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30 de Maio de 2024
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    O impacto do Direito Público "comum" na garantia dos direitos humanos latino-americanos

    Publicado por Justificando
    há 8 anos

    A CIDH tem desenvolvido nos últimos anos um importante papel para implementar a cultura dos direitos humanos na América Latina. Seu protagonismo enquanto Corte regional de direitos humanos é reconhecido pela doutrina jurídica latino-americana.

    Entretanto, é preciso lembrar que do ponto de vista das democracias contemporâneas, o protagonismo dos juízes é criticável pela nova crítica do direito, em face do perigo da discricionariedade, uma fatalidade marcada pelo solipsismo como já reconhecera Kelsen e que transforma os tribunais e seus juízes naquilo que eles menos devem ser, ou seja, “curas” da sociedade.

    Todavia, no plano internacional, no domínio dos direitos humanos, as coisas passam de maneira diferente. À falta de um poder legislativo ou de um governo regional ou até mesmo mundial, ambos não só criticáveis, quanto indesejáveis por muitos, o papel que deve ser exercido por uma corte de direitos humanos, como a CIDH, é o de buscar o respeito, aplicação e atualização do direito convencional resultante da vontade dos Estados que ratificaram pactos de direitos humanos.

    Assim, embora já tenha sido acusada de ativista [1] - e talvez em algumas situações tenha mesmo sido - o que tem feito a CIDH é constitucionalizar a Convenção Americana de Direitos Humanos.

    Tal esforço hermenêutico dota a jurisprudência desse tribunal de um particularismo [2] que o distingue, em muitos domínios, de seus congêneres europeu e africano especialmente no que diz com a constitucionalização do direito convencional de direitos humanos, com a humanização do direito interamericano [3] e, inevitavelmente, com a transformação do direito público interno. Tal atuação possui uma relação direta com a democracia.

    Com efeito, o estímulo à cultura da convencionalidade na América Latina é atributo da CIDH. Assim, ela fomenta a “emulação”[4] dos juízes nacionais – aplicadores natos da Convenção americana de direitos do homem – que, por isso, agem com relativa independência em relação ao direito interno.

    Em razão disso, esses atores contribuem enormemente para a construção de modelos nacionais integrados [5] à ordem regional dos direitos humanos, prática essa que favorece a internacionalização progressiva entre os direitos internos e o direito interamericano e que escapa da dicotomia sempre redutora, entre ter de escolher entre o modelo nacional puro (recusa das normas de direitos internacional) e o do direito internacional puro (que levaria ao forum shopping).

    Para a consolidação desse modelo nacional integrado, a CIDH tem convidado os Estados latino-americanos a aderirem aos princípios e às regras da Convenção americana, pois os deveres convencionais de garantir direitos e liberdades impõem-se aos mesmos e lhes tributa a responsabilidade internacional por desrespeito à Convenção. Esse padrão de responsabilidade, que é atribuído igualmente em termos de quantidade e qualidade para todos os Estados da América Latina, tem derivação convencional e jurisprudencial. Ademais, a constitucionalização do direito convencional pela CIDH tem sido acompanhada pela fiscalização que ela realiza sobre os atos dos Estados em cumprimento ao seu dever de convencionalidade.

    Seguramente, a correspondência estatal às previsões da Convenção produz o surgimento senão de um novo direito público, inevitavelmente, mas a reconfiguração daquele que já existe. Nesse sentido, a relação de interdependência dos Estados produz como consequência o surgimento de um direito público “comum” na América Latina que, segundo Armin Von Bogdandy [6], se destina a atingir três objetivos, quais sejam: a) avançar no respeito aos direitos humanos, ao estado de direito e à democracia; b) desenvolver o estado aberto e; c) construir instituições internacionais eficazes e legítimas.

    Esses traços são perfeitamente perceptíveis na atuação da CIDH, cujo trabalho está orientado para auxiliar a consolidar um projeto de transformação democrática da América latina na medida em que sua jurisprudência, que a coloca na condição de um autor lawmaker [7], irradia efeitos de dupla face tanto no plano interno quanto no plano internacional.

    No plano interno, a Corte Interamericana fiscaliza as medidas como aquelas vinculadas à investigação dos crimes de desaparecimento forçado, mas alarga esse poder ao sugerir o recurso a experts para melhor apurar as graves violações aos direitos humanos, como ocorre no caso das autopsias para a identificação das vítimas de execuções extrajudiciais, a fim salvaguardar os direitos dos familiares. Veja-se que no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil [8] a Corte determinou ao Estado a organização dos bancos de dados genéticos para mais preciso reconhecimento das vítimas.

