O aborto negado para uma menina de 11 anos
Uma menina de 11 anos, que estaria sendo violentada pelo padrasto desde os 8 anos de idade, chegou a um serviço de saúde em Teresina. Vivia em cidade maranhense de fronteira, mas a capital piauiense estava 400 km mais próxima para a urgência da atenção de que precisava. Descobriu-se que estava grávida. Para a lei penal, a violência do estupro sofrido pela menina por anos é presumida: pela pouca idade, e diante de um adulto com poder e responsabilidade de zelar por seu bem-estar, não se pode fantasiar que houvesse consentimento. Estando grávida em decorrência de estupro, a menina deveria ter direito a um aborto legal. Seu caso seria um dentre muitos: entre 2013 e 2015, mais de 30% das mulheres que fizeram um aborto legal no Brasil eram, na verdade, meninas e adolescentes vítimas de estupro.
Mas a menina teve o direito ao aborto legal negado. A alegação é de que a gestação estaria na 25ª semana, e o tempo gestacional máximo de que fala a norma técnica do Ministério da Saúde é de 22 semanas. Essa é uma leitura absolutizante de uma previsão que deveria ser aplicada para cuidar da saúde física e mental de meninas e mulheres. Importaram as três semanas do prazo, não importaram os três anos de violência.
Se para mulheres adultas vítimas de estupro buscar um serviço de saúde é caminho árduo, marcado de estigma e suspeição sobre suas narrativas, é perverso não levar a sério o impacto das barreiras vividas por uma criança de 11 anos, vivendo em uma cidade interiorana e violentada por um membro da família. É o oposto da “atenção humanizada” que está no título da norma técnica de aborto legal.
Para legitimar a tragédia, o Serviço de Atenção às Mulheres Vítimas de Violência Sexual do Piauí teve que reinventar o caso. Em nota publicada, a criança de 11 anos virou “a gestante adolescente”. Os anos de violência sexual foram dissolvidos na ausência de “sintomas de anormalidades em sua saúde física ou mental no momento do exame físico”. O aborto negado seria para “salvaguardar a saúde da adolescente e do seu concepto, assegurar os princípios éticos e legais do serviço de saúde e de seus profissionais, bem como reduzir riscos de morbimortalidade materna” – sem qualquer prova de que seguir com a gestação seja mais seguro para a menina do que interrompê-la, ou qualquer justificativa de porquê um corpo de menina pode ser instrumento para confortar convicções privadas de profissionais de saúde.
A menina teve a infância roubada pelo familiar que a violentou e pelo Estado que lhe negou o direito à saúde. O serviço de saúde afirmou ainda que ela seria “orientada e encorajada para as possibilidades de cuidar da criança”. Em outras palavras: a menina será abandonada a uma maternidade forçada e violenta.
Sinara Gumieri é advogada e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética. Este artigo é parte do falatório Vozes da Igualdade, que todas as semanas assume um tema difícil para vídeos e conversas. Para saber mais sobre o tema deste artigo, siga https://www.facebook.com/AnisBioetica
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