Prescrição não é solução
O ministro Toffoli sugeriu ao Congresso a alteração no regime de prescrição de crimes. Parece querer evitar o desgaste que a Corte sofrerá, caso derrube sua própria jurisprudência e proíba a execução das penas após segunda instância. Se for isso, talvez o ministro tenha avaliado mal sua estratégia.
A ideia do ministro é suspender o prazo prescricional — deixar de contá-lo — quando o réu recorrer para tribunais superiores. Encaminhada no momento em que o tribunal julga a execução provisória da pena, parece propor uma solução compensatória, do tipo: não permitiremos a prisão provisória, mas não se preocupem, porque se o réu insistir com recursos, não colherá a prescrição.
Com isso, sugere que a solução para um problema tão complexo, que vem ocupando os tribunais há mais de uma década, estaria logo ali, ao alcance de um simples artigo e um parágrafo de lei. Por que não se pensou nisso antes, ora vejam?
Porque não é tão simples, e o ministro sabe bem disso.
A questão da prescrição penal no Brasil é bem mais complicada do que faz crer a singela proposta do presidente do STF. E a teia de recursos que a jurisprudência convalidou nas últimas décadas indica que será necessário bem mais que uma bala de prata para evitar o abuso e a impunidade.
A proposta do ministro Toffoli não é ruim, mas é fraca e incompleta. Se ficar só nisso e desprezar o contexto estrutural de nosso labirinto processual, corre o risco de se tornar mais um factoide: cria uma cortina de fumaça, sem resolver os problemas reais.
Excesso de recursos e prescrição sempre foram entraves à efetividade da lei penal. Recorrer indefinidamente consome tempo, e tempo corrido gera a perda do direito de punir. Afinal, como dizia um saudoso mestre, “a pressa é inimiga da prescrição”. Conjugados em um sistema que perdeu racionalidade ao longo de décadas, esses dois vetores geraram a sensação de impunidade. Uma percepção que somente surgiu forte quando a clientela da Justiça criminal alcançou réus proeminentes. Dito isso, seria de se pensar que a ideia do ministro, de evitar a contagem da prescrição na pendência dos recursos, seria a solução mágica para o problema. E por que não é?
Primeiro, porque existem no Brasil duas espécies de prescrição penal: um prazo para condenar e outro para fazer o réu cumprir a pena. A proposta de Toffoli sugere suspender apenas a primeira delas, a prescrição da pretensão condenatória. Depois de julgados todos os recursos em todas as instâncias, descobre-se que ocorreu a prescrição da pretensão executória: o Estado perdeu o prazo para executar a pena, porque este não estava suspenso. E jogou-se trabalho e dinheiro público fora.
O ministro Toffoli conhece bem esse problema, porque tem sob sua relatoria o Recurso Extraordinário de repercussão geral nº 788, onde se discute exatamente a necessidade de se adequar a contagem da segunda espécie de prescrição à lógica do sistema constitucional brasileiro. A ação aguarda ser julgada desde 2015.
Segundo, a ideia de Toffoli não impõe limites ao que o ministro Barroso chamou de abuso no direito de recorrer. Não impede a interposição ilimitada de embargos e agravos, que continuarão acessíveis aos que puderem bancar essa advocacia militante. Jogar com o tempo e adiar indefinidamente o momento de prestar contas à Justiça continuará sendo ativo interessante, ao alcance de uma seleta casta de réus. No mínimo, desestimulará a colaboração premiada. Afinal, se é possível adiar o momento de entregar as provas, para que pressa? E ao final, ainda se poderá, quem sabe, colher a outra prescrição, a que atinge a execução da pena e que não foi suspensa pela proposta de Toffoli.
Tem mais. Caso sua sugestão seja acatada, a lei mais rigorosa só valerá para os crimes que venham a ser praticados após sua entrada em vigor. Isso mesmo: a suspensão da prescrição não atrapalhará a estratégia de defesa dos milhares de réus que hoje pretendam procrastinar seus encontros com a Justiça. Para esses, incluindo todos os réus da Lava-Jato, as duas espécies de prescrição continuarão possíveis e prováveis.
Se vai impedir a execução provisória da pena, o Supremo precisará dar um recado claro à nação de que quer, de fato, contribuir com propostas que devolvam racionalidade ao nosso sistema e que vêm sendo debatidas sem avanço há um bom tempo.
Temos ouvido nos últimos dias, da boca de alguns ministros, que o Supremo não pode reescrever a Constituição. Mas pode e deve atuar para que a lei guarde harmonia com aquela. A proposta do ministro Toffoli, como está, é uma gota solta no oceano de nossas vicissitudes processuais. Para convencer como ideia oportuna, precisa ser mais do que um ofício ao Legislativo.
0 Comentários
Faça um comentário construtivo para esse documento.