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18 de Maio de 2024
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    Mês da Mulher - Amagis entrevista a juíza Maria Luiza de Andrade Rangel Pires

    Mães com crianças no colo têm sido uma cena cada vez mais comum nos corredores do Fórum Lafayette, em Belo Horizonte. É que, desde abril de 2018, o 3º andar do edifício abriga o Centro de Reconhecimento de Paternidade (CRP), local onde dezenas de mães buscam diariamente a oportunidade de dar aos filhos uma Certidão de Nascimento com o nome do pai e, assim, tornar mais digna a vida dessas crianças.

    Quem comanda o CRP é a juíza Maria Luiza de Andrade Rangel Pires, titular da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte. Com sensibilidade, empatia e muita disponibilidade para ajudar o próximo, a magistrada coordena os trabalhos do Centro há três anos e meio. Nesse período, já ajudou a mudar a realidade de milhares de famílias.

    Nesta série especial em homenagem ao Mês da Mulher, a Amagis pública hoje o depoimento de Maria Luiza Rangel sobre os desafios enfrentados ao longo da carreira, as mudanças que o trabalho no CRP trouxe para sua vida pessoal e profissional e as contribuições que as mulheres deram à Magistratura.




    INÍCIO DA CARREIRA

    “Quando entrei para a Magistratura, em 1996, eu tinha 28 anos. Minha primeira comarca foi Alvinópolis. Eu ficava em uma sala de audiência no 2º andar do fórum e, para terem acesso à Vara Criminal, as pessoas precisavam passar em frente a esse local. As pessoas me viam ali, sentada no lugar do juiz, e me abordavam pedindo informações. Era muito comum também os advogados que ainda não me conheciam pararem para me perguntar se eu era a secretária do juiz. Veja bem: eu estava sentada na cadeira do juiz, na sala do juiz, mas as pessoas não me viam como tal. Na cabeça delas, uma mulher muito nova não poderia nunca ser uma magistrada. Logo no início da carreira, isso me impactou muito. Percebia claramente que aqueles cidadãos não reconheciam em mim uma magistrada. Mas, com o tempo, passei a tirar isso de letra e percebi que é possível superar esse tipo de preconceito com o trabalho.”.


    FAMÍLIA

    “Ser juíza nunca mudou a minha vida e meu jeito de ser. Eu me lembro que, em Mantena, matriculei meu filho mais velho em uma das melhores escolas na cidade. Mas ele chorava sem parar e eu sabia que tinha algo errado. Resolvi colocá-lo em outra escola, uma instituição particular católica onde havia meninos cumprindo medidas socioeducativas e muitas crianças de baixa renda, de diversos cantos da cidade. Depois disso, o comportamento dele mudou. Essa convivência com crianças de perfis e realidades tão diferentes foi muito importante. Nunca houve uma distinção pelo fato de eu ser juíza. E é assim até hoje.

    A diferença que noto é pelo fato de sermos mães, mulheres e profissionais com tantas funções distintas. Ainda há uma sobrecarga emocional e doméstica em cima das mulheres. Nossa rotina é muito mais atribulada por conta dessas inúmeras funções que desempenhamos e que muitos homens ainda não as tomaram para si também. Só que essa realidade não é exclusiva das magistradas. É da mulher brasileira. E é isso que precisa mudar.”.


    SITUAÇÕES DESAFIADORAS

    “Em abril de 2010, os empresários Fabiano Ferreira Moura e Rayder Santos Rodrigues foram torturados, assassinados e decapitados em um apartamento no bairro Sion, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte. Eu atuei nesse caso, que ficou conhecido como o “crime da degola” e que teve uma repercussão muito grande porque envolvia pessoas ricas e influentes da cidade. Coube a mim fazer a instrução desse processo. Nessa época, eu era juíza auxiliar em BH e atuava muito no Júri.

