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17 de Junho de 2024
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    Repensando a postura da esquerda na criação do ‘mito’ Bolsonaro

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    “Eu não gosto de conservadores, mas nossa, como eu detesto os liberais! ”; foi a frase dita por Matt Stone, criador da série animada South Park. Liberais, no contexto americano, é equiparável à esquerda progressista tupiniquim, já que por lá o termo ‘socialista’ ainda é impronunciável. O ultraje é o ganha-pão de Stone, cujo lema é distribuir “insultos igualitários” – ofender a todos, igualmente. Poucas pessoas têm mais sucesso cruzando fronteiras da decência e do bom-gosto. É interessante que South Park, contemplada em seu contexto, consegue passar uma mensagem libertária mesmo usando arquétipos e termos deliberada e propositalmente machistas, racistas, sexistas, LGBTfóbicos, desrespeitosos com religiões e mesmo com pessoas. Seu subtexto é sempre colocar esses tropes como ignorantes, ou fazer a plateia cogitar porque está rindo da piada.

    O sentimento por trás da frase de Stone me trouxe curiosidade, especialmente com o resultado das eleições norte-americanas. O fenômeno Tea Party e a ascensão de Donald Trump, junto com o fortalecimento da Alt. Right e do nacionalismo branco carecem de uma explicação sociológica; e devem ser estudadas profundamente pelos progressistas brasileiros, até pelo que parecem pressagiar por aqui. Como explicar, a partir do otimismo progressista da era Obama, uma derrocada tão grande de negação de igualdade racial, de gênero e orientação sexual? Como explicar o levante conservador em torno das identidades masculinas, héteros e brancas; do modelo capitalista, da xenofobia aberta que levou Trump ao poder e os britânicos para fora da União Européia?

    Se a obra de Stone dá alguma indicação, a postura da esquerda enquanto movimento tem algo a ver com isso: especialmente na figura do Social Justice Warrior, o militante progressista atuando na internet e em pequenos círculos sociais. Seja uma reação aos problemas da classe trabalhadora que se sentiu esquecida na gestão Obama, ou a resposta do público às escolhas de comunicação progressista na era das redes sociais, o fenômeno Trump pode ser uma síntese Hegeliana, parcialmente originária do discurso antitético de esquerda. Esse pensamento, na perspectiva e lugar-de-fala de alguém que se identifica com direitos humanos, pressupõe uma autocrítica, ou ao menos uma tentativa de compreender os efeitos colaterais de escolhas discursivas e táticas que as causas de direitos humanos adotam atualmente. No contexto brasileiro, isso é igualmente importante, já que, da mesma forma que o Tea Party pressagiou o MBL, Trump nos serve de aviso para a ascensão de Jair Bolsanaro.

    Em tom de autocrítica, listo aqui algumas instâncias que a esquerda está ajudando a eleger Jair Bolsonaro em 2018:

    Nossa lógica não é intuitiva às pessoas comuns.

    A grande vantagem da retórica de Bolsonaro é que ele tramita dentro do senso comum, familiar a todos. Para ele, o local das mulheres é o mesmo de nossas mães, avós e bisavós; e não há nada de errado com as piadas de gays e negros que nós, nosso pais e avós contavamos durante todo o passado. Tal como aprendemos na catequese e na televisão, existem meninos e meninas, com seus papeis e gostos definidos. O dinheiro vem do trabalho; a resposta à pobreza é o pobre trabalhar mais, para um dia poder ser rico. Quem desvia disso é estranho, problemático, baderneiro, e até criminoso. Se, de fato, para muitas pessoas essa descrição não ressoa com a verdade, para tantas outras reflete fielmente sua experiência de vida e sua criação. É algo explicável sem lançar mão de qualquer teoria ou conceito intelectual arcano.

    Não sugiro desistir das importantes pautas de igualdade – pelo contrário, elas devem estar no cerne do projeto da esquerda. Mas é importante acertar a forma que a mensagem é repassada, evitando discurso circular, que só faz sentido de militante para militante. A lógica da dignidade humana deveria ser intuitiva para qualquer pessoa, explicável de forma simples, transmitida com ações e símbolos, acessível a qualquer um.

