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16 de Junho de 2024
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    Discurso de ódio: ninguém está a salvo

    Publicado por Justificando
    há 9 anos

    “Quem não conhece o passado está condenado a cometer os mesmos erros no futuro”, esta frase foi retirada de um texto[1] de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho que, segundo ele, estava inscrita na entrada de um dos pavilhões de um campo de concentração que o autor visitara em Auschwitz. Aqueles campos de concentração ainda preservados servem a um propósito claro de lembrar o que somos capazes quando instrumentalizamos as pessoas. Manter viva a memória do passado é elemento essencial para se evitar que os mesmos erros sejam cometidos no presente.

    O Brasil, em seu passado não tão distante, já viveu por dois períodos muito parecidos em que foram suplantados os direitos e garantias em nome de um projeto de sociedade, seja na ditadura conhecida como o Estado Novo (1937-1945), seja na ditadura militar (1964-1985). São quase 30 anos de história de recrudescimento e instrumentalização do ser humano em nome de um projeto de estado, ambos surgidos e mantidos por motivos muito próximos: instabilidade política, aumento do custo de vida e medo de um fantasma comunista. Em ambos os regimes, tínhamos pessoas marchando e pedindo o recrudescimento do Estado em nome das “pessoas de bem” e contra os “inimigos vermelhos”, manipulados por cínicos que só queriam o poder, em uma história que hoje parece se repetir.

    Podemos ver na atualidade discursos excessivamente reacionários que permeiam debates e manifestações das “pessoas de bem”, que criam inimigos e buscam formas de ampliar o combate contra eles, mesmo que se rompam as garantias duramente conquistadas por nossa Constituição. Uma demonstração que ainda não aprendemos, como nação, com os erros de nosso passado.

    Todo o sangue de pessoas derramado em nosso passado não aconteceu como evento isolado, como catástrofe que não se repetirá; pelo contrário, foi em grande medida o “produto de um choque único de fatores em si mesmos bastante comuns e ordinários” e em grande parte decorrente do recrudescimento do poder punitivo estatal “com seu monopólio dos meios de violência e suas audaciosas ambições manipuladoras, face ao controle social” [2]. O regime de exceção, o recrudescimento dos meios de violência utilizados pelo Estado, são paradigmas que parecem se repetir de tempos em tempos em nossa história, com justificativas diferentes em momentos diferentes com a soma de fatores um tanto quanto ordinários que ainda estão presentes, e que, se misturados, podem gerar os mesmos desastres na instrumentalização do homem que já vivemos tantas vezes em nosso passado.

    A Constituição brasileira foi um destes momentos em que se rompeu com o medo e a violência na busca pela liberdade. Representa um marco em que o regime de exceção foi rompido, permitindo a consolidação de um projeto em que se incluiu os direitos e garantias fundamentais como eixo central, os direitos humanos que haviam sido esquecidos na “noite do Brasil[3]”. A memória de nosso passado é o guia que pode romper com os discursos de ódio do presente. O projeto de sociedade pretendido em nossa Constituição só pode se consolidar efetivamente com a manutenção de nossa memória.

    Contudo, o que se percebe na atualidade é uma conjugação de fatores um tanto quanto perniciosos, o (re) aparecimento de um sentimento de (alie) nação que parece negar todas as experiências deletérias de um passado tão recente e recorrente no Brasil e no mundo, que em tantas ocasiões permitiu o recrudescimento do Estado e a redução ou até o desaparecimento das garantias e do respeito aos direitos humanos em nome de um “projeto maior” que permitia que o ser humano fosse apenas meio para um fim pretendido.

    O que pode representar? Uma crise educacional, uma falha cognitiva, uma ressignificação do passado ou mesmo um cinismo generalizado?

    Hoje, como outrora, recorrendo à Bauman[4], as pessoas recusam-se a ver fatos que estão claros à sua frente, acreditando que o recrudescimento das penas, a ampliação do poder punitivo, a redução das liberdades, ampliação das zonas de exceção e até um massacre contra os “inimigos” seria a solução para a construção de uma sociedade ideal, acreditam, cínica ou alienadamente, que pela guerra se fará a paz. Seria esta parcela da população que clama por sangue tão obtusa que sequer se permite a entender os perigos de enveredar-se por este norte? Se conhecessem realmente o passado estas pessoas quereriam ainda a volta da ditadura, da pena de morte, da tortura?

    Estes discursos de ódio são sustentados por um sistema processual penal que ainda hoje desafia a Constituição com o fantasma do regime fascista de Mussolini, este diploma que permite a manipulação do sistema pelos que juram apenas cumprir a lei e perseguir o mal a todo custo, as “pessoas de bem” que fazem da lei instrumento de seu show pessoal, de sua luta particular do bem contra o mal.

