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17 de Junho de 2024
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    PALESTRA - Imaginário jurídico e realidade social

    há 11 anos

    Francisco de Assis Barbosa, biógrafo de Lima Barreto, dizia que, no tempo em que o escritor produziu sua obra, a vida literária do Rio de Janeiro se dividia entre a Academia Brasileira de Letras, reduto dos escritores tradicionais, e a Confeitaria Colombo, que reunia os que questionavam os cânones literários então dominantes.

    No caso do direito, a academia, enquanto instituição, abriga e difunde a ideologia jurídica predominante - embora ali existam, mas como corpos estranhos, juristas críticos - ao passo que eu, incorporando o espírito da confeitaria (e a exposição que farei a seguir o demonstrará) me identifico com a produção de um conhecimento questionador dos cânones dessa ideologia.

    A escolha do tema desta palestra me foi suscitada pela entrevista de um crítico literário e por uma citação feita por um jurista adepto, na época, da teoria crítica do direito.

    O crítico literárioLUIZ COSTA LIMA, em entrevista a O GLOBO de 9/11/2013, contou queseu filho Henrique, de 6 anos, lhe perguntouque éficção. Costa Lima pediu-lhe tempo para responder e retirou-se; quando voltou, o filho estava desenhando um sol com seus raios. Antes que o pai começasse a lhe explicar o conceito de ficção, o menino disse: "Ah! Isso que estou fazendo é ficção! Você viu que é um sol, mas não é um sol porque não dói no olho."

    Eros Roberto Grau (Ensaio e discurso sobre ainterpretação/aplicação do direito) menciona as seguintes afirmações deIhering:"os conceitos jurídicos são incompatíveis com a vida, não suportam o mundo real; a fé inamovível no império dos conceitos jurídicos e em princípios abstratos é o vínculo comum que une todos os que habitam o céu dos conceitos jurídicos; o jurista opera com seus conceitos como omatemático com suas magnitudes, de modo que, se o resultado é correto desde o ponto de vista lógico, o que acontece depois já não é problema seu - fiat iustitia, pereatmundus!; os conceitos são verdades absolutas, sempre foram e o serão pelos séculos dos séculos."

    O filho do critico literário não precisou de nenhumadefinição conceitual para entender o que é ficção: bastou-lhe desenhar um sol para perceber que o sol desenhado era o símbolo do sol verdadeiro, fruto do seu imaginário,portanto uma ficção.

    No que se refere ao direito, não é tão simples perceber o imaginário da ordem jurídica porque esta "dói no olho", isto é,aparenta ser a realidade. E a percepção da realidade só é possível, no caso, mediante a produção científica do conhecimento.

    O direito é a peça mais importante das estruturas simbólicas da sociedade instituída pela Revolução Francesa, com a qual as relações econômicas, sociais e políticas em geral passaram a ser criadas pelo Estado, de onde emanam normas jurídicas abstratas, de validade geral, cujo fundamento é o direito. Apresenta-se a ordem jurídica, e por extensão o Estado, como fruto do consenso, o que nega a realidade, que é o dissenso: a sociedade traz em si o antagonismo de interesses opostos, pulveriza o organismo social em individualidades egoístas que só se "conciliam" pela força organizada do Estado ou, o que é mais comum, pela mediação estatal entre dominação e liberdade, transformando os antagonismos em conflitos a serem resolvidos na Justiça por decisão que se deve acatar como coisa julgada. Fazendo dos seres humanos indivíduos voltados para si mesmos, a sociedade capitalista precisa que exista uma vontade livre presumida, o Estado; por isso esses indivíduos se acham ligados entre si pela ordem jurídica. Forma-se assim uma cadeia de relações jurídicas, a forma determinando o conteúdo.

    Somente o exame da totalidade dos fatos a fim de serem compreendidas suas determinações específicas permite o conhecimento da realidade objetiva. No caso da realidade social, essa totalidade abrange não só o modo pelo qual os seres humanos atuam sobre a natureza para a produção dos bens, sua transformação em mercadorias que se trocam, mas também teorias jurídicas, políticas e filosóficas, bem como concepções religiosas e a tradição mística, todas em interação. Conforme observa KarelKosikem Dialética do concreto, "a práxis utilitária imediata e o senso comum a ela correspondente colocam o homem em condições de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e manejá-las, mas não proporcionam a compreensão das coisas e da realidade". Tal acontece porque a ideologia dominante condiciona o senso comum.

    E o faz ao conceber o direito como produto da ideia, da razão, e não um produto social, histórico, e ao imaginar a existência de um "fenômeno jurídico" que atravessaria os tempos e as sociedades, sempre igual a si mesmo, o que, conforme demonstra Michel Miailleem Uma introdução crítica ao direito, não corresponde à realidade.(O Direito do Trabalho, por exemplo, foi criado em determinada fase do desenvolvimento de uma sociedade dada, para atender às circunstâncias e necessidades de uma determinada classe numa certa época.)

