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20 de Junho de 2024
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    Porque precisamos de Desireè livre

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    Desireè Mendes Pinto usou crack por 16 anos. Foi presa em 2012 na Operação Sufoco da Polícia Militar na cracolândia, em São Paulo. No dia da prisão, descobriu que estava grávida e que havia a possibilidade de ter contraído o vírus do HIV. “Eu não via perspectiva de vida”, diz sobre esse momento. Decidiu usar o dinheiro recebido da sogra à época para comprar toda a quantidade de droga possível e encerrar de uma vez sua jornada de sofrimento. Comprou 30 gramas de crack para consumo próprio.

    Foi condenada a 6 anos de prisão em regime fechado. A juíza do caso entendeu que uma condenação criminal do ano 2000 configurava maus antecedentes e utilizou isso como fundamento para aumentar sua pena em ⅙ e para não lhe garantir a aplicação do tráfico privilegiado, hipótese em que a pena seria diminuída em razão da primariedade, antecedentes favoráveis e não participação em “organização criminosa”. No entanto, a legislação brasileira prevê que após 5 anos da extinção da pena, a pessoa volta a ser primária, entendimento que deveria se estender também aos maus antecedentes. Afinal, como pode uma pessoa ficar condenada por um fato do passado eternamente? A ideia por detrás desse instituto é que passados 5 anos e a pessoa não se envolveu em nenhum outro processo criminal significa que sua vida se transformou e não há mais interesse do Poder Judiciário em controlá-la.

    Após passar 6 meses presa preventivamente, conseguiu o direito de aguardar o julgamento de seus recursos em liberdade provisória, com base na sua gestação de risco. De lá para cá, passaram-se 5 anos. Seu filho nasceu, cresceu e hoje tem Desireè como sua melhor companhia. Ela retomou os estudos, fez cursos de microempreendedorismo e tornou-se uma profissional admirada e respeitada. Desireè é a prova viva de que somente a liberdade viabiliza a tão aclamada ressocialização.

    Mas o descompasso entre os marcos temporais do Judiciário e a trajetória da vida de Desireè se acentuou recentemente. Desde a semana passada, o recurso impetrado pela Defensoria Pública no STJ foi negado e o Ministério Público Federal requereu a expedição de mandado de prisão contra Desireè. Essa folha de papel, elaborada por uma instituição que desconsiderou em absoluto toda uma trajetória de superação de 5 anos e que em nada considerou o presente dessa mulher para decidir sobre seu futuro, pode mudar os rumos de uma trajetória de superação.

    Foi graças à liberdade, concedida em caráter de exceção, em meio a tantas mulheres que ficaram presas e se separaram de seus filhos, que Desireè reconstruiu os rumos de sua história e passou a ter condições de sonhar com outro futuro. Futuro que hoje é presente, que se materializa no exercício da maternidade, na realização profissional, nos planos de casamento. Não bastasse tudo isso, ela ainda desenvolve ações na cracolândia de São Paulo, onde é vista por muitos como uma fonte de esperança, um exemplo de força e superação para todos ao seu redor. E é exatamente por isso que sua liberdade precisa ser mantida. Desireè representa uma possibilidade de mudança de paradigma da política de encarceramento em massa, que concretiza a liberdade como regra e que tem sido exitosa nesse sentido.

    Em entrevistas concedidas por Desireè, ela manifestou a sensação de continuar presa, mesmo estando em liberdade. Isso porque apesar de construir toda uma vida repleta de esperança, de mudanças e de representar uma outra perspectiva para as pessoas na Cracolândia, ela sempre soube que poderia chegar o momento de voltar para a prisão. O fato é que por mais que se esforce, seus supostos maus antecedentes e essa condenação em aberto podem afetar todo o empenho nessa jornada de reconstrução de sua história.

    Mais do que uma disputa de narrativas, a luta pela manutenção da liberdade de Desireè é a luta pela responsabilização do Poder Judiciário brasileiro frente a inúmeras violações de direitos que silenciosamente são inscritas em decisões criminais como a que pode acontecer. O Judiciário brasileiro tem como prática cotidiana desumanizar as vidas por detrás dos papéis que compõem o processo.

    O desfecho dessa história demonstrará se a sociedade brasileira pode ter uma ínfima esperança na humanidade e na racionalidade dos magistrados e magistradas brasileiros. Afinal, quem tem medo de Desireè?

    Bruna Angotti é professora do Mackenzie, co-coordenador do relatório Dar à Luz na Sombra e advogada do Coletivo de Advogados/as de Direitos Humanos.

    Carolina Vieira é bacharel em direito e pesquisadora assistente do relatório Dar à Luz na Sombra.

    Mariana Lins é advogada e pesquisadora do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC.

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/porque-precisamos-de-desiree-livre/459673548

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