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15 de Junho de 2024
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    Gilberto Freyre, perene

    Publicado por Estadão
    há 14 anos

    Cardoso é autor do prefácio da última edição de 'Casa-grande & Senzala'. Foto: Tasso Marcelo/AE

    Não é a primeira vez que falo sobre Gilberto Freyre e cada vez que me convidam para falar ou escrever sobre ele fico na dúvida sobre se deveria ou não aceitar o desafio. Não há motivos especiais para que seja eu quem abra nesta Flip a semana de comemorações discorrendo sobre o homenageado: pois não fomos nós, os chamados sociólogos da escola paulista, Florestan Fernandes à frente, quem mais criticamos aspectos importantes da obra gilbertiana, notadamente a existência de uma democracia racial no Brasil, interpretação frequentemente atribuída a ele? E ao longo de minha carreira profissional (já vão quase sessenta anos de lida com as questões sociais) tampouco me distingui por ser um conhecedor da vasta bibliografia de nosso homenageado. Não obstante, mesmo com escusas de sobra para escapar da incumbência, caio novamente na tentação: quem sabe ao me aproximar de tão gabado Autor me sobrem umas lasquinhas de glória...

    Cada vez que volto à obra de Gilberto Freyre se repete o deslumbramento de descobrir facetas novas em seus escritos e de me deixar encantar pelo modo como ele envolve o leitor e quase o convence de suas teses, mesmo quando está navegando por mares cheios de escolhos e aprumando para portos que não parecem os mais seguros. Já escrevi que me indignei comigo quando li em El Mercúrio, no Chile ainda dominado pelos coveiros de Allende, um discurso de Jorge Luís Borges e me deixei fascinar por sua prosa. Borges, ele mesmo um arqui-conservador, agradecia uma homenagem que recebera de uma academia chilena silenciosa diante da brutalidade pinochetiana. Discorreu sobre a língua espanhola. A beleza das palavras, a graça de seu encadeamento, o inesperado das metáforas, o brilho do talento do escritor argentino me fizeram esquecer quem era o homenageado, quem o homenageava e em quais circunstâncias. Não é possível, pensei, que o senso estético me afaste tanto da moral.

    Por sorte, a semelhança com a situação de leitura de Gilberto Freyre não implica, nem de longe, em tal permissividade. A comparação estanca na fruição da beleza, sem que o conservadorismo de Freyre e mesmo seus comprometimentos com situações autoritárias recordem o horror chileno de Pinochet. Não preciso me sentir moralmente culpado por deixar-me embalar pela prosa de Freyre, ainda quando possa vislumbrar a fragilidade factual ou mesmo interpretativa de um ou outro argumento do autor. Nem me molesta ressaltar as virtudes literárias de alguém, como Freyre, que se não deixou de ter seus pecadilhos de permissividade com governos autoritários, manteve-se quase sempre no campo democrático-conservador. O fato é que se me perguntarem, como me têm perguntado, o por quê da permanência de Casa Grande & Senzala, ou mesmo de Sobrados & Mocambos, direi, sem exclusão de outros motivos, que entre eles prima a forma como foram escritos. Palavras bem escolhidas. Frases concatenadas, graça no discorrer dos temas, de tal modo que a vasta erudição do autor e a imensidade das notas e citações são como papel de embrulho chinês ou como as caixinhas que os japoneses usam para dar um quê de mistério encobrindo os delicados presentes que oferecem. Lêem-se centenas de páginas de análises complexas de Casa Grande & Senzala ou de Sobrados e Mucambos no embalo de uma escrita de novela.

    E olha que o estilo de Gilberto Freyre não é linear, nem na forma nem no andamento do raciocínio. Ele dá voltas, repete, leva o leitor a percorrer seus argumentos e suas descrições como que em espiral, como notou Elide Rugai Bastos em sua síntese de CG&S. De repente, acrescento, a espiral se desfaz circularmente, retorna ao passo inicial. Pior: nem sempre é conclusivo. Mesmo em Casa Grande & Senzala o último capítulo, que trata do papel do negro na sociedade brasileira, termina prometendo um novo livro que nunca escreveu. Não cumpre o requisito de voltar às premissas que, uma vez demonstradas, requerem, no rigor do trato acadêmico, uma síntese conclusiva. O mesmo se dá em Sobrados & Mocambos, embora neste, pelo menos o anunciado próximo volume se concretizou com a publicação de Ordem e Progresso, embora 23 anos depois, em 1959.

