Língua Portuguesa
- A Questão sobre Pontuação na Prova do Instituto Rio Branco
No dia 9 de março deste ano, realizou-se a primeira bateria de provas para a seleção dos futuros diplomatas do Instituto Rio Branco, localizado em Brasília.
É sabido que os candidatos a tão nobre função devem dominar a língua portuguesa, além de outras disciplinas, para obterem êxito no rigoroso certame a que se submetem, e, finalmente, ingressarem na prestigiosa Instituição.
Alguns concursandos me pediram para comentar uma questão sobre "pontuação" - precisamente, sobre a "vírgula" -, com a qual depararam, na prova de Língua Portuguesa do mencionado concurso. Vamos ao teste:
"Cada uma das opções subseqüentes reproduz períodos do texto, aos quais se acrescentaram uma ou mais vírgulas, que aparecem destacadas, seguindo-se uma justificativa. Assinale a opção em que é IMPROCEDENTE a justificativa apresentada para o acréscimo da (s) vírgula (s).
A) O soldado e o marinheiro permutaram bofetadas, mais ou menos teóricas, numa esquina de minha rua (,) por causa da namorada comum, que devia chamar-se Marlene.
Justificativa: a vírgula separa adjuntos adverbiais que expressam noções diferentes.
B) O duelo durou vinte minutos (,) e cinqüenta pessoas assistiram.
Justificativa: a vírgula separa orações coordenadas que, unidas pela conjunção e, têm sujeitos diferentes.
C) A dificuldade total foi reconstituir o delito, porque (,) tanto no inquérito policial quanto na formação de culpa perante o juiz (,) as espontâneas e numerosas testemunhas prestaram depoimentos inteiramente contraditórios.
Justificativa: as vírgulas isolam o adjunto adverbial antecipado.
D) Como começara e como findara a luta (,) foi impossível apurar.
Justificativa: a vírgula isola oração subordinada adverbial antecipada.
E) Diante da premência da fome, frio e desabrigo, o primeiro material foi o mais próximo e a primeira técnica (,) improvisada pela urgência vital.
Justificativa: a vírgula indica elipse do verbo.
O gabarito apontou a alternativa D como a que deveria ter sido assinalada. Concordo, sem titubeio. Todavia, não me furto de elogiar o teste, que requereu amplo conhecimento do uso da vírgula e, sobretudo, de análise sintática.
Como se verá abaixo, o abrangente teste exigiu o conhecimento de polissemia conjuntiva - tema ao qual sempre me atenho, nas aulas de português, em razão da insistente cobrança em provas de concursos e vestibulares. Procurei, à guisa de ilustração, citar testes neste artigo, com fartos exemplos, como forma de demonstrar a iterativa solicitação da temática.
De início, comentarei as alternativas que trouxeram justificativas aceitáveis (letras A, B, C, e E). Após, deter-me-ei à análise da alternativa D.
1º. Alternativa A: O soldado e o marinheiro permutaram bofetadas, mais ou menos teóricas, numa esquina de minha rua (,) por causa da namorada comum, que devia chamar-se Marlene.
Justificativa Ofertada: a vírgula separa adjuntos adverbiais que expressam noções diferentes.
Comentário: no período, a vírgula separa com adequação os adjuntos adverbiais de lugar (numa esquina de minha rua) e de causa (por causa da namorada comum). Note que se trata de circunstâncias que modificam o verbo" permutar "(bofetadas), trazendo-lhe as idéias de local e de motivo. A justificativa é válida.
2º. Alternativa B: O duelo durou vinte minutos (,) e cinqüenta pessoas assistiram.
Justificativa Ofertada: a vírgula separa orações coordenadas que, unidas pela conjunção e, têm sujeitos diferentes.
Comentário: o período é composto por duas orações, em razão da presença de dois verbos - durar e assistir. A partícula e une tais orações, formadas por distintos núcleos dos sujeitos (duelo e pessoas). Neste caso - orações distintas, com sujeitos distintos, unidas pela partícula e -, a vírgula é obrigatória. A justificativa é válida.
3º. Alternativa C: A dificuldade total foi reconstituir o delito, porque (,) tanto no inquérito policial quanto na formação de culpa perante o juiz (,) as espontâneas e numerosas testemunhas prestaram depoimentos inteiramente contraditórios.
Justificativa Ofertada: as vírgulas isolam o adjunto adverbial antecipado.
Comentário: a vírgula veio separar o anteposto adjunto adverbial (tanto no inquérito policial quanto na formação de culpa perante o juiz). Note que se trata de circunstância que modifica o verbo" prestar "(depoimentos), trazendo-lhe a idéia modificativa própria do advérbio. A justificativa é válida.
4º. Alternativa E: Diante da premência da fome, frio e desabrigo, o primeiro material foi o mais próximo e a primeira técnica (,) improvisada pela urgência vital.
