Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
8 de Maio de 2024
    Adicione tópicos

    O Holocausto Manicomial 2: Trechos da história velada do Juquery

    Publicado por Justificando
    há 9 anos

    Considerado um dos maiores hospícios do Brasil, o Asylo de Alienados do Juquery - projetado por Ramos Azevedo e fundado por Franco da Rocha em 1898 em São Paulo -, abriga mais de um século de história (velada) de mortes, torturas e maus tratos.

    Na inauguração o hospital tinha 80 pacientes, muitos "sem diagnóstico algum de doença mental”[1], representantes de um setor improdutivo e inútil da sociedade:

    Não havia um diagnóstico preciso dos problemas mentais. Conviviam no mesmo ambiente, esquizofrênicos, alcoólatras, pessoas com síndrome de down, usuários de drogas ilícitas... a lista vai longe! Até presos políticos foram parar lá dentro e morreram sem que ninguém soubesse onde foram enterrados. No início do século 20, imigrantes japoneses chegavam ao porto de Santos e só porque tinham os olhos puxados eram considerados diferentes e acabavam internados no Juquery. A política da época era limpar as ruas e eliminar aquilo que parecesse diferente e não se enquadrasse nos padrões de normalidade da sociedade[2].

    No seio da medicina social constituiu-se a psiquiatria brasileira no final do século XIX, convencionalmente definida como uma especialidade que se ocupava do diagnóstico e do tratamento das doenças mentais, mas que no início do séc. XX estruturou-se na biologização dos comportamentos e na prevenção eugênica. O Juquery atendia exatamente a essa política de sanitarismo, higienismo, controle social e segurança, lógica esta de neutralização dos “inúteis-inferiores” para que não se reproduzissem e não atrapalhassem o avanço das raças “superiores”.

    Em 1922, foi inaugurado um pavilhão de menores, chegando ao número de 3.520 crianças em 1957. Entre 1957 e 1958, o número de pacientes passou de 7.099 para 11.009; e, neste último ano, atingiu a marca de 14.000 internados. Em 1981, o complexo contava com 4.200 pacientes entre o Juquery e o Manicômio Judiciário, instalados na mesma área[3].

    Sobre as “terapias” utilizadas no hospital,

    Além da Malarioterapia, outras terapias foram aplicadas, como as injeções de substâncias químicas como o Protinjetól, o Sulfurpiretógeno, o “Dmelcos”, injeções de leite, cálcio, etc. Foi a terapia biológica mais utilizada no Juquery, mas foi perdendo força com o uso das demais terapias biológicas e finalmente com o advento dos psicofármacos e dos Antibióticos. (...) No final da década de 30, o choque cardiazólico foi introduzido. Este inaugurou as “terapias convulsivantes” que pretendiam curar casos de Esquizofrenia e de diversas psicoses. Inicialmente essa forma terapêutica era ministrada através de injeções de Cânfora e, por provocar uma crise convulsiva mais forte, foi substituída pela injeção de Cardiazol[4].

    Nas festividades (?) dos cem anos do hospital (final dos anos 90), o perfil dos internos do Juquery não era muito diferente do da inauguração:

    Dos 1.670 pacientes, apenas 25% eram “doentes mentais”. Internados há muitas décadas os pacientes eram ociosos, deslocando-se apenas para comer, dormir e, esporadicamente, tomar banho de sol. As queixas de má alimentação e falta de higiene ainda eram constantes. Estes cem anos ferem, envergonham e criam dívida com a história da humanidade. Eles têm a marca e a identidade do sofrimento humano.”[5]

    Ressaltamos que no início dos anos 2000 (antes da promulgação da Lei Antimanicomial), o Brasil detinha o título de país com o maior parque manicomial do mundo[6], com quase 100 mil pacientes confinados. Nesse período, o Juquery somava um histórico de 120 mil pacientes e só num período de 10 anos – entre as décadas de 70 e 80 - chegou a abrigar entre 16 e 20 mil pacientes.

    Enquanto o Brasil “comemorava” os 100 anos (de torturas e mortes) do funcionamento do Juquery, a Declaração Universal dos Direitos Humanos fazia 50 anos. No ato em que se festejava que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”; que “todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”; e que “ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”, contraditoriamente, muitos aplaudiam a perpetuação do genocídio e desejavam, certamente, votos de muitos anos de vigência da barbárie manicomial.

    Em 2005, houve um incêndio que atingiu o setor administrativo do hospital, a biblioteca, e destruiu praticamente todos os registros de internação. Afirmam ex-funcionários que nesses livros constavam uma média de 33.977 óbitos. No meio destes, estavam dois mil menores, dentre eles: adolescentes, crianças e natimortos[7]. O incêndio impediu uma série de investigações e comprovações documentais do genocídio que ali ocorreu.

    Atualmente, o hospital vive um processo de desativação que já dura uma década. Vários já foram transferidos para residenciais terapêuticos e instituições no interior com melhores condições de acolhimento, mas ainda não há uma política eficiente que atenda as diretrizes da Reforma Antimanicomial (Lei 10.216/01). Os que continuam lá internados são pessoas cronificadas que estão “há mais de 30 anos e não possuem condições para reinserção social, devido à ausência dos familiares"[8].

