Prisão, garantismo e ativismo
O Supremo Tribunal Federal acaba de confirmar, agora com caráter de imperatividade geral, a autorização para o início da execução penal antes do trânsito em julgado da sentença, desde que mantida em grau de apelação. Se volto ao assunto, com tanta coisa acontecendo, é porque o tenho por muito relevante, não apenas no contexto em que imediatamente se apresenta, mas também no panorama geral da jurisdição.
Na verdade, o debate que se trava tem abrangência bem maior do que a visível ao vôo de pássaro. Trata-se de um dilema jurídico-ideológico sempre inquietante e nunca ausente das cogitações dos processualistas e dos constitucionalistas. Um verdadeiro choque de princípios: de um lado, a ideia do garantismo, a pedir máxima atenção aos direitos e salvaguardas individuais em face do Estado; de outra banda, o ativismo, clamando por máxima eficiência e presteza na atuação do poder público.
Do ponto de vista processual, essa é uma das mais persistentes inquietações do jurista, a do escopo do processo judicial, que repercute incessantemente na solução de inumeráveis questões dependentes. Tal é o caso da maior ou menor autoridade do juiz, de sua proeminência ou inferioridade no poder de iniciativa, de amplitude ou limitação do papel das partes. Ao fim e ao cabo, esse debate em torno dos princípios dispositivo e inquisitório desemboca na questão maior do tamanho do Estado.
Não se pense, aliás, que o dilema só diga respeito ao processo penal, se bem que tenha aí sua mais dramática evidência. É um problema de teoria geral do processo e, em visão mais larga, de teoria das constituições e filosofia política. Em regimes de força, o papel do juiz pode ser o de um tirano, um Führer do processo (Nelson Hungria); ao revés, onde predomina o laissez faire laissez passer, o processo é “coisa das partes”, um jogo onde o juiz se limita a fiscalizar as regras.
Obviamente, esses modelos extremos não são encontradiços na cultura de nossos dias, mais servindo à ilustração do que à exemplificação. Como em todo choque de princípios fundamentais, a prática cuida de encontrar alguma forma de síntese ou compromisso entre eles, usando-os para a construção de formações intermediárias: o processo de cada povo será mais dispositivo ou mais inquisitório, sem absolutos.
É natural que se constate uma tendência a prestigiar o inquisitório entre os juízes, eis que se trata de ampliar a autoridade deles, e todo poder tende à expansão. De outro lado, não é menos natural a preferência dos advogados pelo processo mais dispositivo, que lhes proporciona maior margem de atuação e de oportunidades profissionais. A faculdade de recorrer sempre (ou quase sempre) é apenas uma faceta dessa realidade.
Também não é surpresa que o tema haja dividido a Corte Suprema ao meio. Quando se trata de conflito entre princípios fundamentais, isso é normal. O fator de desequilíbrio pode ter sido um dado circunstancial: o clamor das ruas contra a impunidade. O que significa uma boa notícia e outra má: os tribunais não são de todo impermeáveis ao sentimento médio da sociedade; outrossim, estamos começando a ser governados pelo medo.
* * * * *Adroaldo Furtado Fabrício escreve no Espaço Vital a cada duas sextas-feiras. Seu próximo artigo será publicado na edição de 21 de outubro.
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