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23 de Maio de 2024
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    Direito Penal da dor: a precária condição de vida dentro da prisão

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    Foto: Reprodução

    Não desista – foi o que imediatamente respondi ao detento que, questionado sobre o fornecimento de café, falou que nunca ele chegava para todos e que o que chegava vinha frio e com gosto ruim. Por isso tinha desistido de esperar algo melhor. Esse algo melhor, eu logo entendi diante de tudo o que mais uma vez constatava na inspeção que fazia, suplantava a simples mas importante questão do café, ia para além dessa prazeirosa bebida, tratava da condição de vida dentro da prisão.

    Minha exortação, para que o detento não desistisse foi instintiva, vinha de um profundo sentir, que debelava qualquer dúvida contrária. Fiquei surpreso, porque havia alguns dias estava meio que desiludido, cético. Cheguei a me perguntar se os resultados alcançados, por vezes tão frágeis e singelos, na luta pelos direitos humanos valiam o preço pessoal e profissionalmente pago?

    Ainda naquela semana tinha voltado de uma viagem de alguns dias de férias. Chegava de Paris, onde havia encontrado com amigos e também tido tempo para retomar a escrita de um livro de ficção, agora um drama policial que adquirira corpo e rumo a partir da orientação de meu editor, experiente e sábio nas letras. Lá na cidade luz também tinha acompanhado o segundo turno das eleições presidenciais francesas. Com direito à aparição do Greenpeace rompendo a segurança e pendurando enorme faixa na base da Torre Eiffel, nela estampando os valores fundamentais da França – Liberdade Igualdade Fraternidade – o embate tomou todas as ruas do país. E entre o centro e a extrema direita, venceu Macron, do centro, para alívio geral da Europa e do mundo, excetuados alguns países liderados pelos Estados Unidos de Trump.

    No dia da vitória, depois de uma pequena viagem aos arredores da metrópole, cheguei no apartamento cansado, liguei a TV e vi que Macron iria no pátio do Louvre discursar. Joguei uma água no rosto e pus o pé na calçada novamente. Precisava ver a comemoração, precisava ver com os olhos a história sendo feita no país de Vitor Hugo, Foucault, Voltaire, no país da revolução de 1789, que trouxe ao mundo um novo modelo de civilização, um novo homem. No local milhares de pessoas chegavam, centenas ou dezenas de centenas de policiais, em atitude muito aprazível e educada, faziam as triagens, sem descaracterizar a comemoração. Eu já conhecia o discurso do presidente eleito, mas ainda assim fiquei para vê-lo e ouvi-lo novamente, então ao vivo. A fala foi firme, passando pela defesa da União Europeia, acolhimento dos refugiados do Oriente Médio e melhor compreensão do fenômeno migratório.

    Havia quem dissesse, especialmente entre os partidários da esquerda, que o reformismo do centrista apenas adiaria o colapso. Eram franceses que defendiam uma guinada mais concreta nos rumos da política, para que realmente o capital deixasse de comandar os destinos da nação, que as pessoas fossem vistas como cidadãos e não meros consumidores e que os trabalhadores tivessem vida digna, abandonando a coisificação escravizadora. Mas o fato é que, naquele momento, independentemente de raça, sexo e classe social, eu e milhares de pessoas comemorávamos, felizes, o resultado.

    Paris era uma festa e por um momento eu pensei que esse era o sentimento que as pessoas de meu país, o continental e potente Brasil, mereciam ter, um sentimento de que nossos representantes correspondiam aos nossos melhores anseios, enfrentavam a desigualdade social como uma aberração odiosa, refletiam a confiança que lhes fora depositada no voto popular e não se curvavam aos interesses daqueles que financiavam suas campanhas.

    Mas foi colocar os pés em meu país que a dor da realidade cruel se impregnou em minha pele. Não teria eu condições de fazer análises políticas e econômicas, pois essa especialidade não me pertencia. Se assim o fizesse, correria o risco de generalizar e ser injusto com tantos agentes públicos honestos e que trabalham todos os dias para que o país volte a andar pelos trilhos constitucionais. Porém, trazendo a realidade para mais perto, para meu sítio, era muito árduo enxergar o mundo sob as lentes do sistema de justiça criminal.

