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16 de Junho de 2024
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    O Brasil tem um enorme passado pela frente

    Publicado por Justificando
    há 8 anos

    No dia 30 de agosto de 2016, vimos 61 Senadores da República reconhecerem a existência de crime de responsabilidade na gestão fiscal do governo Dilma Rousseff. Foi o ato final de uma trama que se iniciou com a proclamação do resultado do certame eleitoral no ano de 2014, começando pelo pedido de auditoria nas urnas, passando pelo recebimento da denuncia por crime de responsabilidade aceita pelo ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha e, finalmente, culminando efetiva condenação de Dilma por maioria qualificada no Senado Federal. O governo Temer está, portanto, consumado.

    Desde o início da gestão interina, Temer sinalizou claramente acerca dos interesses que seriam albergados, quando da efetivação de seu governo. Não muito distante de hoje, no dia 12 de maio de 2016 – dia do afastamento de Dilma Rousseff -, Temer discursava pela primeira vez no Palácio do Planalto como presidente interino e parte de seu discurso reproduzimos aqui:

    "Eu conservo a absoluta convicção de que é preciso resgatar a credibilidade do Brasil no concerto interno e no concerto internacional, fator necessário para que empresários dos setores industriais, de serviços, do agronegócio, e os trabalhadores, enfim, de todas as áreas produtivas se entusiasmem e retomem, em segurança, com seus investimentos. Teremos que incentivar, de maneira significativa, as parcerias público-privadas, na medida em que esse instrumento poderá gerar emprego no País.

    Sabemos que o Estado não pode tudo fazer. Depende da atuação dos setores produtivos: empregadores, de um lado, e trabalhadores de outro. São esses dois polos que irão criar a nossa prosperidade. Ao Estado compete — vou dizer, aqui, o óbvio —, compete cuidar da segurança, da saúde, da educação, ou seja, dos espaços e setores fundamentais, que não podem sair da órbita pública. O restante terá que ser compartilhado com a iniciativa privada, aqui entendida como a conjugação de ação entre trabalhadores e empregadores."

    Michel Temer demonstrou, de pronto, que pretende construir um governo neoliberal, a partir da desestruturação do setor público em nome de uma suposta eficiência da iniciativa privada. O que se anunciava, em maio, parece se concretizar agora. Durante o julgamento de Dilma Rousseff, enquanto sua gestão ainda era provisória, as ações de Temer no sentido de conferir a tão proclamada eficiência ao setor público foram bastante comedidas. Aliás, caminharam em sentido contrário, quando se tem em mente a criação de 14.419 novos cargos comissionados no âmbito do poder Executivo, número três vezes maior do que o previsto para o corte no plano de austeridade. Adquirida a suposta legitimidade que a confirmação por parte do Senado Federal deu a sua gestão, o agora presidente efetivo já se encontra à vontade para dar concretude aos seus anseios privatizadores.

    Circulou na grande mídia, que, após o seu retorno da China, onde participa enquanto representante do Brasil no encontro do G-20, o Presidente da República pretende propor um abrangente plano de desestatizações - “talvez o maior já visto”, segundo o jornal Estado de São Paulo. Seriam objeto de concessão os Correios, a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), que atua na gestão dos 35 hospitais universitários do país, assim como outros setores de logística do governo federal. Temer reforça, com isso, a imagem da santificação do mercado em detrimento da pressuposta ineficiência do âmbito estatal, a partir da ideia de que seria necessário um esforço desconstrutor de todo aquele aparelho burocrático ineficiente e marcado por relações patrimoniais, a fim de modernizar o país. Como ele mesmo afirma em seu discurso de posse, agora como efetivo, “Nossa missão é mostrar a empresários e investidores de todo o mundo nossa disposição para proporcionar bons negócios que vão trazer empregos ao Brasil”.

    A tese da inaptidão do Estado brasileiro no sentido da realização de uma gestão eficiente não foi inventada por Temer – mas está presente tanto no imaginário do senso comum, quanto nas ciências sociais do país. Provavelmente foi Jessé Souza que melhor apontou tal relação entre senso comum e pensamento social brasileiro, ao desenvolver a sua chamada “crítica da sociologia da inautenticidade”. Na base de seu empreendimento faz a hipótese de que, ao interpretarem os problemas sociais brasileiros, uma determinada tradição do pensamento sociológico, composta por Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro e Roberto DaMatta, se vale de uma chave-de-leitura composta por um conjunto de conceitos e noções que resultariam em uma “teoria emocional da ação social”. O sociólogo assevera que essa tradição concebe a sociedade brasileira “como se esta fosse constituída por características pré-modernas como a emotividade, o sentimento, ou seja, tudo o que o mundo moderno do cálculo e da racionalidade destrói para se impor”.

