Cozinha, só que posteriormente transferiram-me ao Raio I, que ficou designado como “Raio dos Seguros” (jurados de mortes, homossexuais e presos que trabalhavam no Setor de Cozinha, enfermaria e que faziam a faxina na área da Administração da Cadeia, assim como a faxina da Galeria da Unidade, seguindo com a limpeza até a Gaiola 2, Gaiola essa que dava acesso aos Raios II e III, assim como ao “Castigo” (Celular Disciplinar, ou “pote” como preferem chamar os presos, pelo fato que os presos que cometiam faltas disciplinares via de regra “ficavam de molho” naquele local sem direito ao banho de Sol) também dava acesso ao “Seguro” (MPSP – Medida Protetiva de Seguro Pessoal).
Ao adentrar ao Raio I, percebi que eu estava sem o tal “Chico doce” e que agora eu estava junto aos presos. Verifiquei que não havia uma grade que separasse os presos dos agentes, observei que os presos estavam soltos e passavam pelos agentes a todo momento, nos olhavam com atenção. Estava ocorrendo uma partida de futebol, outros presos corriam em volta da quadra, outros lavavam roupas, porque na verdade nada na cadeia era de graça, apesar de ter uma lavanderia os presos que trabalhavam lá cobravam por lavarem a roupa e os presos tinham que “pagar madeira” (deixar ser explorado) para terem suas roupas lavadas. Um milhão de informações passaram em minha mente em segundos, aí que fui conversar com os outros agentes que ali estavam.
Eu mais uma vez não entendia nada do que eu tinha que fazer e como fazer, nisso os funcionários que ali estavam saíram e me deixaram sozinho no Raio, acho que queriam me testar, ver se eu estava com medo, se eu ia pedir para sair de lá ou algo dessa natureza. Permaneci ali e pensei comigo que como eu não sabia de nada, não tinha feito nenhum curso de formação, nem sequer tinha sido orientado, eu não tinha outra alternativa a não ser falar somente não a todos os presos que viessem pedir algo a mim, pois eu tinha receio de fazer algo de errado e ser advertido ou punido por isso.
Não demorou muito e apareceu um preso muito educado e me disse: “- Mestrão, o senhor não pode ver a “fitinha” da tesoura para mim” (ele queria que eu providenciasse e fosse buscar a tesoura para ele)? “-O senhor não está com a tesoura aí para me dar?” Respondi mais que rapidamente que não ia dar tesoura alguma, porque ele não podia ter tesoura na mão, porque é uma “arma” e etc. O preso foi embora com uma cara de não estar entendendo nada. Alguns minutos depois entrou o responsável pelo Raio I (conhecido como zelador do Raio), nisso o tal preso que me pediu a tesoura voltou e pediu a tesoura a esse funcionário e para meu espanto ele entregou a tesoura para ele. O preso olhou-me com um olhar tipo “ta vendo só como podem me dar à tesoura?” Mais uma vez não entendi nada, e disse ao agente que entregou a tesoura que como que pode ele ter dado um objeto assim tão perigoso ao preso, explicando que no Exército os cadarços dos tênis, cintos e etc são todos retirados da posse do preso para eles não se matarem ou não matarem alguém e etc e como que ele na cadeia tinha uma tesoura.
O agente me respondeu: “- Ué, mas como que o “barbeiro do Raio” vai cortar o cabelo dos presos sem tesoura?” Eu disse ao agente: “- Barbeiro, que legal, um preso que corta o cabelo dos presos de graça!” O agente sorriu e disse-me: “ – Aqui na cadeia nada é de graça, todos querem a sua “cara” (parte, porção que lhes cabe). E perguntei com era feito esse pagamento e ele respondeu-me que dinheiro na cadeia é cigarro e que cigarro, já com o maço ou a caixinha aberta, vale menos do que os fechados. Aí explicou-me que esse preso também “ganhava a remição de pena” e que o fato de trabalhar na cadeia também auxiliava na elaboração dos benefícios quando o mesmo estivesse no prazo para solicitar (lapso temporal). Fiquei muito curioso com todas essas informações e aí iniciei os estudos no cárcere. Algum tempo depois escutei o funcionário gritar no Raio: “- Boieiro” (preso que serve a bóia aos demais, na verdade lá não falamos serve bóia, falamos “paga a bóia”). Nisso automaticamente o jogo de futebol parou. Percebi que existiam regras específicas de convívio na cadeia[2].
Saíram dois presos do Raio e depois voltaram empurrando dois carrinhos com “panelões”. Quando esses presos adentraram ao Raio um preso gritou: “- Olha a bóia” Observei que os presos que estavam sem camisa e de shorts ou bermudas não podiam nem ao menos pisar nas calçadas que ficavam em frentes das celas. Um carrinho era empurrado pelo tal “boieiro” que viu um tênis para fora do barraco, pegou o mesmo sem dizer nada e jogou em cima do telhado. Eis mais uma regra da cadeia, a higiene do local. Observei que não podiam abrir as portas das celas também quando os boieiros pagavam a bóia, outra regra de conduta da cadeia. Os boieiros “pagaram” a bóia a todas as celas e depois saíram com os carinhos do Raio I, nisso iniciou-se mais uma vez o jogo de futebol e o Raio voltou a sua normalidade. Fui analisando quem eram esses tais “boieiros” e como funcionava quem os escolhia e questionei o zelador de Raio sobre isso. Ele disse-me que quem escolhia os boieiros eram eles mesmos e via de regra eram os presos mais respeitados e temidos do Raio.
