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17 de Junho de 2024
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    Os fantasmas autoritários do Direito

    Publicado por Justificando
    há 8 anos

    Quanto tempo dura o que, na alternância de regimes político-jurídicos, se pode chamar de período de transição? As décadas que se seguiram a partir da redemocratização do Brasil demonstraram de que modo a consciência político-jurídica brasileira se comportou, bem como revelaram o trato do Brasil e dos brasileiros com a democracia – seja como exercício, como modelo ou como ideologia.

    Com Márcia Tiburi [1], pode-se afirmar que “nada do que possamos chamar de conhecimento pode ser concebido fora de seu registro político”. Mais do que um regime político do Estado ou um valor social, a democracia funda-se a partir de dimensões de ordem subjetiva, em que estão ocupados, entre outros, os saberes do psiquismo social e individual, além das ramificações dos estudos de neurociência e da ciência comportamental.

    O espírito democrático idealizado em predeterminações normativas é construído a partir da subjetividade profunda que constitui os sujeitos. Warat costumava chamar as subjetividades de territórios selvagens. E por falar em Warat, é preciso lembrar que ele, sozinho – de modo especial no sul do Brasil, mas também em Brasília, Salvador e Goiás – promoveu a viragem crítica do Direito no Brasil.

    Penso não ser desprezível, mesmo cientificamente, o fato de que, no Brasil, a geração atual de juristas que fazem crítica ao Direito, especialmente quanto à sua produção jurisprudencial, é caudatária dos modos de percepção de mestres que viveram o “olho do furacão” entre o regime militar e a democracia.

    A experiência pela qual passou essa atual geração de juristas (ou seja, de ter sido a plateia que experimentou o último regime totalitário instituído no Brasil), fatalmente forjou a subjetividade de quem, hoje, tem interesse e dever de fazer uma teoria da decisão judicial à brasileira.

    Em que pese haver farta bibliografia sobre as questões ligadas à constituição do que se pode chamar de subjetividade autoritária. Sua principal marca é a incapacidade de abertura ao outro, fechada por motivos cognitivos e culturais, impedindo, assim, o exercício por excelência da democracia – o diálogo. É assim que se criam o que, tomando emprestada a expressão de Tiburi, pode-se chamar de sacerdotes autoritários [2] do Direito. Eles estão na jurisdição e na academia.

    Observa-se uma incoerência fundamental no Direito e nas teorias da decisão judicial à brasileira: a falta de percepção da identidade que há entre o autoritarismo jurisdicional e o da crítica queixosa. Isso porque, sutil ou escancaradamente, ambas denunciam, ao mesmo tempo, as posturas autoritárias da coirmã. Como espelho maldito, refletem, uma na outra, as próprias fraquezas de um autoritarismo que, sob todos os aspectos, torna-se cada vez mais insustentável diante da expectativa de uma democracia forte e estável.

    E, depois da ditatura, a estabilidade se tornou o leitmotiv republicano. Por isso o afã pelas garantias constitucionais, por sumular e homogeneizar decisões em casos análogos (ou nem tão análogos assim) e pela tentativa de criar limites ao poder de intervenção do Estado na vida privada. E é por estabilidade que a jurisprudência grita, assim como é por estabilidade que coram os críticos, cada qual com seus jeitos e jeitinhos demasiado brasileiros.

    O desejo de fornecer fundamentos seguros àquilo que se enuncia, seja na doutrina ou na jurisdição é, no fundo, desejo de impor limites e indicar caminhos dos quais não se possa desviar, plasmando, na consciência do público ao qual se direciona a fala, representações e imagens que não pode (riam) ser refutadas sob pena de heresia teórica. Esse desejo é produto de velhas superstições e inseguranças humanas.

    O caminho que leva o juiz a adequar casos práticos aos limites da normatividade é que faz toda a diferença. Sobre como devem ser as decisões ou as decisões em cada caso, há teorias de sobra e para todos os gostos.