    Esse conjunto de noções se oporia a uma visão do processo modernizador das sociedades tidas como racionais e avançadas e carrega consigo uma visão naturalista de sociedade difundida no pensamento sociológico do início do século XX, precisamente na contraposição entre racionalidade europeia versus emotividade latino-americana. O preconceito que, em última análise, provém do senso comum torna-se, segundo ele, a acriticidade das ciências sociais, em um processo de retroalimentação. Por um lado, o senso comum ofereceria os insumos materiais, que se revestem de cientificidade após o contato com a dita “sociologia da inautencidade”. O produto de tal contato retornaria à comunidade, na forma de argumentos de autoridade que reforçam um viés explicativo de uma esfera pública débil como uma característica folclórica deste tipo de sociedade pré-moderna e emotiva. O esforço de Jessé de Souza, que culminou na chamada “crítica da sociologia da inautenticidade”, se dá no sentido de identificar a estrita relação entre senso comum e certa corrente interpretativa no interior pensamento social brasileiro.

    A figura de Sérgio Buarque de Holanda assume, portanto, um papel central nas reflexões sobre pensamento social brasileiro. Isso não decorre somente do criticismo de Jessé Souza, que o considera pai da dita “sociologia da inautenticidade”, mas também pode ser vislumbrado pela influência dos conceitos forjados por Holanda tanto na sociologia quanto em outros ramos das ciências humanas. A menção ao nome de Holanda nos remete, automaticamente, ao de sua criação mais famosa: o homem cordial. Remetendo à expressão cunhada pelo escritor Ribeiro Couto, este pode ser considerado a espinha-dorsal da análise empreendida pelo autor de Raízes do Brasil e remeteria, sobretudo, à aversão às formas de sociabilidade racionalizadas por parte do brasileiro. Como afirma Jessé de Souza, o homem cordial é, fruto da transposição da cultura ibérica para o Brasil, “o homem moldado pela família, em contraposição à esfera política e econômica que exigem disciplina, distanciamento afetivo e racionalidade instrumental”. Poderíamos traduzir tal conceito como a eleição da relação afetiva como a forma de interação por excelência no âmbito da ordem social, deturpando, nesse sentido, as formas de sociabilidade que pressupõem justamente a negação radical do afeto, como o Estado.

    Contra a ineficiência do Estado, justificada pela suposta inaptidão do brasileiro à coisa pública, foram tomadas diversas ações no sentido de modernização do direito administrativo brasileiro – como, por exemplo, a Emenda Constitucional nº 19/98, bastante criticada no âmbito da doutrina administrativista pátria. As reformas, fundamentadas na crítica do gigantismo estatal associado ao Estado providência, levaram “à formulação e implementação de uma agenda reformista, de orientação pró-mercado, focada na redução do escopo da intervenção do Estado na economia e na concomitante reestruturação de seu aparato organizacional e dos mecanismos de que dispõe para governar”. Interessante é a constatação de que, em diversas análises, o pensamento de Sérgio Buarque de Holanda figura como um dos suportes teóricos dessa transformação rumo a um Estado tido como gerencial. A crítica à modernização do aparato burocrático-estatal não se liga, obviamente, à questão sobre sua existência propriamente dita, mas aos motivos que ensejam tais reformas, uma vez que, apesar da diminuição do seu âmbito de atuação, “a gestão pública deve facilitar a expressão de vontades, fazer a mediação entre elas e encontrar valores para conduzir as ações”.

    O Brasil da década 90, por exemplo, foi palco do embate teatralizado entre “Estado demonizado e mercado – concentrado e superfaturado como é o mercado brasileiro -, como reino da virtude e eficiência”, e nem sempre as privatizações efetuadas atingiram os objetivos propostos, qual seja, a melhoria dos serviços prestados com a concomitante desoneração do Estado. Os termos “cordialidade” e “patrimonialismo” tem figurado recorrentemente no instrumental teórico administrativista, sem a clara consciência, contudo, do estofo teórico de tais conceitos, isto é, o senso comum.