    Atuo na Vara de Execuções Penais faz cinco anos e, antes, por outros dez fui juiz exclusivamente de Vara Criminal, com especialidade em delitos contra a administração pública. E como há muito com o que se preocupar quando se é preocupado com as coisas, eu já devia ter me acostumado com as pedras no caminho. Mas a alma humana, permeada de dúvidas e ilusões, não segue raciocínios matemáticos. Neste país não se é garantista, não se defende a Constituição e os direitos fundamentais impunemente. Os reveses provenientes de onde deveria vir apoio e contribuição são ferozes.

    Pois bem, sentindo-me assim, meio desalentado, logo que cheguei em Joinville, mesmo com uns dias restantes de folga, passei a ir até o Fórum para trabalhar internamente. Com um competente juiz me substituindo na linha de frente da jurisdição e a assessoria a pleno vapor, eu tinha mais tempo para preparar processos antigos, realizar ações externas junto às unidades prisionais e dialogar com autoridades e instituições afeitas ao tema. E num dos dias fui no Presídio Regional. Lá adentrei em galerias que há algum tempo não entrava. Nelas a situação continuava grave, muito grave, como no restante da unidade, aliás, como no restante do estado e do país, excepcionada a penitenciária ao lado e uma meia dúzia de outras espalhadas solitariamente nesse imenso território. Havia detentos que dormiam no chão, tendo que se precaver de ratos e baratas, faltava material de higiene, vestuário, acesso a trabalho e estudo, os problemas de segurança pessoal eram reais.

    Sem nunca me acostumar com esse Direito Penal da dor, depois de olhar de frente aquele navio negreiro contemporâneo em todo seu flagelo, distribuí cerca de 100 formulários diretamente no pavilhão aos detentos, com canetas azuis, para que as preenchessem com seus variados e inúmeros pedidos e me entregassem antes de eu deixar a prisão. Depois, como sempre, em sala separada, fiz a reunião de praxe com direção e representantes da população prisional. Foi quando ouvi do detento a sua desistência, seu desalento com a vida dentro do cárcere. Mas não é que depois de lhe exortar que não desistisse, com a franqueza estampada nos olhos, tanto ele como todos os demais animaram-se, passando a elogiar muitos dos resultados que já haviam aparecido, como por exemplo o atendimento à saúde, com a unidade básica instalada e em funcionamento no local, que inclusive otimizava e economizava os custos pois evitava escoltas externas e demanda perante os postos de saúde da cidade.

    Falaram também dos livros que chegavam e que permitiam a remição pela leitura e aceitaram que era preciso ter mais paciência. Disse-lhes, então, que se o governo não melhorasse concretamente as condições da prisão eu tomaria atitudes mais incisivas, apoiadas pela OAB, Defensoria Pública, CDH e várias autoridades públicas locais.

    O senhor fala e cumpre né doutor, nós sabemos – disseram eles logo que me ouviram falar das minhas ações.

    Sim – confirmei – porque eu, como juiz e ser humano, não consigo mais conviver com isso, saber que vocês estão aqui nessas condições indignas, que a lei é descumprida, que os agentes penitenciários trabalham nessas péssimas condições, não consigo mais conviver com esse estado de coisas. É preciso respeitar a Constituição.

    Por isso nós acreditamos no senhor, doutor, o senhor fala com verdade, quer que a gente melhore, que o governo cumpra a lei. Como o senhor diz, estamos aqui por causa da lei e a lei também deve valer para o governo. Acreditamos no senhor, doutor, acreditamos sim.

    Saí do Presídio com uma lição que estava precisando tomar. Não posso deixar me abater, não posso desistir ou deixar de acreditar. Toda e qualquer desilusão é apenas mais uma armadura que se desfaz e, o que resta de mim depois que ela me é retirada, é a essência de minha força. Tenho ainda muita energia para levar adiante mais e mais a Constituição e as causas humanas a que pertenço.

    Não desista, pois não desisto!

    João Marcos Buch é Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais e Corregedor do Sistema Prisional da Comarca de Joinville/SC.

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