    A necessidade pragmática de analisar e esclarecer os resultados do pensamento em sua origem passada [3], bem como a necessidade de encontrar o triunfo narrativo dos fatos, torna perigoso o caminho entre o inconsciente, a subjetividade, a pré-compreensão, o juízo consciente e a materialização do julgamento. Inevitável que nesse “processo” haja falha, ou uma série delas. Claro que essas etapas são apenas pedagógicas. Servem para demonstrar que se trata de um procedimento contínuo, caótico e excessivamente humano. Apontar uma falha, o que não se faz sem que, inevitavelmente, fatos sejam julgados, é um procedimento mental que atende necessariamente a um ou mais paradigmas de determinação. E os perigos nesse itinerário existem pela certeza de que não são tais paradigmas que, por si só, garantem a ausência de falhas.

    Se numa religião como o cristianismo o respeito aos mandamentos é uma prova de virtude do fiel, falhar significa deixar de observar seus comandos. Em última análise, desrespeitar um mandamento – como cobiçar a mulher do próximo, por exemplo – significa falhar com Deus e suas promessas de vida boa (não só em vida, mas também além dela...).

    É esse ideal de vida boa que as constituições contemporâneas, imitando a filosofia grega, desenharam nas nuvens da normatividade. A hipótese de satisfação plena das normas é o retorno ao paraíso edênico. E Deus com sua cartilha é, portanto, um paradigma de determinação. Daí porque as Escrituras condicionam o julgamento que padres fazem a partir da confissão dos pecadores cristãos. Ainda que cobiçar a mulher do próximo seja um preceito fundamental e pétreo para a normativa cristã, múltiplos espaços haverão para que pré-juízos e juízos de mil matizes e argumentos múltiplos sejam enunciados.

    O Direito brasileiro pós-democrático, fortemente marcado pelo protagonismo do Judiciário, em meio a um ambiente social líquido, contingente e tribal, não pode esperar certezas ou segurança jurídica pelo mero advento da Constituição. Ainda que os diversos caminhos hermenêuticos salvacionistas vendam a Terra Prometida das certezas constitucionais e da ausência completa de falhas de todos os julgadores, a certeza das respostas adequadas à Constituição – como se se pudesse ter uma interpretação unívoca dela – são meras pílulas de conforto teórico. E a controvérsia fática, como bem lembra José Calvo [4], uma das premissas esquecidas na tentativa de manter intocadas as respostas constitucionais. Aliás, não é desprezível o fato de que a jurisdição brasileira, em um número gigantesco de casos, permita que mais de 15 juízes possam julgar um mesmo processo – do início até as últimas fases recursais e executórias.

    Logo, pensar a decisão judicial brasileira a partir da perspectiva contingencial da linguagem de que fala o filósofo Richard Rorty, significa admitir a humanidade de todo tipo de falha, lapsos, incompreensões silentes, decisões reativas, etc.

    Conforme Clarissa Tassinari, o ativismo dos juízes é marcado pelo uso de fundamentos não-jurídicos (religiosos, morais, políticos, etc.) na decisão [5]. Ainda que sejam saudáveis para a democracia o estabelecimento de mecanismos de controle do ativismo judicial, qualquer objetivo de erradicação, próprio das teorias salvacionistas da decisão judicial, mostra-se não somente insuficiente como também ingênuo.

    Essa incoerência entre a dimensão subjetiva autoritária, suas inevitáveis manifestações comportamentais/teóricas e o regime democrático institucionalizado, é rescaldo abrasivo de algo que se pode chamar aqui de modelo-de-pensamento totalitário.

    É conhecido o autoritarismo de quem, no Direito, detém o poder da última palavra, da palavra de ordem. Há um sem número de obras, textos e pesquisas que criticam os modos-de-produção autoritária no Direito. Desde os discursos que pretendem por em xeque a legitimidade da legislatura feita pelo Judiciário por intermédio das Súmulas e Precedentes, passando pelo ativismo judicial das decisões, até chegar às posturas arrogantes de juízes e desembargadores em salas de audiência e Tribunais país afora.

    Mesmo as escolas críticas do direito no Brasil, muitas delas que encabeçam verdadeiras cruzadas contra todos os tipos de autoritarismos no Judiciário, não escapam do cancro da subjetividade autoritária. E, nesse sentido, o contrassenso é entre o discurso de ode à democracia constitucional e o autoritarismo teórico que (quase sempre) se prega.

