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2 de Maio de 2024
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    Propriedade como moradia ou como renda? Uma proposta sobre as regras de locação residencial

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Há muito não me permito aderir a teses que considero escapistas[1], a advogar proposições que, muito embora teoricamente me pareçam extremamente pertinentes, não consigo verificar substrato real para sua sustentação. Desse modo, embora já tenha tratado aqui[2] – ainda que forma muito breve e com foco demarcado – acerca da problemática da propriedade privada no Brasil, não vejo qualquer possibilidade material de transformação radical – no sentido de retorno às raízes – do modelo de propriedade privada adotado em nossa legislação.

    Assim, o que tenho trabalhado é com a alternativa da maior restrição possível ao exercício da propriedade, no entanto sempre conforme o que permite o texto constitucional. Se Pierre Dardot e Christian Laval[3] estabelecem que, ao menos na teoria, a social democracia é aquele modelo de Estado em que se visa compatibilizar o exercício da propriedade privada com um mínimo de solidariedade social, mesmo que esta solidariedade seja imposta de cima para baixo pela via estatal, decerto que, da leitura da Constituição Federal, o que ressai é o desejo do constituinte pelo advento de um modelo de Estado Social no Brasil.

    O professor Washington Albino Peluso[4]expôs, em toda sua trajetória acadêmica, acerca do caráter plural da ideologia constitucionalmente adotada que, ao mesmo tempo que estabelecia a propriedade privada, por outro lado definia uma série de princípios cuja ideologia se diferenciava da visão estritamente privatista, possuindo caráter assumidamente coletivista. Do mesmo modo, resta também no texto constitucional uma série de condicionantes ao exercício da propriedade, tal como já tratado anteriormente.

    Seria, nas palavras do teórico Mangabeira Unger na obra supracitada, uma pitada de açúcar sobre uma realidade amarga, ou uma adesão envergonhada de uma esquerda de outrora, como definiram os autores franceses acima citados[5].

    Em um país que se assemelha à Estônia no sentido de sequer conseguir tributar lucros e dividendos[6], qualquer medida mais drástica de restrição ao exercício da propriedade – relembrando que a tributação também pode ser encarada como uma restrição estatal sobre a propriedade, mesmo ciente dos diversos “problemas” dessa compreensão – encontraria tamanha resistência que sua propositura se assemelharia ao escapismo tratado acima, de sorte que a proposta a seguir em nada reveste-se de radicalidade. Possuindo, aliás, precedente no modelo de liberalismo contido no nosso imaginário popular[7], consistente em extenso regramento sobre os alugueis existentes na cidade de Nova York.

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    Como tratei no artigo anterior, o exercício do direito de propriedade depende de cumprimento de sua função social, sobretudo, dada a realidade e os problemas habitacionais do país, quando se tratar da propriedade sobre bens imóveis. Assim, a proposta que apresento vai no sentido de que se imponha ao bem imóvel destinado à locação o exercício de sua função socialmente estabelecida, que é o da moradia e não o da obtenção de renda, ainda que esta não seja ilegal ou ilegítima.

    Atualmente para as locações residenciais vige a liberdade ampla para definição de valores, sendo tratadas como leis as normas contratuais estabelecidas entre as partes. Assim, na prática o que se verifica é que, quando encerrado um contrato de aluguel, encontra-se o locador livre para estabelecer o valor que bem entender a título de renovação. Se durante o contrato os valores são usualmente reajustados conforme índices inflacionários, no momento de sua renovação o locador é livre para apresentar qualquer valor para o locatário, sendo manifesta a sobreposição, nestes casos, do direito de propriedade sobre o direito de moradia.

    Assim, o que proponho é, para a locação residencial, a adoção de regras semelhantes às previstas para a locação comercial, cujo locatário, desde que preenchidos alguns requisitos legais, possui direito à renovação automática, muito embora, ao contrário do que defendo aqui, seja permitido o livre reajuste de valores quando do momento renovatório. Acrescento que tal regra, conhecida no exemplo norte americano descrito acima como hipótese de estabilização dos alugueis, não deveria abranger a todos os imóveis colocados em locação, mas sim que se estabeleça uma faixa de valores de aluguel e de renda dos locatários para sua definição, seguindo-se assim a mesma inspiração já mencionada.

    Desse modo seria feito um recorte de renda e características dos imóveis, de forma a dificultar a deturpação do instituto. Ademais, devem também ser pensadas exceções à regra da estabilização, a considerar as condições pessoais dos contratantes ou a necessidade de eventuais reformas nos imóveis, requisições pelo Poder Público, dentre outras.

    Deve-se alertar que a renovação automática, assim como nas locações comerciais, seria uma faculdade do locatários, que no entanto deveria exercê-la em observância a prazos e requisitos a serem estabelecidos por lei, como forma de privilegiar a previsibilidade dos contratos.

    A eventual sazonalidade, como a atual em que os valores do alugueis tem reduzido, não me parece apta a desconstituir esta tese, porquanto o que se visa privilegiar é o direito à moradia em caráter definitivo, não submetendo-o às oscilações do mercado.

    Muito distante de qualquer heterodoxia, a regra que proponho, e que depende de mera alteração de lei ordinária por maior simples, possui não apenas amparo constitucional, como também previsão legal bastante semelhante – a incidente sobre imóveis destinados às atividades comerciais – e tem como inspiração no modelo de liberalismo presente no imaginário de nove entre dez cabeças pseudo-liberais brasileiras, o que, dado o momento, é importante destacar.

    A proposta aqui feita me parece singela. Não fiz análise econômica, tampouco dos impactos habitacionais dela resultantes, que inclusive me parece que não seriam muito consideráveis. Procurei centrar-me na questão da legalidade e da correlação entre o direito de propriedade e da força contratual ante o direito à moradia e a Constituição Federal.

    Do mesmo modo, não é nenhuma proposta em detrimento do pequeno proprietário, mas do investidor que transforma a habitação alheia em riqueza.

    Umberto Abreu Noce é Advogado, formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Mestre em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

    [1] Terminologia utilizada pelo teórico Roberto Mangabeira Unger na obra: UNGER, Roberto Mangabeira. O que a Esquerda deve propor; tradução de Antônio Risério Leite Filho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileiro, 2008

    [2]http://justificando.cartacapital.com.br/2018/05/07/ocuparedar-funcao-socialapropriedade/

    [3] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaios sobre a revolução no século XXI; tradução Mariana Echalar. 1. Ed. São Paulo: Boitempo, 2017.

    [4]https://www.fbde.org.br/textos-historicos

    [5]DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal; tradução Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016

    [6]https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/18/economia/1526660124_260589.html

    [7]https://www.nytimes.com/interactive/2018/05/20/nyregion/affordable-housing-nyc.html

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