    De acordo com o falecido professor Luís Alberto Warat (O direito e sua linguagem) é impossível falar-se do direito "sem a referência à instituição imaginária da sociedade". Segundo Warat, "grande parte das significações imaginárias instituídas pode ser considerada como mediações jurídicas"; e acrescenta: "os encarregados de aplicar as leis, os produtores das teorias jurídicas, os professores das escolas de Direito (os construtores das significações jurídicas) formam uma realidade imaginária (colocada na perspectiva do senso comum) que fazem prevalecer como naturalismo. Um verdadeiro mundo de faz-de-conta instituído como realidade natural do Direito. Uma realidade imaginária que poderá ser considerada mítica, mágica (no sentido freudiano) capturadora, extravagante, mas que resulta imprescindível para a própriaconfiguração do Direito na sociedade." Por isso costumo dizer que o mundo jurídico é o mundo da fantasmagoria, espécie de castelo mal-assombrado, regido pela lógica formal, em cujo interior vagueiam, como abantesmas, abstrações do tipo ficções, presunções, princípios, sujeito de direito e autonomia da vontade.

    A mais importante das mediações, das significações imaginárias sobre a função do direito a que alude Warat é o fetichismo da norma jurídica, pelo qual, em lugar de a ordem jurídica ter como pressupostos as relações sociais de produção, se atribui a ela o poder de determinar a realidade material. A palavra fetiche, originária do Francês,designa um objeto ao qual se atribui poder sobrenatural ou mágico, sendo aparentada de feitiço. O fetichismo está na raiz da consciência mistificada, que para GiorgyLuckás, segundo CorneliusCastoriadis (A instituição imagináriada sociedade) é a condição do funcionamento adequado da sociedade capitalista, ou seja: num imaginário específico reside uma das condições de funcionalidade.

    Embora a ideologia jurídica faça as relações reais parecerem o que não são, ideologia não é simplesmente representação. Seu objetivo principal não é mascarar, iludir, e sim legitimar a relação de força subjacente à divisão da sociedade a fim de que a economia e as demais relações sociais funcionem. Em consequência, o que se conhece por ciência jurídica é uma imagem do direito, baseia-se numa abstração: a representação ideológica da realidade. Como observa Miaille,os institutos jurídicos se "explicam" por noções ideais; a lógica jurídica, necessariamente formal, elabora, por um jogo de abstrações, conceitos que eliminam a realidade concreta, transformando o real em "real jurídico".Assim é que nos chamados "meios forenses" se diz: "o que nãoestá nos autos não está no mundo", o que significa haver uma verdade processual e uma verdade real; esta só é admitida se resultar formalmente reconhecidapelo julgador segundo sua interpretação, pois os juízes têm a função de produzir direito formal, expressão que designa um modo de aplicação do direito (Eros Grau,O direito posto e o direito pressuposto).

    O tema que estamos abordando suscita a questão do simbólico, que pressupõe o imaginário.

    No acertado dizer de Castoriadis, as instituições "só podem existir no simbólico", embora a ele não se reduzam. "Uma organização dada da economia, um sistema de direito, um poder instituído, uma religião existem socialmente como sistemas simbólicos sancionados." Esses sistemas consistem em ligar a símbolos determinados significados "e fazê-los valer como tais" e Castoriadisexemplifica: um título de propriedade é símbolo do direito de o proprietário dispor do objeto de sua propriedade; folha de pagamento simboliza o direito de o assalariado exigir certa quantidade de dinheiro e as notas e moedas que o integram são símbolos do direito de seu possuidor comprar, sendo cada ato de compra também um símbolo; o trabalho é simbólico quando, traduzido em horas laboradas, entre na confecção da folha de pagamento; as sentenças dos tribunais são simbólicas (e o são porque a transfiguração das lutas reais em "litígios" e de seus personagens em "partes" faz simbólica a luta quando levada ao Judiciário). Vivemos, assim, numa verdadeira rede simbólica. Na concepção do autor, o fato de o simbólico pressupor o imaginário não significa "que o simbólico seja, globalmente, apenas o imaginário efetivo em seu conteúdo", pois "comporta, quase sempre, um componente 'racional-real': o que representa o real ou o que é indispensável para opensar e o agir".O desenho do filho do crítico literário,um simbólico, tinha um racional real, a estrela maior de um sistema chamado, por isso mesmo, de solar; os ramos de café na bandeira brasileira simbolizama predominância, na época, da economia agrária em nosso país, sendo esse o componente racionalreal de tais símbolos.