    Tais posturas chocam-se, do ponto de vista político, com o regime democrático e, do ponto de vista jurídico-constitucional, com o viés solidarista da Constituição. Afinal, como a liberdade e a solidariedade prescritas na Constituição podem vir desacompanhadas de um regime de tolerância? Que permita, enfim, a inserção da diferença através da escuta atenta da fala alheia?

    Se, institucionalmente, a única intolerância da democracia é não aceitar a volta do totalitarismo, subjetivamente, a intolerância de um colóquio, como manifestação de subjetividades, do mais pomposo ao mais rueiro, é não aceitar que ideias calem.

    As faculdades de Direito e especialmente os programas de mestrado e doutorado de direito no Brasil são formados, em grande maioria, por guetos de autoritarismo teórico. Se Warat teve que criticar o autoritarismo do Estado, a nós, juristas malditos, resta hoje denunciar todas as formas de autoritarismo, por mais aristocrático que sejam ou pretendam ser. Qual o papel da jurisdição e da doutrina dentro de um regime democrático senão o de incorporar dissensos?

    O autoritarismo, tanto de viés subjetivo quanto institucional, é fundado em uma concepção rígida de “verdade”, que atravessa o Direito ao longo da história ocidental e chega até nós com linguagens escamoteadas: “Decisão justa”, “Resposta correta” ou “Interpretação legítima” são as novas roupas que vestem a senhora idosa e caquética que é a “verdade” no Direito.

    Claro que a ansiedade em assegurar direitos e conter as trevas das arbitrariedades depois dos massacres físicos, morais e jurídicos da ditatura, fizeram das promessas constitucionais uma espécie de Éden político-jurídico no Brasil pós-88.

    Ainda que de teor democrático, a necessidade intrínseca de assegurar na Carta Política direitos considerados fundamentais não veio acompanhada de um manual que fosse capaz de eliminar as subjetividades autoritárias que, inevitavelmente, deixaram rastro não apenas entre os juristas que enfrentaram o “olho do furacão”, mas também nos que foram, por estes, influenciados.

    Daí porque a questão que inaugura esse texto (Quanto tempo dura um período de transição?), é importante na medida em que problematiza, primeiro na dimensão política, tanto o retardo da efetivação de obviedades constitucionais, quanto, juridicamente, a teimosa mantença de redutos autoritários, da jurisdição à academia, em meio a um regime em que deveria viger, com garbo e majestade, à mais fina tolerância. Na minha nem tão humilde mas democrática opinião, é preciso chamar os caça-fantasmas.

    Paulo Ferrareze Filho é Doutorando em Direito (UFSC). Mestre em Direito (UNISINOS). Professor universitário. Livre pesquisador. Ainda sente-se estagiário em tudo.
    REFERÊNCIAS 1 TIBURI, Márcia. Como conversar com um fascista. 5a ed. Rio de Janeiro: Record, 2016, p. 41. 2 TIBURI, Márcia. Como conversar com um fascista…, p. 27 e 48. 3 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução Kelly Alflen da Silva – Porto Alegre: Sergio Fabris Ed., 2008, p. 110. 4 Consultar CALVO, José. Derecho y Literatura. Intersecciones instrumental, esctructural e institucional. In CALVO, José (Dir.). Implicación Derecho Literatura – Contribuciones a una Teoría literaria del Derecho. Granada: Editorial Comares, 2008, CALVO, José. Hechos como argumentos: teoria narrativista e argumentación jurídica. In: Tópica, Retórica y Dialéctica en la jurisprudência – Estudios en homenaje a Fransisco Puy. Edición a cargo de Milagros Otero Parga. Universidade de Santigo de Compostela, 2011; CALVO, José. La verdad de la verdad judicial. Construcción y regimen narrativo. In. Revista Internazionale di Filosofia del Diritto. IV Serie – LXXVI – Fasc. 1. Milano: Giuffrè Editore, 1999, p. 53-54; CALVO, José. O Direito Curvo. Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2013. 5 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 29-32.
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