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23 de Maio de 2024
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    Juiz imparcial e antinomias da jurisprudência no Estado de Direito

    Publicado por Espaço Vital
    há 4 anos

    Artigo de Tarso Genro, advogado (OAB-RS nº 5.617); foi governador do RS e ministro da Justiça.

    As lições de Franz Neumann para a abordagem dogmática de um sistema constitucional lembram a situação dramática dos juízes alemães durante a consolidação do nazismo. São lições valiosas para estimular a superação das antinomias da jurisprudência num dado sistema de direito, sem perder de vista os valores superiores do ordenamento jurídico.

    Está presente no pensamento do Neumann que “o nacionalismo soube aprisionar os seus serviçais, de uma parte os soldados, de outra os juristas, por meio de dois princípios: “ordens são ordens” e “a lei é a lei” ”.[1]

    Radbruch – fazendo a mesma crítica– acrescentaria que “o melhor da democracia é que ela é a única apropriada para assegurar o estado de direito”,[2] (contra a) “regressão da racionalização do direito,(que pode ficar) marcado pela materialização em níveis extremados”, tendente à sua supressão.”[3]

    O sistema de direito do nazismo tinha um vício de origem, já que a validação das normas do sistema - as “superiores” validando as “inferiores” - era a voz do führer, que se tornou a própria Constituição, comparada ao arbítrio que viciou de ilegitimidade toda a teia normativa.

    As antinomias presentes no Estado de Direito como construção histórica da modernidade foram vacinadas na Constituição alemã, “redigida” após a Segunda Grande Guerra em função da experiência do nazismo, que montou um sistema formal de normas coerente mas sem origem na soberania popular. Ela foi promulgada em 23 de maio de 1949, como norma superior que passou a garantir a “supremacia da Constituição, mesmo contra a soberania popular”, permitindo a formulação dos pares antinômicos: “Estado de Direito” e “Estado de não-direito”, bem como “Democracia com Estado de Direito” e “Democracia sem Estado de Direito”. [4]

    Tratou-se de um desembarque relativo do positivismo lógico, presente na visão normativista de Kelsen, aportado no território kantiano dos valores. A questão é “onde” buscar esses valores num sistema normativo fechado em si mesmo, considerado como o sistema do “direito puro”.

    Um dos elementos essenciais desta teoria é que a confiança na ordem jurídica não pode ser violada pelas contingências políticas de governo, pois na “na verdade, o que o direito protege não é a ´aparência de legitimidade´ (...) mas a confiança gerada nas pessoas em virtude ou por força da presunção de legalidade e da “aparência de legitimidade”, que têm os atos do Poder Público”.[5]

    O sistema de controle da constitucionalidade do nosso corpo normativo contém algumas particularidades, já que ele está situado num espaço ideal entre o sistema “difuso” e o “concentrado”.”[6] Temos – no nosso Estado de Direito – um controle “difuso” integrado num controle “concentrado” (logo, de viés kelseniano), sem vínculos formais com métodos de “controle político da constitucionalidade”, como ocorre no sistema francês.

    Tal fórmula é que nos afastou das influências contingentes de Governo, na interpretação da Constituição.

    A essência da formulação clássica de Kelsen, predominantemente adotada no nosso sistema de justiça, vem “por meio da ideia de que a essência do direito é ser norma e de que, portanto, toda a teoria jurídica deve ser uma teoria das normas, uma teoria das proposições normativas (e é portanto) uma teoria do direito objetivo.”(p.25)[7].

    Todavia, o nosso sistema, que afasta o “controle político” formal, não pode interditar que a “política” incida sobre as decisões da Corte, já que a Corte Superior - que tem o poder de dizer o que é a Constituição - é politizada através dos valores políticos que ela lida, que são encontrados no preâmbulo, o pilar onde repousam os direitos fundamentais.

    O sentido desta perspectiva, é que o direito como sistema de poder legitimo, originário de uma força constituinte – não necessariamente democrática para o Kelsen deste período – está fechado num sistema de normas. Estas são “positivas” e devem ser aplicadas indiferentemente às “externalidades”, ou seja: o que vem de “fora” de tal sistema.

    Nada pode perturbar as “escolhas” de legitimação do Judiciário, que devem permanecer dentro da lei, pois uma norma é justificada e legitimada por uma outra, até o topo da Constituição, onde está (ou se encontra) o preâmbulo e/ou a “norma fundamental”.

    Como poderia ser reforçada a posição normativa de Kelsen, que não aceita que se fuja do “sistema de normas”, mas que também obriga o intérprete a apoiar-se na lei, em toda a cadeia do sistema?

    A única resposta possível é que sua posição pode ser aceita sem reservas se o poder constituinte – que legalmente estabeleceu a ordem jurídica originária – foi instaurado democraticamente: “Assim, satisfeita a exigência de se tomar uma norma posta como a primeira, todas as normas seguintes serão válidas desde que legalmente estabelecidas.(...)”.

    Isso permite que a legitimidade das normas e do próprio sistema, como um todo, “possa se reduzir, portanto, à legalidade.” [8]

    O texto sintético faz um resumo exemplar da coerência do sistema kelseniano, de uma parte, e – de outra – coloca um bloqueio ao arbítrio normativo, sem limites. O sistema fechado pode gerar abuso e totalitarismo quando a norma superior (da Constituição) não foi instituída legalmente, logo não o foi democraticamente, pela formação de uma câmara soberana de caráter constituinte.

    Aqui é que se instalou o conflito que fez Kelsen afastar-se, em parte, da sua “teoria pura” quando ao chegar aos EUA designou, espontaneamente, o sistema do nazismo como um “Estado sem Direito”, então reconhecendo um limite “externo” ao seu normativismo, incorporando nele valores que “vêm de fora”, anteriores à própria Constituição, através da vontade do constituinte soberano.

    As normas legalmente estabelecidas serão válidas se a norma “posta como primeira” for instituída por um poder constituinte democraticamente estabelecido ou revolucionário, como na Revolução Francesa, ali instituído para revogar o Estado monárquico do “ancièn regime”. Só isso permite que o juiz seja imparcial, ou seja, quando ele pode se socorrer, na própria Constituição, para a argumentação das escolhas que faz, verificando se, na origem da Constituição, está o poder democrático do constituinte como formalizador da soberania popular.[9]

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