Justificativa Ofertada: a vírgula indica elipse do verbo.
Comentário: a elipse indica a supressão de um termo na oração, em cujo local será possível a inserção da vírgula. Na verdade, quando se consegue identificar o elemento suprimido - o que aconteceu no teste -, defende-se a ocorrência do chamado zeugma, ou seja, uma espécie de elipse. No caso, a frase preenchida ficará:" (...) o primeiro material foi o mais próximo e a primeira técnica FOI improvisada pela urgência vital. "A justificativa é válida.
Passemos, agora, à análise da importante alternativa D:
4º. Alternativa D: Como começara e como findara a luta (,) foi impossível apurar.
Justificativa Ofertada: a vírgula isola oração subordinada adverbial antecipada.
Comentário: A justificativa é INVÁLIDA.
A justificativa ofertada é, de fato, inválida. Para a exata compreensão desse posicionamento, recomenda-se uma análise detida da conjunção" como ", acompanhada, se possível, de exaustiva exemplificação, com o fito de tornar didático o intrincado tema. É o que passo a fazer.
O estudo dos conectivos nas orações não deve se assentar em um automatismo cego. Muitas vezes, a conjunção parece indicar um dado valor semântico, mas, na verdade, representa sentido diverso, dependendo do contexto relacional. O fenômeno é conhecido por" polissemia conjuntiva ".
A conjunção" como "estabelece diferentes relações de sentido entre a oração principal e, por exemplo, a oração subordinada adverbial. Neste plano fronteiriço, são três os principais valores semânticos para o conectivo" como ": de causa, de conformidade e de comparação. Note:
1. Relação de CAUSA: o conectivo assume o sentido causal, equivalendo à conjunção" porque "ou às locuções conjuntivas" já que e uma vez que ". Nesse caso, o termo ocupa a função sintática de conjunção subordinativa adverbial causal, aparecendo, exclusivamente, no início do período. Observe os fartos exemplos:
a) Como havia chovido na véspera, os caminhões não conseguiram chegar à fazenda.
b) Como estava chovendo, evitei sair de casa.
c) Como estava apressada, a cliente esqueceu o cartão de crédito.
d) Como não tenho dinheiro, não poderei participar da viagem.
e) Como estava doente, não foi à aula.
f) Como estamos em má situação, devemos investir o máximo neste projeto.
g) Como estava esgotado, encostou-se a uma parede da velha casa.
h) Como o professor exigiu, ele fez os trabalhos.
i)" Como continuamos a ler pelos anos afora o maior nome das nossas letras, Machado de Assis é uma boa referência. (...) "
j) Como praticamente não existem estímulos para procurar essa carreira, o cenário poderá ficar crítico nos próximos dez anos.
l) Como o sol da tarde lhe queimava o rosto, fechou rapidamente a janela.
m)" (...) Como o Estado tem o privilégio de impor ônus ao particular, e em prazos determinados, tanto mais deve agir com obediência a normas permanentes e conhecidas. "
2. Relação de CONFORMIDADE: o conectivo assume o sentido conformativo, equivalendo às expressões" de acordo com "ou" conforme ". Nesse caso, o termo ocupa a função sintática de conjunção subordinativa adverbial conformativa. Note os variados exemplos:
a) Tudo aconteceu como eles haviam previsto.b) Faço o trabalho como o regulamento prescreve.c) Como dizia o poeta,"a vida é a arte do encontro".d) Como ia dizendo, não me leve a mal!e) Como o jornal noticiou, o teatro ficou lotado.f) O funcionário procedeu como determina o memorando.g) Como é do conhecimento geral, tomaremos as medidas hoje mesmo.h) Como disse anteriormente, você está equivocado.i) Como se verá, nosso trabalho de tantos anos mostrou-se inteiramente inútil.
3. Relação de COMPARAÇÃO: o conectivo assume o sentido comparativo, equivalendo às expressões" do mesmo modo que "," tal qual "," qual "," assim como "ou" igual a ". Traduz-se em tendência estilística conhecida por símile. Nesse caso, o termo ocupa a função sintática de conjunção subordinativa adverbial comparativa. Veja os exaustivos exemplos:
a) Ele age como o pai (agiria).
b) Maria falou como o seu tio (falou).c) O cão acomodou-se no sofá, como um caracol.d) Este menino é tão inteligente como o irmão.e) Como todos os seres vivos, nós nascemos, atingimos a maturidade, procriamos e morremos.