    Assim, ela tende a criminalizar o direito interamericano recorrendo a conceitos de direito penal internacional, quanto dando um tom penal muito particular dadas as especificidades dos casos de violações estatais aos direitos humanos ao tempo das ditaduras militares, como se pode notar nos termos da sentença do caso Goiburu e outros vs. Paraguai, relacionado à Operação Condor e em relação ao qual a CIDH invocou precedentes do TPI e seu próprio Estatuto para motivar o reconhecimento que fez da existência da prática de crimes contra a humanidade.

    Ainda no quadro dos graves crimes contra a humanidade praticados durante as ditaduras militares na América Latina, a CIDH construiu no marco de sua jurisprudência o dever jurídico de procurar a verdade. No mesmo caso Gomes Lund ela determinou ao Brasil a constituição da Comissão de Verdade [9], na esteira do que já havia decidido em inúmeros casos anteriores [10], por reconhecer que o direito à verdade se constitui em um direito autônomo, com base nos artigos 8º, 13 e 25º da Convenção americana. Seguindo essa determinação não só o governo federal brasileiro, mas várias instâncias estaduais e municipais criaram suas comissões da verdade, no que foram seguidos por várias universidades públicas.

    Em face de tal posição adotada pela Corte, os arquivamentos de inquéritos ou de processos penais pelo acatamento do argumento de prescrição pelos sistemas de justiça dos Estados não ecoaram na jurisprudência da CIDH, a qual tem reiteradamente determinado aos Estados latino-americanos que reabram ditos processos, porque tais práticas estatais impedem/dificultam o dever de sanção penal e violam o acesso à justiça às vítimas e seus familiares. Por isso, os argumentos fundados em leis de auto-anistia quanto de prescrição devem, segundo a Corte, ser afastados para que as investigações e os processos penais possam determinar os responsáveis e impor a eles a devida sanção.

    Esses são alguns exemplos de que a CIDH tem claro qual é o seu papel para a consolidação do direito convencional – e da democracia – na América Latina. O sistema latino-americano também provoca em nível estatal uma releitura dos direitos civis e políticos em termos de efetivação de igualdade estrutural [11]. De fato, em relação a esses domínios, ele encontra correspondência nos direitos nacionais em face do constitucionalismo social de recente criação na América Latina que provocou a expansão dos deveres estatais de proteção e garantia dos direitos fundamentais [12].

    Somada às previsões constitucionais que impõem funções prestacionais aos Estados – amiúde não cumpridas satisfatoriamente - e que os compelem a intensificar a regulamentação das atividades econômicas, embora a resistência das empresas, a jurisprudência da CIDH tem determinado, por exemplo, a proteção dos direitos culturais dos povos indígenas sobre seus territórios ancestrais e sobre os recursos naturais, tal como pode ser constatado no emblemático caso Pueblo Saramaka vs. Suriname de 2007 [13], em cuja decisão de interpretação da sentença a CIDH não deixou dúvida sobre sua competência para fiscalizar o cumprimento da decisão.

    E, ainda que por “ricochete” até o presente momento, a Corte, ao aplicar o Protocolo de San Salvador, tem reconhecido que os Estados, ao violarem muitas vezes o direito à vida, restam por violarem direitos sociais como o direito à saúde, à educação, entre outros. Assim, em razão do princípio pro personae, as dimensões dos direitos sociais devem ser interpretadas de forma mais favorável ao ser humano. Veja-se que no caso Artavia Murilo e outros vs. Costa Rica, na audiência para verificação do cumprimento da sentença, a Corte determinou à Costa Rica a apresentação de informação clara e atualizada sobre o cumprimento da medida de reparação que sentença da CIDH havia imposto determinando que o Estado a adoção de medidas legislativas internas para regularizar a prática da fertilização in vitro [14].

    No Brasil, como se sabe, inúmeras alterações legislativas e de políticas públicas no campo da saúde mental, em face das históricas péssimas condições dos hospitais psiquiátricos no País foram realizadas também em face dos efeitos da decisão do caso Ximenes Lopes vs. Brasil [15] do ano de 2006.

    Ludovic Hennebel [16] destaca que essa atribuição de fiscalização da CIDH em processos contenciosos a coloca em condição similar a de uma verdadeira corte constitucional, porque nenhuma lei interna ou ação estatal poderá estar em contradição com a Convenção americana de direitos humanos.