    No mundo dos cadáveres adiados, o que se pode depreender é que “a ‘morte’ de cada ‘malvivente’ surte efeitos farmacêuticos sobre os bem-viventes”[9]. E é importante que se diga o óbvio: o Estado diariamente psiquiatriza o perigo público, enjaula e joga a chave fora.

    Thayara Castelo Branco é Advogada. Mestre e Doutoranda em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com área de pesquisa em Violência, crime e Segurança Pública.
    Fotos por: Claudio Edinger REFERÊNCIAS [1] A mesma realidade exposta no primeiro texto da série que retratava a história do hospital psiquiátrico de Barbacena/MG. Ver: “O holocausto manicomial”. [2] SONIM, Navarro Daniel; FARIAS, Walter. O Capa-Branca – de funcionário a paciente de um dos maiores hospitais psiquiátricos do Brasil. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2014. “No livro O Capa-Branca, o jornalista Daniel Navarro Sonim reuniu, a partir de manuscritos e entrevistas, as experiências de vida de Walter Farias, ex-funcionário que se transformou em paciente, na década de 1970, do Complexo Psiquiátrico do Juquery. Aprovado no concurso público para atendente de enfermagem, Walter é designado para cuidar de pacientes acamados ou que perambulam, alheios à realidade, pelos corredores das clínicas do Hospital Psiquiátrico. A vida do protagonista de O Capa-Branca começa a tomar outro rumo depois da repentina transferência para o Manicômio Judiciário, onde ele convive com pacientes que cometeram crimes. A rotina no manicômio abala sua sanidade e o obriga a abandonar seu trabalho. Dali em diante, ele tem que se internar. Ao se tornar mais um paciente do Juquery, passa a sentir na pelé os horrores daquele lugar”. [3] CREMESP - Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. [4] TARELOW, Gustavo Querodia. Humores, choques e laboratórios: o juquery administrado por pacheco e silva (1923 - 1937). Disponível em: http://www.anpuhsp.org.br/sp/downloads/CD%20XX%20Encontro/PDF/Autores%20e%20Artigos/Gustavo%20Querodia%20Tarelow.pdf [5] Dados fornecidos por Isabel Cristina Lopes, psicóloga e fundadora da Associação SOS Saúde Mental. Na época ela concedeu uma entrevista revelando os bastidores do Juquery. Disponível em: (http://www.crpsp.org.br/PORTAL/comunicacao/jornal_crp/113/frames/fr_denuncia.aspx_) [6] Números inflacionados, sobretudo, durante a Ditadura Militar. Com as mudanças efetivadas na sociedade brasileira a partir do golpe militar de 1964, a assistência à saúde foi caracterizada por uma política de privatização maciça. No campo da assistência psiquiátrica, fomentou-se o surgimento das "clínicas de repouso", denominação dada aos hospitais psiquiátricos de então, além de métodos de busca e internamento de pessoas. Desse modo, passa a prosperar a recém-criada e rentável "indústria da loucura". Nos anos seguintes, o número de hospitais psiquiátricos e leitos contratados aumentou . Além disso, com o desenvolvimento da industrialização no Brasil após 1964 e com a intensificação do modelo tecnocrata e capitalista de produção, adotado pela Ditadura Militar, se favorece o crescimento de uma forte indústria farmacêutica, que fomenta a necessidade de um "mercado interno compensador. Assim, em 1964, tínhamos 74 manicômios e no final da ditadura o números subiram para 395. (COSTA, Augusto César de Farias. Direito, Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica. In: Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Departamento de Gestão da Educação na Saúde; ARANHA, Márcio Iorio (Org.). Direito sanitário e saúde pública. Coletânea de textos. v. I. Brasília: Ministério da Saúde, 2003). [7] Não se sabe ao certo a origem dessas crianças no hospital. Mas acredita-se, como ocorreu em Barbacena, que elas são frutos da violência sexual interna e dos casos de mulheres que já chegavam grávidas no local. Há inclusive um caso muito significativo: duas crianças de dez dias, registradas como filhos de internas, que morreram no mesmo dia e sem atestado de óbito.(http://www.crpsp.org.br/PORTAL/comunicacao/jornal_crp/113/frames/fr_denuncia.aspx_) [8] Informações da Secretaria de Saúde de São Paulo. [9] GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar – a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L &PM, Editores, 2010, p. 81.
    • Sobre o autorMentes inquietas pensam Direito.
    • Publicações6576
    • Seguidores937
    Detalhes da publicação
    • Tipo do documentoNotícia
    • Visualizações646
    De onde vêm as informações do Jusbrasil?
    Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/o-holocausto-manicomial-2-trechos-da-historia-velada-do-juquery/220848550

    Informações relacionadas

    Felippe Santanna, Estudante de Direito
    Artigoshá 5 anos

    Hospital Colônia na perspectiva dos Direitos Humanos

    Justificando
    Notíciashá 9 anos

    5 filmes para entender a luta antimanicomial

    0 Comentários

    Faça um comentário construtivo para esse documento.

    Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)