    Esse era um processo difícil porque envolvia muitos réus e muitos advogados, e eles tentavam obter o que queriam na força e na pressão. Todo o comportamento deles buscava me fragilizar, e eu percebia claramente que isso ocorria devido ao fato de eu ser mulher. Como eram muitos presos, muitas testemunhas arroladas e os fatos eram muito complexos, eu separava uma semana inteira para fazer as audiências desse processo. Eu não me levantava nem para almoçar. E os advogados pressionavam o tempo inteiro. O réu Frederico Flores, o mentor do crime, fazia muita pressão psicológica em mim para ser solto, questionava sua prisão com muita veemência, algo além do aceitável em uma audiência, e os advogados não faziam absolutamente nada para frear o cliente. Às vezes eles demoravam duas horas para ouvir uma única testemunha - algo que em outra situação levaria poucos minutos -, sabendo que ainda havia uma dezena delas para ser ouvida. Faziam isso para tentar me desestabilizar. Se fosse um juiz no meu lugar, tenho certeza de que o comportamento deles seria bem diferente. Eles achavam que, pelo fato de eu ser mulher, podiam “crescer” para cima de mim e me intimidar. Eu saía das audiências esgotada. Só que isso não me fragilizou. Pelo contrário. Na instrução desse processo, consegui chegar até o fim com os réus presos.”


    O TRABALHO NO CRP

    “Dos meus 23 anos de Magistratura, o trabalho que exerço como coordenadora do Centro de Reconhecimento de Paternidade (CRP) é o mais dignificante de todos. O Centro me permite exercer a Magistratura de uma forma que nenhum outro lugar me permitiria. Aqui, tenho um contato real e pessoal com a história de vida dos jurisdicionados e posso, de formas infinitamente alternativas, ajudar essas pessoas a ter mais dignidade e a mudar a realidade delas.

    Vou dar um exemplo de como isso acontece: no início deste mês, atendemos uma menina de 13 anos com um bebê de uns quatro meses no colo. Ela estava com a mãe, uma senhora muito simples. Chegaram aqui com o seguinte discurso: a menina tinha sido abusada sexualmente por um vizinho. Só que como elas eram da cidade de Vespasiano, o Conselho Tutelar de lá já estava acompanhando essa família, já que a menina ficou grávida com 12 anos. A garota já tinha feito um exame de DNA, a pedido do Conselho. E o resultado deu negativo.

    Então, elas vieram ao CRP com o discurso de que o exame estava errado porque a menina jurava para a mãe que o rapaz era o pai da bebê. Falei para elas que era praticamente impossível o resultado estar errado. Ao mesmo tempo, a mãe estava receosa de fazer um segundo exame e o resultado dar negativo novamente. Ela achava que, se isso acontecesse, seria uma vergonha para ela e a filha. Mas a menina jurava que o resultado não seria negativo.

    É aí que entram as formas alternativas de solução do conflito que podemos usar no CRP. Se eu fosse olhar ao pé da letra, não teria que atender aquelas pessoas, já que a menina indicava apenas um suposto pai e já havia um resultado de DNA negativo. Só que eu fiquei pensando: não posso deixar essas duas mulheres voltarem para casa sem uma resposta. Essa senhora vai passar a vida achando que a neta não tem um pai porque fizeram um DNA errado. E essa menina também vai ficar em uma situação muito ruim.

    Então, comecei a me perguntar: será que essa menina foi abusada por outra pessoa? Será este o motivo de ela ser tão reprimida? Ao mesmo tempo em que pensava isso, não me sentia preparada para fazer esse tipo de abordagem. O que eu fiz? Liguei no Setor de Psicologia do Fórum e conversei com a psicóloga de plantão. A psicóloga conversou reservadamente com a menina por uns 15 minutos, mas ela não se abriu.

    Depois disso, eu mesma resolvi conversar sozinha com a garota. Disse a ela podia ser sincera comigo porque eu só queria ajudá-la a fazer com que a filha dela tivesse um pai. Nesse momento, a menina desabou a chorar e me contou que teve uma relação sexual com outro rapaz – um amigo do primeiro suposto pai que também é vizinho dela.

    Nesse momento, eu a amparei e recomendei que ela contasse a verdade para a mãe porque ela só tinha 13 anos e não tinha condições emocionais de guardar isso só pelo resto da vida. Nós chamamos a mãe e contamos para ela o que havia acontecido. Pedi muito à senhora que apoiasse a filha. Depois de muita conversa, as duas se entenderam. Então, disponibilizei a opção de trazerem o outro rapaz para que fizesse o DNA. Foi nítida a transformação da menina. Ela chegou aqui com 100 quilos no ombro e saiu leve, sorridente.”.