    Além da metodologia: progresso e tradição

    Este estilo, nas palavras do próprio Gilberto, foi algo deliberado: terminada sua tese de mestrado na Universidade de Columbia em 1923, Social Life in Brazil in the middle of the 19th century, que foi lida por Henry Mencken, o "mais anti-acadêmico dos críticos" CG&S, pág.48), este aconselhou-o a desenvolver a tese sob a forma de livro. Daí por diante nunca mais Gilberto voltou a escrever à moda da academia. Ganhou leitores, alçou voo mundo afora, popularizou-se. Entretanto, em certo período, especialmente no final dos anos cinquenta e mais claramente nos anos sessenta, quase se tornou moda nos círculos acadêmicos e em setores políticos progressistas ou de esquerda, fazer-se um muxoxo nas referências a ele. Por quê? Seria só em razão de suas posições políticas conservadoras? Seria o modo não bem comportado de redigir que se afasta do cânone acadêmico? Ou, quem sabe, o fato de haver idealizado o patriarcalismo brasileiro e adocicado o que teria sido o tratamento dado aos escravos pelos senhores, teses que tanto as pesquisas acadêmicas como os movimentos negros (retratados na obra de Florestan Fernandes e de Roger Bastide, por exemplo) começavam a rechaçar? Uma vez que participei das pesquisas desse grupo, talvez se justifique - buscando uma vereda não percorrida para voltar a caminhar no cipoal dos trabalhos sobre Gilberto Freyre - tentar recordar como nos anos cinquenta e sessenta encarávamos a obra do maestro pernambucano.

    Sem dúvida, a idealização do patriarcalismo e a visão menos crítica dos efeitos da escravidão sobre as relações entre negros e brancos contribuíram para a reação negativa e mesmo para o simplismo das críticas. Não nos esqueçamos que a partir dos anos sessenta, avançando na década de setenta e até à queda do muro de Berlim, as ciências sociais latino-americanas (e não só) voltaram-se para o marxismo e muitas vezes para formas vulgares dele, sobretudo quando acasalado com as teologias da liberação (diga-se, de passagem, que o marxismo prevalecente na USP teve como ponto de partida um Seminário sobre Marx, iniciado nos anos 1950, com a virtude de ser mais rigoroso na exegese do autor). É certo, porém, que as primeiras críticas da escola paulista aos trabalhos de Freyre antecederam à voga marxista. Quando Florestan Fernandes, principalmente, endereçou suas setas contra qualquer coisa que se aproximasse da visão da existência de uma democracia racial entre nós ele estava no auge da defesa do método funcionalista de análise e não do marxismo. E talvez tivesse como alvo mais Donald Pierson do que Freyre. O que dizer então de Roger Bastide, sempre sutil, que, sendo o tradutor para o francês de Maîtres & Esclaves, não só nutria admiração pelo autor como em suas análises sobre a situação racial no Brasil não deixava de ponderar as particularidades por ela apresentadas em contraposição com o que prevalecia em sociedades racistas. Chegou mesmo a escrever "democracia racial" - o que Freyre não fez em Casa Grande & Senzala - ao se referir a, que toda a demografia do Brasil "está marcada pela mesma política de arianização que domina os aspectos sociais do país, consequência de sua democracia racial" (Bastide, R. Brasil Terra de contrastes, São Paulo, Difel, 1959, p. 62).

    Provavelmente não foi só por discordâncias acadêmicas ou por reservas diante do conservadorismo de Freyre que este, aclamado no exterior, auto-proclamado - e não sem razão - como um inovador e respeitado nos círculos da intelectualidade mais conspícua, ficou distante da produção intelectual que surgia nas universidades. Valho-me de um dos melhores conhecedores da obra de Gilberto Freyre, Nicolau Sevcenco, que escreveu a apresentação da sexta edição de Sobrados e Mucambos. Para ele, paradoxalmente, o fato de Freyre ter tido uma formação acadêmica sólida nos Estados Unidos, ter convivido com a intelectualidade americana, conhecer o pensamento europeu, ser, em uma palavra, um cosmopolita e, ao mesmo tempo, ter-se distanciado do projeto político-intelectual das correntes progressistas e modernizadoras emergentes explique melhor a reação negativa destas. Talvez mais do que se distanciar desse projeto, Gilberto Freyre se tenha rebelado contra ele, na medida em que o projeto "desenvolvimentista" desmancharia as bases sob as quais se assentavam as formas de acomodação sócio-cultural do patriarcalismo brasileiro. Creio que isso de alguma forma marginalizou-o do debate então em marcha.

