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20 de Junho de 2024
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    Eleições, Bolsonaro e a banalidade do mal

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Arte: André Zanardo

    Nas atuais eleições presidenciais do Brasil, a candidatura de Jair Bolsonaro (PSL) é a que mais se associa às forças autoritárias e nacionalistas no rol de presidenciáveis prováveis a ganhar o pleito. O repertório do candidato é velho conhecido e vai desde o atentado simbólico contra mulheres, negros e homossexuais até discursos de nuances marcadamente fascistas, como o apoio a torturadores militares e a incitação pública da violência e do ódio. Entender o que Bolsonaro representa é fácil; o difícil mesmo é compreender os que compactuam com suas ideias. Como o discurso autoritário vem a se tornar uma opção viável em eleições democráticas?

    Refletir sobre o apoio popular de Bolsonaro exige superar os ânimos momentâneos e ir além da questão de um desvio de caráter pessoal. Ainda que aspectos morais possam participar dessa síntese que resulta no eleitor bolsonarista, eles sozinhos não são capazes de contar a história toda. De antemão, cabe reafirmar que o eleitor de Bolsonaro é tão ordinário quanto outro qualquer. Está em nossa família, no círculo de amizades, na turma do trabalho, na fila da padaria, no pequeno comerciante ou no grande empresário; acorda cedo, trabalha duro, paga suas contas, frequenta a igreja aos domingos, brada contra a corrupção política, vê-se indignado com o retorno ineficiente dos impostos; acredita ocupar-se do Brasil real, longe das tratativas ininteligíveis da trama política de Brasília. Considera-se um descrente da política que o conduziu até os dias atuais. É o típico cidadão comum.

    Filosoficamente falando, nenhuma intelectual compreendeu tão bem a cooptação do cidadão comum pelas dinâmicas do totalitarismo quanto Hannah Arendt (1906-1975). Mais que pensadora dedicada ao mundo das ideias, a filósofa alemã de origem judaica testemunhou o mal concreto do nazismo e fez do totalitarismo o objeto de sua investigação em diversas obras. A resolução de Arendt sobre a “banalidade do mal” se tornou a sua marca mais forte, sendo aqui também o guia dessa reflexão.

    Arendt compreendeu a banalidade do mal após analisar o julgamento de Adolf Eichmann, responsável pela morte de milhares de judeus durante o regime nazista. No julgamento, chamou a atenção da filósofa o fato de o responsável por tamanha atrocidade ter sido um senhor comum de meia idade, pai de família e burocrata de carreira, cuja motivação maior era corresponder com aquilo que a administração esperava dele, sem traços de perversidade e razão maligna aparentes. Durante o julgamento e até mesmo diante da própria execução, Eichmann reproduzia clichês oficiais e palavras de ordem do regime nazista, demonstrando, assim, a falta de profundidade de seu pensamento e a sua incapacidade de autorreflexão sobre o próprio papel que cumpria na sociedade nazista. A sua normalidade, e não a sua excepcionalidade, era o fator estarrecedor em sua figura, motivo pelo qual Arendt conclui: o maior mal é o mal perpetrado por ninguém.

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    Não se trata de admitir que o Brasil atual e a Alemanha totalitarista são a mesma coisa, o que a mim pareceria, de fato, forçar a mão da análise. O elo entre a sociedade totalitária descrita por Arendt e os nossos tempos não está na presença de campos de concentração ou na perseguição oficial a judeus, mas na degradação da empatia social e na naturalização da violência. A banalização do mal ganha nuances novas e se torna perceptível em praça pública quando discursos de ódio são aplaudidos inofensivamente por milhares de quaisquer uns.

    Bolsonaro já afirmou publicamente que não entraria num avião pilotado por cotistas e nem se submeteria a um procedimento cirúrgico realizado por médico egresso de políticas afirmativas; sugeriu o fuzilamento do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em rede aberta e rendeu homenagem a torturador durante voto pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff no Congresso nacional; insultou negros quilombolas em evento político; tornou-se réu por apologia ao estupro de mulheres, além de uma série de insinuações que relacionam a homossexualidade a desvios comportamentais a serem combatidos. Isso sem falar em seu parceiro de chapa, Hamilton Mourão (PRTB), que engrossa consideravelmente o caldo do autoritarismo, do preconceito e da misoginia.

    Estes não são exemplos excepcionais, mas uma constante do bolsonarismo que passa incólume e sem estranheza ao crivo de seu eleitorado. Se ideias que atentam contra a diversidade e a dignidade humana são tão irrazoáveis e extremadas em pleno século XXI, como o discurso de Bolsonaro soa trivial ao ouvido de seus apoiadores? Sob o pretexto de uma pretensa liberdade de expressão, estão aí propagados a castração de nordestinos, o linchamento de marginalizados, a apologia ao estupro, propagação da violência de gênero contra mulheres, a expulsão de cubanos, a violência contra homossexuais, entre outros. Hoje em dia o mal é banalizado à velocidade de um compartilhamento nas redes sociais.