    SENSIBILIDADE

    “Eu fico tentando imaginar um homem fazendo esse papel com tanto envolvimento e confesso que tenho um pouco de dificuldade de vislumbrar isso. O fato de ser mulher ajuda nesses momentos mais complicados porque temos uma sensibilidade mais apurada, diferente. O fato de ser mãe também ajuda muito porque sei o quanto é importante o papel de cada membro da família. E aquela mulher que vem aqui buscando o reconhecimento da paternidade do seu filho e sai sem uma solução acaba transmitindo essa frustração para a criança. Mas é claro que nada disso resolveria se eu não tivesse um perfil que se adequasse tão bem ao trabalho que é desempenhado no CRP.

    Estou no Centro há três anos e meio. Nesse período, já criamos o CRP itinerante, que leva o trabalho do Centro para dentro das comunidades mais carentes de Belo Horizonte, e estamos trabalhando na expansão do CRP para comarcas do interior do estado. No início do meu trabalho, passei 30 dias exclusivamente dentro do CRP para entender como é importante o envolvimento pessoal do juiz para o sucesso do trabalho. Hoje, a gente faz reconhecimento de paternidade socioafetiva, que é o pai do coração. São pais não biológicos que assumiram o filho da companheira. Toda vez que há esse tipo de reconhecimento sou eu que faço as audiências com os conciliadores. É uma questão muito delicada porque preciso ter a certeza de que a criança vê naquele homem um pai. Eu adoro o que vivo aqui. Posso passar oito horas por dia trabalhando no CRP que saio leve.”.


    TRANSFORMAÇÃO

    “Histórias como essas que contei me enriquecem muito mais do que qualquer outra experiência, porque me permitem testemunhar as transformações na vida dessas pessoas. Eu recebo muito mais do que dou a elas. Para isso, é preciso haver um envolvimento real com cada caso.

    Ver a alegria dessas pessoas me dá um sentimento verdadeiro de justiça. Na Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte, eu sinto o mesmo quando faço audiências de retificação de nome de pessoas que carregaram uma vida inteira um nome que não suportam ouvir. Quando dou a sentença autorizando a mudança, a pessoa desaba a chorar porque tira um peso de uma vida inteira suportando um fardo. Todas as vezes que a gente consegue ver o resultado do trabalho materializado na nossa frente é maravilhoso, a gente passa a enxergar o processo de um outro jeito. Isso é enriquecedor e transformador para qualquer pessoa. É fazer justiça. É ver o nosso trabalho modificando a vida do cidadão. O processo deixa de ser material e se torna humano.”.


    CONTRIBUIÇÕES DA MULHER PARA O JUDICIÁRIO

    “De uns anos para cá, as mulheres – inclusive na Magistratura - passaram a ser mais respeitadas exatamente porque passaram a ocupar mais espaços. Na Magistratura mineira, são várias mulheres exercendo funções da extrema importância e desempenhando seu trabalho com dinamismo, proatividade e envolvimento. Vários projetos inovadores que vêm surgindo no Judiciário são liderados por mulheres, e isso não é por acaso.

    Basta você olhar os projetos da 3ª Vice-Presidência com a desembargadora Mariângela Meyer, a preocupação da desembargadora Áurea Brasil, na 2ª Vice, em oferecer aos magistrados cursos que realmente atendam às necessidades deles, o trabalho de magistradas no Tribunal do Júri, nas varas de Tóxicos, no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e tantos outros. Tem muita coisa acontecendo hoje no Tribunal que é fruto de iniciativas femininas. Sinto que a mulher faz sempre algo além daquilo que é sua mera obrigação. E a partir do momento que a gente atua com afinco, mostra que não existe diferença de gênero.”.


    CONSELHOS PARA AS NOVAS MAGISTRADAS

    Tenho dado aula no Curso de Formação Inicial da Ejef e noto que, cada vez mais, as turmas têm mais mulheres. E mulheres muito jovens. Logo de cara você já vê que a mulher tem uma postura diferente. E esse é o meu conselho. Faça a diferença, vá além daquilo que é apenas a sua obrigação. Sei que é pesado porque tem toda uma vida doméstica e familiar nos esperando para administrar. Conciliar tudo é complicado, mas aquilo que a gente faz além da nossa obrigação é o que nos dá prazer. E tudo que a gente faz por prazer não cansa. Pelo contrário, é a recompensa por todos o nosso esforço.”

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