Homossexuais (conhecidos no cárcere também como garotos, não podiam ser boieiros, faxinas e nem “debater”, não tinham voz no cárcere, observei também que os homossexuais moravam na mesma cela, infelizmente lá também não poderia ser diferente da “rua” e assim não sofrerem discriminações não é mesmo?). Observei que agora existiam presos que faziam a faxina tendo em vista que tinham acabado de “pagar” a bóia e perguntei ao zelador quem eram eles e ele disse-me que eles eram os “faxinas do Raio” também presos muito perigosos e etc. Fiquei observando o comportamento desses novos “atores” do cárcere, os boieiros e os faxinas, já tinha até esquecido do “barbeiro”. Por volta das dezesseis horas observei que vinham alguns presos e pediam ao zelador do Raio para ficarem na “correria” (soltos) (eram presos que ficavam vendendo roupas, tênis, camisas etc, assim com também entregavam cigarros e outros objetos de uma cela para outra cela, prestando favores aos já trancados e nisso ganhavam uns “picados” (cigarros picados e/ou até maços, é o meio que alguns se utilizavam para viver na cadeia porque às vezes não tinham visitas e nem trabalho no cárcere, pois a falta trabalho sempre foi um problema antigo no cárcere em virtude da ociosidade, pois como dizem: “- Mente vazia é a oficina do diabo”. Lamentável essa dificuldade em conseguir que uma “fábrica” “se instale” em uma cadeia, não adianta na teoria sabermos dos efeitos benéficos da laborterapia, sendo que na pratica o resultado é outro.
Ao final do dia descobri que existia mais um ator, o “carteiro”, isso mesmo que os senhores imaginam, um preso que desempenhava a função de entregar as cartas que chegavam “da rua” e distribuir aos sentenciados, esse preso possuía um caderno com o nome, apelido e o número correspondente de cada cela para cada nome, muitas vezes quando trabalhei posteriormente como zelador do Raio II (o mais problemático da Unidade) utilizei-me do tal caderninho do carteiro, tendo em vista que a listagem do Raio que nós usávamos estava menos atualizada e logo mais falha do que a do carteiro, mas algumas vezes ele vinha consultar-me a fim de verificar se constava algum nome que ele não estava encontrando em seu caderno e outras vezes já dizia-me que os funcionários tinham mandado a carta para lá errado, porque aquele preso era do Raio III, ou tinha indo embora em liberdade ou de “bonde” (transferido de Unidade) e etc. Outros atores do cárcere foram surgindo, mas isso fica para a próxima semana.
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[1] SOUZA, Moacyr Benedito de. A crise na Política Criminal Jurisprudência Brasileira. Curitiba: 5ª série, 1983, p.13.
[2]O homem que entra num sistema social típico e peculiar, passa a fazer parte desse sistema. Seria muito pretensioso desejar que nós colocássemos um homem num sistema prisional fechado e quiséssemos que ele se orientasse por regras que não vigem naquele sistema. As normas daquela convivência, daquele tipo de sociedade, são normas peculiares; a vivência daquele sistema é mais uma vivência toda peculiar; as virtudes que nós estimamos não são virtudes naquele sistema peculiar; e, em duas palavras: o homem preso primeiro precisa entender a não morrer para poder viver. As regras que ele vai aprender, em primeiro lugar, são as regras informais daquele tipo de sociedade na qual ele passa a conviver; as virtudes para ele, na convivência daquele meio, são as virtudes daquele meio e não as nossas; os projetos serão muito bons para daqui a 20 anos, quando ele cumprir a pena. Mas hoje ele precisa sobreviver; e, para sobreviver hoje, ele precisa aprender a lei daquele meio; e essa é a lei do cão; não é a lei que nos queremos que ele aprenda. Quando nós colocamos os nossos objetivos formais, como a multiplicação de regras de conduta, uma multiplicação de normas regulamentares, ele aprende rapidamente essa normas para que sofra o menos possível naquele meio; ele se torna extremamente obediente; ele se torna extremamente cooperador – dado que se ele não cooperar ele sofre consequências. Ele aprende de imediato como pode agir, não porque ele assimile essas normas interiormente, mas porque é útil para ele não praticar nenhuma falta regulamentar. Isso transforma um homem, que nós pretendemos conhecer imediatamente, num homem que não se quer deixar conhecer. O que acontece, então, nesse sistema é que nós envernizamos uma personalidade delinquente; por fora, nós lhe damos uma aparência de que está entrosada no sistema penitenciário, como um bom sentido de recuperação; quando não é verdade: ele está vivendo um duplo papel; ele está vivendo o papel do homem que não quer ser castigado por infração de normas regulamentares e o de um homem que não quer ser castigado pelos seus companheiros, caso ele não venha a se comportar como eles desejam que ele se comporte naquele meio. Neste caso quais são as regras mais importantes para ele, do ponto de vista da adesão da vontade? São aquelas regras do meio em que ele vive, e que o ajudarão a sobreviver, e não as normas nossas morais do grupo social nosso, com qual ele não está convivendo no momento; portanto, ele pode adiar, para um futuro mais ou menos longínquo, o aprendizado dessas verdades que nós queremos que ele aprenda. Primeiro ele vai aprender as normas daquelemeio; esse fenômeno se chama hoje cientificamente em Penologia, Prisionização, o homem que se prisioniza (PIMENTEL, Manoel Pedro. Sistemas Penitenciários. Revista dos Tribunais. São Paulo: v. 639, ano 78, 1953, p. 115.
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