Encarceramento: até quando ficaremos cegos perante esse estado de coisas inconstitucional?
É noite de domingo, chego em casa sob uma garoa fria. Largo minhas coisas num sofá e desabo no outro. Ligo a TV e procuro algum canal tranquilo, de viagens ou programas culturais. Estou exausto. Estive em plantão e o final de semana foi bem trabalhoso. Muitos casos de prisões em flagrante. Ao lado de servidores e demais atores jurídicos, fui fazendo as audiências de custódia, uma atrás da outra.
Ouvir daquele que foi preso, face a face, confissões, negativas, arrependimentos e justificativas, e precisar decidir sobre seu destino livre ou aprisionado é algo profundo e inquietante. Mas juízes são juízes para isso, para decidir, conforme a Constituição e as leis, não há outra opção. Como ocorre em todos os lugares deste país, os detidos da ocasião em geral eram pobres, envolvidos em receptação, drogas, furtos e roubos.
Já antecipando as vulnerabilidades, cientifiquei previamente a assistência social e outros setores, pois podia ser necessária sua intervenção. Assim foi em alguns casos. Para um sujeito de 25 anos, viciado em psicotrópicos e que costuma subtrair utensílios de canteiros de obras, disse que estava na hora do estado comparecer com outras redes de atenção e não com as grades. O preso, até então impávido, começou a chorar.
Outros dois, de 21 e 22 anos de idade, estavam envolvidos num roubo com arma de brinquedo num mercado, ambos com filhos pequenos, trabalhando com reciclagem de lixo, economicamente vulneráveis. Confessaram o delito, mostraram-se arrependidos e pediram por uma nova chance. Como estavam sem documentos na hora do flagrante, cogitou-se manter a prisão por isso, porque podiam estar mentindo sobre o nome. Ora, quem em sã consciência faria um roubo com documentos de identificação no bolso, pensei mas não falei. E o delegado anotara os dados nos autos, números de RG etc. Se tivesse dúvidas sobre a identidade, iria diligenciar nos domicílios, porque, segundo os detidos, os documentos estavam em suas residências. E se tivessem dinheiro para contratar advogado no momento da prisão, certamente alguém teria ido buscar os documentos. Por esse e demais fundamentos legais, concedi liberdade provisória condicionada e fiz recomendações.
Houve também caso de furto de doces e brinquedos de uma loja. O detido confessou que queria presentear as filhas pequenas. Conclui que era caso para chamar a atenção e advertir para o bom exemplo aos filhos e que a prisão em nada contribuiria para isso. E assim foram ocorrendo as audiências e decisões. No final das contas houve soltura na maioria dos casos.
Então no conforto do meu lar, protegido da chuva e do frio, bem servido de um jantar, vendo um filme de beleza única de Yasujiro Ozu, que nos ensina como extrair o sublime da vida, longe portanto das misérias que essa mesma vida impinge a tantas pessoas, outra vez chego à conclusão sobre uma das razões do Brasil ser o quarto país em população aprisionada, atrás dos EUA, China e Rússia (havendo indicativos de que já estamos em terceiro) e segundo em taxa de encarceramento, atrás da Indonésia, tomando por base o super-encarceramento dos últimos 15 anos.
Neste país, mandar prender é simples e fácil, mas mandar soltar é difícil e complicado. A maior parte das pessoas, no falatório universal, neurótico e sem fim de redes sociais como Facebook e Twitter, com pouca interpretação de textos mas inabaláveis opiniões pessoais, não poupa quem procura respeitar os contextos históricos dos direitos humanos e tenta botar alguma racionalidade nessa irracionalidade que se tornou o direito penal. Logo lançam invectivas, ameaças e ofensas, fazendo o frequente uso das conhecidas expressões “está com pena, leva para casa”, “bandido bom é bandido morto” ou “direitos humanos para humanos direitos”. Remonta-se assim o discurso do ódio, num temerário retorno ao fascismo.
Fico a me perguntar por que chegamos a este ponto? Por quê não conseguimos aprender com as lições do passado? Por que no sistema de justiça criminal voltamos a incorporar ao longo dos anos a equivocada ideia de que justiça e redução de violência se fazem com prisões provisórias?
Não podemos mais aceitar esse retrocesso. Não podemos mais nos calar, é a última coisa que penso ao cair no sono. Hoje é segunda-feira, sigamos em frente.
João Marcos Buch é juiz de direito da Vara de Execuções Penais de Joinville/SC.
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