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2 de Maio de 2024
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    História de um caso judicial real - Libertação de uma mulher, por sua condição de mulher. Segundo capítulo. - João Baptista Herkenhoff

    há 16 anos

    Como citar este comentário: HERKENHOFF, João Baptista. História de um caso judicial real - Libertação de uma mulher, por sua condição de mulher. Segundo capítulo.Disponível em http://www.lfg.com.br. 24 julho. 2008.

    Segundo capítulo - Não fui eu que libertei Edna, foi Edna que me libertou.

    De todas as decisões que proferi, nenhuma se tornou tão conhecida quanto a decisão através da qual libertei Edna, a que ia ser Mãe.

    A decisão em torno de Edna, acrescida de inúmeros comentários, está largamente presente na internet, numa centena de localizações.

    Apresentações artísticas do texto, com acréscimo de som e imagens, foram feitas como, por exemplo, o trabalho realizado por Odair José Gallo, um outro trabalho produzido por Mari Caruso Cunha e uma versão sonora, sem imagens, realizada pelo advogado Doutor Adriano Cardoso Cunha, de Cabo Frio (RJ).

    No Instituto de Letras, da Universidade de Brasília, a acadêmica Elaine Cristina Oliveira Sousa produziu um primoroso texto acadêmico, olhando a decisão que libertou Edna, não sob o aspecto jurídico, mas sob o ângulo lingüístico. O trabalho de Elaine Cristina foi realizado dentro da disciplina "Introdução à Análise do Discurso", com a Professora Francisca Cordélia, do Departamento de Línguas Clássica e Vernácula, do Instituto de Letras, da UnB. Propôs-se Elaine Cristina Oliveira Souza a fazer uma leitura da ideologia presente no texto. Na percepção da brilhante estudiosa, o mais importante, no caso, não é apenas o discurso ideológico, mas principalmente a prática discursiva e sua relação com a prática social. Elaine Cristina desdobrou a decisão em diversos fragmentos, fazendo profunda análise de cada um.

    Dramatizações foram produzidas, debates foram promovidos, em diversas faculdades e noutros espaços, chegando ao meu conhecimento apenas uma fração dessas iniciativas.

    A sentença inspirou a alma de poetas.

    Stellinha Mattos, poetisa de grande sensibilidade, falecida no Rio de Janeiro, em 2006, depois de ter completado 100 anos, escreveu:

    "Bendita seja

    mulher, fonte de vida,

    por um grande juiz

    compreendida

    e por seu coração absolvida!

    Que se afastem as pedras do caminho,

    que se afastem todos os espinhos,

    na estrada

    por onde ela passar."

    João Udine Vasconcelos, advogado e poeta, residente em Fortaleza, produziu este soneto, a que deu o título de "O bom juiz":

    "Só das almas autênticas, serenas,

    Flui a verdadeira e pura luz:

    Clarão de paz das razões amenas

    Emanadas do doce Cristo Jesus!

    E dessas almas sinceras, leais,

    Como é bela e digna a de um Juiz

    Que julga homens não como animais

    Mas com alma e paixão em despacho feliz.

    No uso da Hermenêutica, o coração

    Pulsa forte e amoroso, derramando

    Em sangue a Justiça em reta emoção.

    No Alvará em que o fogo do amor arde

    À mulher grávida, em crime banal,

    Colocando-a com o feto em liberdade."

    Sobre o despacho de Edna recebi centenas de cartas e mensagens eletrõnicas, todas guardadas no meu arquivo.

    Por muitos caminhos (caminhos misteriosos, a meu ver), o despacho de Edna tem chegado a milhares de pessoas, sem que eu tenha meios de aquilatar a dimensão dessa divulgação.

    Dei a decisão no meio de um expediente forense trepidante, com muitas audiências designadas na agenda.

    O caso de Edna entrou em pauta mais ou menos às três horas da tarde.

    O despacho foi proferido verbalmente. Eu fui ditando e a diligente Escrivã Valdete Teixeira foi datilografando.

    Quando concluí a decisão, Edna, que tudo acompanhou palavra por palavra, indagou:

    - "Doutor João, estou livre?"

    Respondi:

    - "Está."

    - "Doutor João, se meu filho for homem ele vai se chamar João Batista."

    Redargui:

    - "A senhora sabe como João Batista morreu?"

    - "Não sei não", Edna respondeu.

    - "Cortaram a cabeça dele", expliquei.

    - "Não tem importância. Ele vai se chamar João Batista mesmo."

    Mas nasceu uma menina que recebeu o nome de Elke, em homenagem a Elke Maravilha.

    O despacho em favor de Edna encontrou eco, na consciência das pessoas, desde o momento em que foi prolatado.

    Eu não me apercebera, no instante da proferição, de que a decisão contivesse um apelo emocional forte.

    Quando terminei as audiências do dia e passei pelo Cartório Criminal, para me despedir dos funcionários, o Dr. Henrique Francisco Lucas, titular do cartório, disse-me:

    "Doutor João, já tirei mais ou menos trinta cópias xerox do despacho de Edna, solicitadas por pessoas que queriam guardá-lo consigo."

    Respondi então ao Dr. Henrique:

    "Vamos ver então o que há nesse despacho."

    E o li calmamente para sentir o motivo pelo qual causara essa reação, já que nunca acontecera que de uma decisão minha fossem tiradas trinta cópias xerox, solicitadas por trinta pessoas diferentes.

    Fatos ulteriores convenceram-me de que alguma coisa especial aconteceu naqueles minutos em que libertei Edna, a começar pela própria Edna que simplesmente deixou a prostituição, como vim a saber pela boca da própria Edna:

    "Quando o senhor me soltou, Doutor João, eu decidi: posso passar fome, mas prostituta eu não serei mais."

    Em e-mail que me mandou no dia 11 de março de 2005, o jornalista Chico Pardal, do jornal "A Gazeta" , de Vitória, manifestou seu desejo de escrever uma matéria sobre o "caso Edna".

    Eu respondi ao e-mail do jornalista, nestes termos:

    Não sei onde Edna estaria hoje. Não sei se uma matéria em grande jornal não iria constrangê-la. Só vejo ser essa matéria possível se isto não a incomodar, se a matéria não lhe trouxer qualquer mal (a ela e à filha).

    Posso lhe dizer que Edna me fez mais bem do que eu a ela.

    Edna me ensinou a ser juiz e depois do encontro com ela nunca mais fui o mesmo.

    Se não tive medo de libertá-la diante dos dogmas dominantes;

    se não tive medo de libertá-la numa fase histórica em que os magistrados estavam privados de suas garantias;

    se não tive medo de arrostar o "figurino" obrigatório que fazia da maconha, mesmo o simples consumo, um delito gravíssimo porque através desse delito os jovens não simpáticos ao regime podiam ser colhidos;

    se não tive receio de todos esses perigos, não poderia, dali para a frente, ter qualquer outro tipo de medo.

    Por isso, concluo: eu libertei Edna e Edna também me libertou.

    Nunca escrevi isto que estou dizendo a você neste e-mail. Estou abrindo minha alma, queridíssimo Chico Pardal.

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