    Na sua famosa expressão, Arendt buscou demonstrar que a banalidade do mal carrega essa potencialidade mesma de florescer em sociedades cuja capacidade de refletir e estabelecer juízos sofre certo grau de deterioração. Segundo a filósofa, essa diluição da atividade de refletir e de estabelecer limites éticos entre o que é bom e o que é mal assume um efeito prático evidente no cotidiano de sujeitos medíocres. “Estará entre os atributos da atividade do pensar, em sua natureza intrínseca, a possibilidade de evitar que se faça o mal? Ou será que podemos detectar uma das expressões do mal, qual seja, o mal banal, como fruto do não-exercício do pensar?”. Afinal, até mesmo as atrocidades cometidas em nome do nazismo contaram com o respaldo popular à figura de seu líder supremo, e, no entanto, nem por isso parece ser plausível o argumento de que o povo alemão fora acometido de uma maldade eminentemente genuína.

    A ascensão de Bolsonaro dá-se em momento de crise política e econômica, de retrocesso nos direitos sociais, piora geral na qualidade de vida, de polarização ideológica e de um profundo questionamento das instituições públicas. O cenário crítico dos últimos anos agiu favoravelmente para o ganho de forças de setores radicais que até então encontravam-se amortizados. Esse panorama não é restrito ao Brasil, mas fruto de uma tendência global em que persistem crise migratória, a desintegração europeia, o fortalecimento de lideranças iliberais e de movimentos nacionalistas mundo afora.

    Sobre o fenômeno Bolsonaro, há duas ponderações a serem feitas, uma de forma e outra de conteúdo. A forma simplista com que trata pautas importantes de economia, educação, saúde e segurança é um elemento de proximidade entre o candidato e o seu eleitor. Bolsonaro encontra imediata repercussão naquela parcela da população que se identifica com formas simplificadoras e universalizantes para problemas complexos da atividade governamental. Por outro lado, o conteúdo autoritário de suas proposições no tocante às questões sociais encontra respaldo naquela parcela que se identifica no campo do ceticismo e da incredulidade diante das saídas pouco efetivas que a democracia tem imposto. A junção dos aspectos de forma e conteúdo faz com que Bolsonaro resulte em um personagem de expressa identificação. O elemento simplista e não convencional do candidato contrasta diretamente com a previsibilidade típica da tradicional classe política brasileira. Trata-se da versão tupiniquim do efeito Trump na sociedade estadunidense.

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    Por fim, é evidente que os lados contra e pró não estão levando a discussão sob as mesmas premissas. Enquanto, para um lado, o posicionamento extremado de Bolsonaro é justamente o fator que o descaracteriza como alternativa legítima ao mais alto posto do Executivo nacional, para o outro, é justamente nessa postura que reside a sua legitimidade para a presidência. No primeiro grupo estão os que evidenciam em seu discurso autoritário os aspectos antidemocráticos e iliberais inadmissíveis à figura de um republicano; no segundo grupo estão aqueles que realçam justamente os aspectos de força, coragem e espontaneidade como bem quistos à figura de um forte líder político. Em outras palavras, os fatos se tornam secundários quando o embate entra no campo das narrativas que se fazem deles.

    Sob o ponto de vista eleitoral, a potencialidade do candidato é também a sua maior debilidade. As narrativas de resistência aumentam à medida que a campanha joga luz sobre essas contradições. A resistência organizada, principalmente, pelas mulheres em torno dos movimentos “ele não”, “ele nunca” e “mulheres contra o fascismo” tem um potencial importante a ser explorado contra o candidato. Pouco a pouco a crítica e a reflexão confrontam a irrazoabilidade da figura de Bolsonaro. Tudo leva a crer que este é um movimento sem volta e que só faz ganhar adeptos entre setores intelectuais, políticos, de movimentos sociais e da classe artística nacional.

    Por fim, cabe ressaltar que Arendt não pretendeu abdicar Eichmann e o nazistas das responsabilidades cometidas em nome do fascismo. Tampouco deu a ele o aspecto monstruoso que pintavam. Demonstrou, contudo, como os homens e mulheres de bem em conjunturas históricas adversas são levados a apoiarem ideias equivocadas e extremadas. O mal é de certa forma tão corriqueiro que acaba por ser incorporado como algo extremamente trivial.

    Para compreender o apoio massivo às posturas autoritárias assumidas por Bolsonaro e Mourão, e tantos outros que se identificam com eles, é preciso inevitavelmente questionar, enquanto sociedade, em que aspectos da esfera pública estamos falhando no sentido de tornar figuras autoritárias uma opção viável. Compreender, nas palavras da filósofa, é “encarar a realidade sem preconceitos e com atenção, e resistir a ela – qualquer que seja”. Celso Lafer adiciona que “restaurar, recuperar e resgatar o espaço público que permite, pela liberdade e pela comunicação, o agir conjunto” esteve na centralidade das preocupações filosóficas de Hannah Arendt. Pensamento este formulado há mais de meio século e tão pertinente nos dias atuais.

    Lucas Eduardo Silveira de Souza é mestrando em Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB).

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    1 Comentário

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    Armpit Lover
    5 anos atrás

    E ignorar toda a roubalheira petista não é banalizar o mal?

    Talvez só não seja na cabeça miúda dos petistas.

    Estudantes universitários que vestem camisa de Che não banalizam o mal?

    O ainda os partidos de esquerda que prestam apoio a Maduro e Ortega?

    Que tal os que idolatram o comunismo, que com Mao matou mais de 77 milhões e com Stalin mais de 40 milhões? Juntos mataram 5 vezes mais do que Hittler, mas só o nazismo é proibido de ser cultuado.

    Não adianta choro, o que ninguém suporta mais é esse esquerdismo furreca de metidos a ditadores. Chega de financiar ditaduras, pois se não somos uma é porque nossos militares não se venderam ao PT (vide resolução pós-impeachment). continuar lendo