    Nessa linha, Pierre Bourdieu (O poder simbólico) vê as classes e frações de classes em que a sociedade capitalista se divide "envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem a definição do mundo conforme aos seus interesses".Simbólica porque se trava mediante formas transfiguradas e legitimadas das relações de força que levam a ignorar, deixar de reconhecer, porque dissimulada e transfigurada, "a violência que elas encerram objetivamente". Os sistemas simbólicos têm função relevante na legitimação da relação de poder e para o exercício dessa função os conceitos, a linguagem e os rituais são imprescindíveis.Dessa maneira, o imaginário jurídico desempenha papel não desprezível nas relações sociais, sua finalidade maior é ocultar as relações reais, ocultação que serve à legitimação do poder.

    Michel Foucault, analisando a questão do conhecimento (A verdade e as formas jurídicas) destaca que este visa a trazer a lume "o que na história de nossa cultura permaneceu até agora escondido, mais oculto, mais profundamente investido: as relaçõesde poder". Sua ocultação dá-se por meio do discurso do direito.

    Óscar Correas (Crítica da ideologia jurídica) define o direito como um discurso "que tem como referenteas relações sociais" e afirma que a ideologia do discurso do direito as desfigura, "mascarando-as com o significado das palavras que se utilizam cotidianamente para fazer referência a essas relações". Bourdieu, porém, esclarece que a retórica da autonomia, da neutralidade e da universalidade da norma jurídica não é "simples máscara ideológica" e sim "a própria expressão de todo o funcionamento do campo jurídico". E acrescenta: "Numa sociedade diferenciada, o efeito da universalização é um dos mecanismos, e sem dúvida um dos mais poderosos, por meio dos quais se exerce a dominação simbólica ou, se se prefere, a imposição da legitimidade de uma ordem social". Exemplo da universalização como meio de legitimação da ordem capitalista é dado pela norma constitucional que declara serem todos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, igualdade que - bem o sabemos - não se verifica na realidade social.

    Para Miaille, "o sistema jurídico tem vocação para dominar o conjunto da organização social", sendo esse o sentido das expressões ordem jurídica e ordenamento jurídico.Alysson Leandro Mascaro (Crítica da legalidadee do direito brasileiro) caracteriza o ordenamento jurídico capitalista como a plenitude da legalidade, consagradora da igualdade formal, entendida pelo autor como "o espelho de um mundo feito um grande mercado, no qual todos se igualam na condição de compradores e vendedores, no qual até a exploração deixa de ser um mando direto de um senhor sobre o escravo e passa a ser a igual vontade de patrão e proletário", ou seja: o fetichismo transfigura a relação capital-trabalho, emprestando-lhe a forma jurídica do contrato. Assim éporque, segundoMárcio Bilharinho Naves, (Marxismo e direito. Um estudo sobre Pachukanis) "a força de trabalho só pode ser oferecida no mercado, e assim penetrar na esfera da circulação, transfigurada em elemento jurídico, isto é, sob a forma do direito, por meio de categorias jurídicas - sujeito de direito, contrato, etc. - enfim, sob a forma de uma subjetividadejurídica".

    Atendendo a essa finalidade, a ordem jurídica trabalhista assegura a exploração indireta da força de trabalho ao configurar a relação de poder do capital sobre o trabalho simplesmente como uma relação administrativa de natureza contratual, necessária à atividade das empresas,transmudando o poder do capital com o eufemismode"poder de comando do empregador", ao qual o trabalhador está subordinado apenas juridicamente. As sociedades antiga e feudal, porque estribadas na coação direta (escravidão e servidão) não necessitavam de uma formação jurídica particular; a forma jurídica é uma especificidade da sociedade mercantil capitalista porque nela a troca de mercadorias é tratada como relação de direito, e a exploração do trabalho se realiza por coação indireta, pressupõe um acordo de vontades livres e iguais entre o comprador e o vendedor da força de trabalho convertida em mercadoria.

    A apropriação do valor do produto do trabalho social pela classe detentora dos meios de produção é encoberta pela ficção jurídica da liberdade e da igualdade. Todos devem ser declarados abstratamente sujeitos de direito, estabelecendo-se a contradição entre a abstração e a universalidade da norma jurídica e a realidade dos seres humanosconcretamente considerados.A forma jurídica é indispensável a que se constituam, se produzam e se reproduzam as relações econômicas e sociais em geral. A sociedade capitalista é, pois, essencialmente jurídica.

    Eis aí a substância dessa ordem legitimada pelo direito como produto do imaginário necessário ao encobrimento de uma relação de poder pela sua transfiguração em relação consensual. O direito constitui o elemento dominador da superestrutura da sociedade capitalista, cujas relações, para que possam existir e funcionar, assumem o caráter de normas jurídicas, as quais adquirem vida própria e passam a influenciar a realidade como se a determinassem.

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