f)" No pátio o silêncio dormia ao sol como um lagarto. "(Raul Pompéia, em" O Ateneu ")
g)" As condecorações gritavam-lhe no peito como uma couraça de gritos. "(Raul Pompéia, em" O Ateneu ")
h)" E cai como uma lágrima de amor. "(Antônio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes)
i)" Eu faço versos como quem chora / De desalento (...) de desencanto (...) "(M. Bandeira) j)" (...) Como os sacerdotes de antigamente, economistas têm a missão de explicar o inexplicável - como o dinheiro é tudo e nada ao mesmo tempo, por que falta dinheiro se dinheiro é papel impresso, ou se a quantidade de santinhos muda o tamanho do milagre. "
l)" Como a tão malbaratada palavra "ética" , muito vocábulo perde seu sentido quando envereda por trilhas falsas. (...) "
m)" O fim do bonde como transporte coletivo não correspondeu ao fim do signo,(...). "
n)"... ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas..."
o) O governo atual é tão bom ou ruim como os anteriores.
p)" Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco, / Já solta o bogari mais doce aroma! / Como prece de amor, como estas preces, / No silêncio da noite o bosque exala. "(Gonçalves Dias)
q)" Se eu usasse lentes de contato, eu poderia ter um olho vermelho-sangue e outro amarelo-canário, como um inseto. "
r)" A reação dos moradores foi tão chocante como as brutais mutilações. "
Feitas as observações acima, impende destacar, ademais, que a conjunção" como "pode servir para introduzir certos tipos de orações subordinadas substantivas. Note os importantes exemplos abaixo:
1. Na Oração Subordinada Substantiva Subjetiva:
a) Ignora-se como chegou vivo à casa da mãe. (= Ignora-se isso, o sujeito) b) Estipula-se como será o cálculo. (= Estipula-se isso, o sujeito)
c) Calcula-se como chegaremos ao topo da montanha. (= Calcula-se isso, o sujeito)
2. Na Oração Subordinada Substantiva Objetiva Direta:
a) Ignoramos como conseguiram se salvar. (= Ignoramos algo, o objeto direto)
b) Ninguém sabia direito como ele iria embora. (= Sabia direito algo, o objeto direto)
c) Eles confessaram-lhe como haviam conseguido entrar. (= Confessaram-lhe algo, o objeto direto)
d) Perguntei-lhe como faria para saldar aquela dívida.[14] (= Perguntei-lhe algo, o objeto direto)
e) Não sabemos como adquiriu o bem. (= Não sabemos algo, o objeto direto)
f) Os jornais explicaram como os ladrões fugiram. (= Explicaram algo, o objeto direto)
Assim, após esta minuciosa análise, a que julguei oportuno proceder, na resolução da questão, torna-se evidente que a alternativa D apresenta justificativa inválida, quanto ao uso da vírgula.
A vírgula ocorre em tal assertiva para isolar, sim, uma oração subordinada substantiva objetiva direta (" Como começara e como findara a luta ") - no caso, anteposta -, e não para isolar oração adverbial.
Para os concursandos, acredito que tenha ficado uma lição: a força da vírgula, bem justificada, é importante desafio àqueles que irão, sem o uso da força, diante de possíveis antagônicas justificativas, lidar com a arte da ponderação - os diplomatas. Boa sorte a todos!
Prof. Eduardo Sabbag
[1] FAUSTO, Boris. Folha de S. Paulo, Caderno Mais, in" A Dança das Palavras ", em 15-04-2007: Item de Vestibular da ESPM, realizado em julho de 2007.
[2] Item do Concurso Público para cargo do Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT), realizado em 2006.
[3] Item do Concurso Público para cargo do Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT), realizado em 2006.
[4] MARINHO, Josaphat. Surpresas Tributárias, com adaptações: Item do Concurso Público para Auditor-Fiscal da Receita Federal, realizado pela ESAF, em 06-04-2002.
[5] Item do Concurso Público para cargo do Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT), realizado em 2006.
[6] SAYAD, João. Cidade de Deus. Classe Revista de Bordo da TAM, nº 95, com adaptações): Item do Concurso Público para Auditor-Fiscal do Trabalho, realizado pela ESAF, em 13-12-2003.
[7] LUFT, Lya. Veja, 30-11-2005: Item do Concurso Público para Escrevente Técnico Judiciário - TJ/SP, realizado pela VUNESP, em 23-04-2006.
[8] FAUSTO, Boris. Folha de S. Paulo, Caderno Mais, in" A Dança das Palavras ", em 15-04-2007: Item do Concurso Público para Escrevente Técnico Judiciário - TJ/SP, realizado pela VUNESP, em 23-04-2006.
[9] Item de Vestibular da PUC/SP, realizado em 2003.
[10] Item do Concurso Público para cargo do Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT), realizado em 2006.
[11] Item do Vestibular do Mackenzie, realizado em dezembro de 2004.
[12] Item do Vestibular da UFAM, realizado em 10-12-2006.
[13] Item do Vestibular da PUC/SP, realizado em julho de 2006.
[14] Item do Concurso Público para cargo do Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT), realizado em 2006.
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