    Com o esquecimento do passado, revivemos as mesmas mazelas, amontoamos pessoas em prisões, em estatísticas de mortes com o velho e roto discurso utilitarista de que “bandido bom é bandido morto”, e uma vez alvo do sistema, se não morto fisicamente, morto estará para a sociedade.[5]

    Nesta (alie) nação, poucos são os operadores que querem nadar contra a corrente do clamor cego das massas. Mesmo os que conhecem o passado, que entendem e estudam as leis e a sociedade, aqueles não alienados, preferem seguir com o cinismo, assumindo o papel de mocinho nas novelas criminais desta luta forjada do bem contra o mal.

    A história do “bandido bom é bandido morto”, corroborada por 50%[6] dos brasileiros, advém em grande medida pelo alienamento da população, pelo esquecimento ou até deturpação da história da humanidade, da luta pelos direitos humanos. Mesmo os que tiveram a chance de ter melhor educação são aqueles que muitas vezes, movidos talvez por algum tipo de cinismo, operam nesta mesma lógica - e ai estão juízes, promotores, delegados, políticos, policiais, etc. -, toda a sorte de pessoas que, tangenciadas pela sanha da massa punitivista, decidem segundo o “senso comum teórico do direito” fundamentando-se em uma tal “discricionariedade, sustentada, por sua vez, no solipsismo do sujeito da modernidade” [7], tornam-se os algozes da sociedade, os justiceiros, os jardineiros que podam as “ervas daninhas sociais”.

    Cita Bauman que “alguns jardineiros odeiam as ervas daninhas que estragam seus projetos – uma feiura no meio da beleza, desordem na serena ordenação. Outros não são nada emocionais: trata-se apenas de um problema a ser resolvido, uma tarefa a mais” nesta luta do bem contra o mal, nesta analogia, o autor encerra dizendo: “o que não faz diferença para as ervas: ambos os jardineiros as exterminam.”[8] Os “jardineiros” de nossa sociedade fazem assim uma ode à inquisição, ao holocausto, e a tantas barbáries de nosso passado, agindo tal e qual aquilo que hoje já deveria ter sido superado.

    Esta (alie) nação é ainda fomentada pelo mercado da notícia, a sanha popular alimentada pela sede por audiência e tudo isso alimentado por um processo penal do espetáculo em uma sociedade do espetáculo onde “qualquer coisa que se mova é um alvo, e ninguém está salvo”[9]. O alvo é o sujeito indigno de direitos, é presumido culpado, é exposto em praça pública e instrumentalizado em nome de uma suposta eficiência que cria novelas policiais e espetacularizam a justiça criando uma “aparência que confere integridade e sentido a uma sociedade esfacelada e dividida. É a forma mais elaborada de uma sociedade que desenvolveu ao extremo o ‘fetichismo da mercadoria’”[10], e é nesta representação “datenizada” da sociedade que as pessoas acreditam que a justiça é feita, que são criados inimigos, estereótipos, que é incitado o ódio e reduzida a sociedade para uma luta entre o bem e o mal, todos mercadorias para um espetáculo.

    Neste jogo de ódio generalizado, de discursos vazios, de esquecimento do passado, da mercantilização de discursos fáceis em busca da punição e da redução das garantias duramente conquistadas, enterramos a cada dia o projeto que pretendeu a nossa constituição há mais de um quarto de século, um projeto garantista que rompeu totalmente com um passado fascista. Só não deixando que este passado seja esquecido, e que não forjem ou modifiquem o que ele foi realmente, é que podemos manter-nos no projeto ainda inacabado de democracia que se pretende no Brasil. Cabe aqui lembrar Lincoln, quando disse que “cumpre-nos a nós os presentes, dedicarmo-nos à importante tarefa que temos pela frente – que estes mortos veneráveis nos inspirem maior devoção à causa pela qual deram a última medida transbordante de devoção – que todos nós aqui presentes solenemente admitamos que esses homens não morreram em vão...".

    Enio Walcácer é Mestre em Prestação Jurisdicional pela Universidade Federal do Tocantins - UFT. Especialista em Ciências Criminais e em Direito Administrativo pela UFT. Graduado em Direito e Comunicação Social pela UFT. REFERÊNCIAS
    [1] Disponível aqui: http://www.conjur.com.br/2015-out-23/limite-penal-ignorando-passado-processo-penal-brasileiro-revive-auflockerung-nazista acesso em 23/10/2015 [2] BAUMAM, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Zahar. Rio de Janeiro. 1998. p. 16-17. [3] Como a bela música de João Bosco: O bêbado e o equilibrista. [4] BAUMAN, ZIgmunt. op. cit. p. 108. [5] CARNELUTTI dizia “a pena, se não mesmo sempre, nove vezes em dez não termina nunca. Quem em pecado está é perdido. Cristo perdoa, mas os homens não” [6] Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/10/1690176-metade-do-pais-acha-que-bandido-bom-e-bandido-morto-aponta-pesquisa.shtml>acesso em: 23/10/2015 [7] STRECK, Lênio. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 104 [8] BAUMAM, Zigmunt. ob. Cit. p. 115. [9] Engenheiros do Hawaii, O papa é pop. [10] DEBORD, Guy., A Sociedade do Espetáculo. Contraponto. Rio de Janeiro. 1997
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