Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
4 de Maio de 2024
    Adicione tópicos

    Reconhecimento, estigma e o beijo do Borel

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Foto: Nego do Borel/Me Solta/Divulgação

    Através de um aplicativo de celular, em um grupo de militantes LGBT, recebi áudios que foram apresentados como sendo de “traficantes do Morro do Borel”. As vozes masculinas dos áudios criticavam o cantor Nego do Borel por ter “colocado sangue rosa”. Afirma-se que do Borel “sai sangue de homem, #[email protected]!”. Outro o classificava como “otário”. Com sotaque carioca, dizia que “o bagulho ficou mal visto” para eles, moradores da localidade. O terceiro afirma que “esse moleque”, em referência ao cantor, “não representa o Borel”, nem o funk. Lembra que “no Borel ninguém fica beijando homem não, rapá!”. Conclui: “nem os viados estão aceitando ele”.

    Críticas parecidas foram feitas por fãs do cantor nas redes sociais que também não se identificam como LGBT, nem mesmo como moradores do Borel ou são apresentados como supostos “traficantes”. As reclamações são em relação ao clipe da música “Me solta”[1], que circula na internet em mais uma polêmica envolvendo questões de reconhecimento e representatividade na era das mídias digitais. As críticas desse grupo é em relação ao cantor ter beijado outro homem no clipe, não necessariamente por ele ter se apresentado vestido de mulher, imitando uma bicha[2].

    Diferente disso, as recusas por parte do público LGBT apontam para o fato de Borel ter se apresentado montado[3]. Para muita gente engajada nos direitos pró diversidade sexual, Borel não representa o grupo de pessoas negras, pobres, afeminadas que, como se sabe, têm sofrido diversas formas de violência no país. O julgamento em relação ao clipe é a de que foi um jogo de marketing, pensado exclusivamente para envolver o público consumidor LGBT. Por isso, não teria uma intenção real de transformar a realidade vulnerável desse seguimento, mesmo o clipe contendo um beijo do cantor em outro homem.

    Em vez de aceitar que esses dois grupos, o de não LGBT e o de LGBT[4], não se viram representados nesse clipe, reflito sobre parte do que esses dois grupos reconheceram em “Me solta” e as suas implicações para o campo da luta por mais direitos no contexto contemporâneo.

    Judith Butler afirma que o reconhecimento passa necessariamente por um caminho comum entre histórias singulares, e esse caminho o coloca em circulação. Isso porque “o reconhecimento é uma relação intersubjetiva, e, para um indivíduo reconhecer o outro, ele tem que recorrer os campos existentes de inteligibilidade” (2010, p.168).

    Aqui não se trata de pensar em reconhecimento como apenas aquilo que os grupos sociais aceitam como sendo relacionado positivamente a eles, antes, compreender as críticas como uma forma de reconhecimento de uma não identificação com aquilo que se recusa. Reconhecimento nesses termos não é apenas aquilo que escolhemos como sendo algo que nos representa. A representatividade negada, comumente, anuncia também aquilo que não queremos ser, mas que nos constitui. Nesse caso, a imagem da bicha negra, pobre e afeminada.

    Enquanto artefato cultural, o clip da música é um “dispositivo pedagógico” em termos de raça, classe, gênero e sexualidade. Essa produção audiovisual contribui para com os “currículos culturais”, entre outras coisas, produzam valores e saberes, regulem condutas e modos de ser, fabriquem identidades e representações, constituam certas relações de poder (SABAT, 2001) que em muito implicam em experiências de vulnerabilidade social. Não é, portanto, algo sem importância, especialmente por envolver estigmas tão marcantes de um grupo ainda marginalizado em relação ao acesso a direitos.

    Por mais que as redes tenham sugerido que o cantor deveria ter convidado uma bicha negra, pobre e afemina “de verdade” e não se montado, devemos ter claro que se, por um lado, “a experiência corporal é uma das dimensões para a produção da rebeldia”, por outro, “a consciência política e a agência transformadora não são determinadas pelas estruturas biológicas, por experiência localizável exclusivamente no corpo” (BENTO, 2011, p. 105). Logo, não bastaria substituir Borel no clipe por algum LGBT para representar as/os LGBT.

    Por sua vez, se não houvesse beijo, o estigma da bicha negra, pobre e afeminada seguiria no seu lugar de produção de subalternidade e, consequentemente, de legitimidade de uma masculinidade supostamente não LGBT, viril no seu sorriso diante de mais um macho vestido de mulher. A questão da diversidade sexual seguiria ilegítima fora dessa performance de uma bicha “falsa”. O tema mesmo da importância das vidas das bichas seria intocado, um tema proibido em termos de valorização, apoio e incentivo, isto é, de reconhecimento de direitos.

    O que isso nos ensina para o campo dos direitos é que o estigma existe, está presente e, ao mesmo tempo, não é o mesmo de outros tempos. Isso porque, segundo Erving Goffman (1988), o estigma é um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo, relação essa que deve ser contextualizada historicamente. A luta por direitos, inclusive de representatividade da bicha negra, pobre e afeminada já constitui hoje uma experiência diferente das de outras épocas, entre outras coisas, porque o estereótipo desse perfil de bicha segue risível, mas não passa mais ileso, como se fosse inofensivo.

    Outra mudança é o fato de que, em tempos que o sucesso é garantido por bichas negras, com origem pobre e afeminadas, via performances não risíveis, como no próprio contexto da música nacional, inclusive em alusão a direitos a serem respeitados, a representação da bicha sai dos programas de humor e vai para outros artefatos culturais, como as “super produções” do funk.

    Assim, considerando que os corpos são sujeito de dinâmicas sociais, lócus de articulação de relações e legitimador de princípios sobre a sociedade (MONTEIRO, 2012), precisamos pensar o estigma e os campos de inteligibilidades diante das novas experiências de reconhecimento e identificação, mesmo via os discursos de não representatividades. Talvez tenhamos chegado o momento de reconhecer que um artefato cultural, via a rejeição de grupos distintos, nos diz sobre quais são os sujeitos que precisamos seguir tomando como um desafio quando a questão é a ampliação dos direitos.

    Tiago Duque é Doutor em Ciências Sociais. Professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Líder do Impróprias – Grupo de pesquisa em Gênero, Sexualidade e Diferenças (UFMS/CNPq).

    Referências

    • Sobre o autorMentes inquietas pensam Direito.
    • Publicações6576
    • Seguidores935
    Detalhes da publicação
    • Tipo do documentoNotícia
    • Visualizações60
    De onde vêm as informações do Jusbrasil?
    Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/reconhecimento-estigma-e-o-beijo-do-borel/601941219

    0 Comentários

    Faça um comentário construtivo para esse documento.

    Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)