    De fato, como veremos e todos sabem, todo o pensamento gilbertiano estava voltado para a singularidade das formas sociais e culturais do Brasil, centradas na família patriarcal e na miscigenação. Ora, o pensamento científico nas ciências sociais, que teve um dos marcos na fundação da USP sob influência europeia, assim como o pensamento político dos anos cinquenta em diante, que teve como referências o ISEB, a CEPAL e o Partido Comunista, queriam precisamente o oposto: livrar o país das mazelas de um passado que nos condenava ao subdesenvolvimento. De alguma maneira a identidade que Gilberto Freyre dava ao Brasil dificultava, se não impedia, tudo que o pensamento progressista da época queria: a industrialização, a ruptura da ordem senhorial, a emergência de uma cidadania livre das peias de uma cultura de submissão, a integração do país ao mundo.

    O paradoxo reside precisamente em que Gilberto Freyre, longe de haver sido o ensaísta que os cientistas sociais "do Sul" imaginavam, de pouco rigor científico, era um acadêmico sólido, que disfarçava a erudição no correr da pena e que pregava contra a maré não só acadêmica, mas talvez generalizando um pouco, da corrente ideológica hegemônica. Estávamos na época em que as "teorias do desenvolvimento" frutificavam, o estado era visto como a mola do crescimento econômico, a industrialização era a aspiração de muitos e os laços da família patriarcal, sem se desfazerem completamente, não eram mais a chave para explicar as formas de coesão social. Havia, por consequência, muito mais do que apenas, o que não deixou de haver também, uma diferença metodológica entre os sociólogos "uspianos", funcionalistas ou marxistas, e quejandos ou somente uma crítica a posições políticas específicas. Havia um choque de "ideologia" nos dois lados, que ultrapassava as querelas acadêmicas.

    Que Gilberto Freyre exibia um conhecimento enciclopédico da bibliografia da época é indiscutível. A posição de "intelectual nordestino" já havia produzido, entretanto, certa incompreensão quanto a sua modernidade na literatura. Ao mesmo tempo em que entrou em contato com a vanguarda intelectual dos Estados Unidos, onde chegou a descobrir Yeats, Tagore e John Dewey, e da Europa - onde encontrou o cubismo e a influência da arte africana nos pintores inovadores, foi retratado em Paris por Rêgo Monteiro, conheceu Tarsila, tornou-se amigo de Manuel Bandeira-, não comungava propriamente dos ideais ao mesmo tempo nativistas e "ocidentalizadores" da Semana de 1922 do Teatro Municipal de São Paulo. Nosso Gilberto era menos encantado que os paulistas dos salões de Dona Veridiana com Blaise Cendras. Estará produzindo seu "Manifesto Regionalista" em 1926, o que o fez ser visto pelos modernizadores do Sul mais como um "tradicionalista" do que um revolucionário. Quem sabe, fiel a sua visão e a seus sentimentos, quisesse certa continuidade na ruptura e não o repúdio das tradições. Não importa, o apodo de conservador e tradicionalista acompanhou-o desde antes de assim ser considerado por alguns cientistas sociais depois que escreveu Casa Grande & Senzala.

    FHC e Luiz Felipe de Alencastro, na mesa de abertura da Flip. Foto: Tasso Marcelo/AE

    Gilberto e a metodologia científica

    O domínio da literatura sociológica contemporânea por Gilberto Freyre, era enorme. Se não deixava que o esnobismo do vocabulário cientificista torturasse seus textos não era por desconhecimento da informação básica das ciências sociais, era por deliberação, como eu disse. O que não o deixava despreocupado de mostrar que tinha domínio da bibliografia. Alguns dos longos prefácios às edições de suas obras principais mostram essa obsessão. Em Ordem e Progresso há uma introdução que exemplifica bem esta atitude. Para começar o título da secção, "nota metodológica" chama a atenção, como se dizia na época com certo pedantismo, para o "aparato metodológico e conceitual" de suas análises. Recordo-me dos cursos que eu dava na FFCL da USP na segunda metade da década de 1950, nos quais os autores citados por Freyre nos eram familiares e hoje estão provavelmente esquecidos: o manual de E.S. Johnson, Theory and Practice of Social Studies publicado em 1956, a metodologia pregada por Emory Bogardus no livro Sociology, em que se discutia, além das técnicas quantitativas de investigação, o valor da utilização de novos métodos qualitativos ligados às histórias de vida e às entrevistas.