    Com a consolidação do plano de concessões estatais, a guinada definitiva rumo ao gerencialismo estatal será dada, em um cenário que lembra em muito o do final do século passado, não somente no que diz respeito aos problemas em voga, mas inclusive as soluções dadas: privatizações a todo custo, independentemente de um aumento do bem-estar do endereçado final do serviço prestado. A menção ao aspecto dos destinatários da gestão estatal e das políticas públicas nos remete a outro ponto: o processo de desestatização a ocorrer no Brasil não vem acompanhado das consultas públicas sobre a real demanda da população sobre tais serviços. Dito de outra forma, a demonização do estatal esconde a ausência de participação popular no âmbito da gestão dos recursos públicos e das políticas estatais.

    O projeto de governo do atual presidente consolida uma verdadeira ponte para o passado, na medida em que despreza os avanços sociais duramente conquistados nos últimos 30 anos. Apesar do flerte com o neoliberalismo nos anos 90, nos últimos treze anos vimos a consolidação de um modelo estatal promotor dos interesses sociais e preocupado com a soberania e os interesses nacionais – vide, sobretudo, a questão do pré-sal. O plano de desestatizações, somado à assim chamada “modernização” da legislação trabalhista – em que se fará prevalecer o negociado sobre o legislado, colocando-se em risco garantias trabalhistas construídos durante mais de 70 anos – pode ser considerado como verdadeiro retrocesso social. Millôr Fernandes não poderia ser mais atual quando afirma: “o Brasil tem um enorme passado pela frente. Ou um enorme futuro por detrás".

    Douglas Carvalho Ribeiro possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2014). Atualmente é mestrando no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG.

    Victor Cezar Rodrigues da Silva Costa possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2014). Atualmente é mestrando no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG.

    3 - Para o acesso ao discurso na íntegra, ver < http://oglobo.globo.com/brasil/veja-integra-do-discurso-de-michel-temer-19296029> 4- Cf. http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/04/economia/1464992955_507128.html 5- Cf. http://política.estadao.com.br/noticias/geral,a-desestatizacao-de-temer,10000069114 6- Para o acesso ao discurso na íntegra, ver < http://g1.globo.com/politica/processo-de-impeachment-de-dilma/noticia/2016/08/integra-do-1-pronunciamento-de-temer-como-presidente-veja-e-leia.html> 7- SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2009, p. 56. 8- Ibidem, p. 36. 9- Como frisou Pedro Meira Monteiro, tal contraposição não se restringe às grandes intepretações do Brasil, mas aparecem de forma recorrente em outra regiões da América Latina, cf. MONTEIRO, Pedro Meira. Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil. São Paulo: Hucitec Editora, 2015, p. 118. 10- SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília: UnB, 2000, p. 95-104. 11 -Essa abrangência pode ser observada por meio das diversas coletâneas de artigos disponíveis na literatura sobre Sérgio Buarque de Holanda. À guisa de exemplificação: CANDIDO, Antonio (org.) Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998. 12- HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936, p. 101. 13- Ibidem, p. 102-103. 14- SOUZA, Jessé. A ralé brasileira, op. cit., p. 55. 15- Ver, por exemplo, MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2009, p. 184. 16- CARNEIRO, Ricardo; MENICUCCI, Telma Maria Gonçalves. Gestão pública no século XXI: as reformas pendentes. Brasília: IPEA, 2011 (Texto para Discussão n. 1686), p. 11. Disponível em: . Acesso em: 16/05/2016. 17- Como em BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Do Estado Patrimonial ao Gerencial. In PINHEIRO, Paulo Sérgio; SACHS, Ignacy; WILHEIM, Jorge (org.). Brasil: um século de transformações. São Paulo: Cia. das Letras, 2001: 222-259. 18- CARNEIRO, Ricardo; MENICUCCI, Telma Maria Gonçalves. “Gestão pública no século XXI: as reformas pendentes”, op. cit., p. 09. 19- SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo, LeYa, 2015, p. 10. 20- Ibidem, p. 11. 21- FERNANDES, Millôr. Millôr definitivo: a bíblia do caos‎. São Paulo: L&PM Editores, 1999, p. 30.
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