    Assim, o direito público interno é tocado diretamente por essa reconfiguração da soberania que de solitária passa a ser uma soberania “solidária”, em face do compromisso internacional em efetivar os direitos humanos. Essa transformação não pode mesmo causar estranheza, pois, no plano interno, há algum tempo a conhecida solidariedade contratual com origem no direito privado mudou de sentido quando passou não apenas para o campo dos direitos sociais no contexto dos ‘Estados providência”, mas também para o das ações da sociedade civil.

    De todo modo, recorrer à noção de “soberania solidária” conduz, de fato, ao reconhecimento de que o direito público interno tem sofrido uma significativa, irrenunciável e inevitável reconfiguração. Ela está radicalmente vinculada ao estado de interdependência entre Estados e outros atores globalizados que, em conjunto, são chamados a fazer frente a inúmeros problemas globais. Desse ponto de vista, o mundo não pode ser visto como um “pavimento de Estados soberanos” [17], desprovidos de compromissos internacionais.

    Assim, os particularismos da jurisprudência da CIDH a que se fez referência chamam a atenção para a possibilidade de conformação do denominado jus comune latino-americano que decorre, segundo Bogdandy [18], de um projeto em construção, que segue uma linha evolutiva e provoca a transformação do direito público em nosso continente. Tal transformação não implica evidentemente em simplesmente romper com o que foi construído, mas sim aproveitar o aquis da tradição jurídica para adequá-lo e atualizá-lo na perspectiva dos desafios contemporâneos.

    Jânia Maria Lopes Saldanha é Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice, em Paris. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada.
    REFERÊNCIAS
    [1] Ver nossa crítica a essa posição em: STRECK, Lenio. SALDANHA, Jânia. Ativismo e garantismo na Corte Interamericana de direitos humanos. In: DIDIER, Fredie, NALINI, José Renato et all. Ativismo judicial e garantismo processual. Salvador: JusPodium, 2013.
    [2] A expressão é de HENNEBEL, Ludovic. Le cour interamericaine de droits de l’homme: entre particularisme et universalisme. In: HENNEBEL, Ludovic. TIGROUDJA, Hélène. Le particularisme interamericainde des droits de l’homme. Paris: Pedone, 2009, p. 76-119. [3] Essas duas dimensões são destacadas por HENNEBEL, L. Le particularisme interamericainde des droits de l’homme., op. cit. [4] DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit (III). La refondation des pouvoirs. Paris: Seuil, 2007. [5] Op. cit. [6] BOGDANDY, Armin Von. Ius constitutionale commune latinoamericanum. Uma aclaración conceptual. In: BOGDANDY, Armin Von. FIX FIERRO, Hector. ANTONIAZZI, Mariela Morales (Coordenadores). Construcción del ius constitutionale commune em America Latina. Rasgos, potencialidades y desafios. México: UNAM/MAXPLANK INSTITUT, 2014, p. 8. [7] BOGDANDY, Id., p. 12. [8] Caso “Araguaia”. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/index.php/es/casos-contenciosos, item 159. [9] Id., item 294. [10] Veja-se caso Blanco Romero e outros vs. Venezuela, de . Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/index.php/es/casos-contenciosos, item 65. [11] ABRAMOVICH, Victor. Poderes regulatórios estatais no pluralismo jurídico no Brasil. Disponível em : http://sur.conectas.org/edicao-21/poderes-regulatorios-estatais-no-pluralismo-jurídico-global/. [12] SALDANHA, Jânia. BRUM, Márcio. A margem nacional de apreciação e sua (in) aplicação pela Corte Interamericana de direitos humanos em matéria de anistia: uma figura hermenêutica em favor do pluralismo ordenado? In: Anuário mexicano de direito internacional, V. XV, 2015. Disponível em: http://biblio.juridicas.unam.mx/revista/pdf/DerechoInternacional/15/dtr/dtr6.pdf [13] Nesse caso a CIDH determinou a delimitação e demarcação das terras, o reconhecimento de direitos coletivos do povo Saramaka, entre outros. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/index.php/es/casos-contenciosos [14] Disponível em: https://vimeo.com/album/3554165 [15] Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/cf/Jurisprudencia2/busqueda_casos_contenciosos.cfm?lang=es [16] HENNEBEL, Ludovic. Le cour interamericaine de droits de l’homme: entre particularisme et universalisme. In: HENNEBEL, Ludovic. TIGROUDJA, Hélène. Le particularisme interamericainde des droits de l’homme, op. cit. p. 95. [17] SUPIOT, Alain. La solidarité. Paris: Odile Jacob, 2015, p. 32. [18] Disponível em: http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/8/3655/4.pdf., p. 2.
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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/o-impacto-do-direito-publico-comum-na-garantia-dos-direitos-humanos-latino-americanos/295700778

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