    Mencionei os dois livros acima só para exemplificar. Gilberto Freyre exibia conhecimento também da literatura francesa contemporânea, especialmente Raymond Aron e Georges Gurvitch, na época o "papa" da Sorbonne. Dialogava intelectualmente com as propostas metodológicas em voga mantendo o ponto de vista, que parecia ser a pedra de toque de sua metodologia, de que a vivência direta e a empathic ability, habilidade empática (escrita por ele em inglês) são fundamentais para a interpretação de épocas históricas. Não se pense, entretanto, que ao defender tais procedimentos - distintos radicalmente das técnicas quantitativas de análises empíricas e do objetivismo das análises de sociólogos como Durkheim - nosso autor desdenhasse da precisão e de cuidados técnicos. Em uma referência defensiva sobre a tal "empathic ability", conceito que GF foi buscar em autor obscuro num capítulo de uma coletânea organizada em 1953 por Leon Festinger e Daniel Katz, Researh Methods in Behaarioul Sciences, justificou amplamente suas escolhas metodológicas. Note-se que o livro de Festinger e Katz, pouco difundido no Brasil, era de leitura difícil, mais usado por especialistas em análises quantitativas. Portanto, não havia em GF desconhecimento do "cientificismo", mas sim não aceitação de o ter como a única ou principal maneira de analisar os processos sociais.

    Gilberto Freyre acreditava ter sido pioneiro em incluir nas análises sociais aspectos subjetivos e mesmo valorativos, como instrumentos de conhecimento e interpretação histórica. Tendo partido da antropologia, mas dedicando-se à análise de formações sociais e de sua transformação - Ordem e Progresso estuda a desagregação do mundo senhorial com a abolição da escravidão e o estabelecimento da República - incluia muito de psicologia social nas interpretações. Não descuidava, por outro lado, dos condicionamentos do meio ambiente e dos biológicos, nem de deixar de mencionar, vez por outra, a relevância dos processos econômicos para as transformações sociais. Acreditava ter inventado uma maneira de lidar simultaneamente com as intuições e com a captação de sentido das ações sociais e da cultura, pela empatia que tinha com as situações analisadas.

    Em seu debate metodológico rebelou-se com interpretações que desdenhavam da história, explicando o presente por ele mesmo, como se cada nova fase partisse ex nihil, de si mesma. Freyre achava que além de tomar em conta o passado e ver como ele se reproduzia ou se modificava no presente, as análises deveriam incluir as orientações e visões que os homens anteviam e como vislumbravam o futuro. Foi buscar em Gurvitch e Aron a noção de que o entrelaçamento entre as condições sociais e as "construções mentais" é importante. Apoiou-se com muita liberdade em W.I. Thomas (no artigo "The relation of research to the social process") e em um crítico literário americano, John Brown, para chegar ao que queria: à noção de que há tempos co-existentes, tempos menos cronológicos do que psicológicos e que a inter-subjetividade é parte constitutiva da realidade. Esta tanto é dada como é imaginada pelos atores sociais. Mais ainda, quando passa dessas considerações abstratas para a cronologia, procurou definir as épocas como sendo compostas por quatro gerações. Resumindo, diz nosso autor: "o tempo do relato literário e sociológico tipicamente brasileiro parece dever corresponder a situação mais complexa de entrelaçamento na consciência do brasileiro dos três tempos: o presente, o passado e o futuro" (O e P, p. 58).

    Em uma de suas constantes afirmações auto-laudatórias diz que os franceses até criaram uma noção inspirada em suas obras. Vale a pena a longa reprodução do texto para mostrar o jeito de GF escrever sobre seus inventos metodológicos:

    "Prec...

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