    Nossa arrogância nos isola e queima pontes

    É muito incômodo voltar os holofotes para as pessoas que de fato estão tentando criar uma sociedade mais justa, mas até em apoio a essas causas podemos fazer a discussão de meios e métodos. Expressar a ideia de que os oponentes são menos educados ou inteligentes – por mais tentadora ou verdadeira que seja essa premissa – nos expõe a uma imagem inverossímil de arrogantes. “Vai ler um livro! ”, “Vai estudar história”, e argumentos similares não são bem digeridas pelo público em geral. A retórica difamatória contra “a classe média”, por exemplo, acaba por jogar esse segmento eleitoralmente expressivo; e outrora bastião das ideias progressistas, nos braços dos retrógrados e conservadores.

    Quem atua em nome da justiça social, certamente o faz pela certeza de estar do lado certo. Essa certeza, porém, não pode ser dissociada de solidariedade e empatia com quem ainda não chegou à mesma conclusão. Existe uma veemente falta de pedagogia, aliada a uma lógica circular; que acaba alienando os não-iniciados. É tentador taxar de ignorante ou fascista aqueles que não dominam o seu jargão, ou compreendem mal seus preceitos. O problema é que terceiros assistindo esse debate, e cuja posição está entre os dois extremos, passam a temer ser igualmente taxados. Essa angústia leva ao crescimento do contra-ativismo e de narrativas deslegitimando a crítica social.

    O palavreado difícil, de conjunturas e dicotomias; os conceitos abstratos emprestados da desconstrução pós-moderna e da filosofia marxista, ironicamente carregam consigo um fardo: para os não-iniciados; os adeptos soam absolutamente superiores, elitistas, e desconexos com a realidade dos demais. Nos EUA, o arquétipo do ‘liberal elitista’ teve ressonância com os eleitores do proletariado branco no Rust Belt, estados-chave que concederam vitória a Trump. Muitos britânicos votaram noBrexit para desafiar os que chamavam de ‘burocratas de Bruxelas’.

    Nossa problematização é usada contra nós

    Como no argumento acima; o meio-campo entre os conceitos está ficando cada vez menos povoado. Certa ou errada, cria-se uma percepção de que ou se é feminista, ou machista. A favor das cotas, ou racista. Há graus de complexidade e nuance entre os dois extremos, mas na era dos 140 caracteres, as nuances se perdem. O campo de uso dos designadores ‘incontroversamente maus’ (machismo, racismo, homofobia, fascismo) está se expandindo no vocabulário progressista, e o impacto desse relativismo será uma trincheira gigantesca que empurra o centro em direção à direita. Disputamos entre nós quem é o mais progressista traçando linhas na areia, cedendo cada vez mais espaço e constituintes para um “lado de lá” vilificado, com quem o diálogo é cada vez menos legítimo. O centrista e o apolítico se deparam com dois tipos de discurso: um que o classifica com termos que ele repudia (racista, machista, homofóbico); e outro que o exonera. Qual o atrairá?

    Da mesma forma, a conceptualização de machismos e racismos inescapáveis; e a falta de diferenciação de escala entre suas manifestações, acaba criando uma rejeição conceitual, mesmo que para a defesa do ego. Se o machismo, a homofobia e o racismo são valores predominantes na nossa sociedade; até que grau desses desvios devemos reconhecer enquanto realidade-base de um trabalho pedagógico de conscientização? Num país de cultura e estrutura violadora de direitos, onde mesmo os convictos devem trabalhar internamente para extirpar os resquícios culturais de machismo, racismo e homofobia; como incentivar esse processo na classe trabalhadora e nos menos instruídos, sem aliená-los? Há uma troca entre a adesão aos preceitos e princípios, de um lado; e a obrigação de resultado, do outro.

    Nossas táticas são previsíveis e exploráveis

    Movimentos sociais têm suas práxis e tradições, esculpidas em décadas de luta. Cada tática tem uma razão de ser, forjada na sobrevivência e testada contra o progresso social. Porém, vale a pena cogitar se essas táticas agregam força às metas atuais. Na era das redes sociais, as táticas podem acabar legitimando a narrativa adversária, dando munição para um discurso que tira a legitimidade das causas. Escolhas táticas, como obstruir o trânsito ou interromper atividades educacionais através de uma ocupação, devem ser mensuradas em termos de impacto para a causa de forma menos imediata. Atos simbólicos, especialmente aqueles que empurram barreiras morais ou religiosas, devem ser melhor contextualizados para evitar que tenham o efeito contrário.

    Se as plenárias forem insulares, e as manifestações atraírem somente os militantes uniformizados; arriscamos inchar as fileiras contrárias com pessoas que se repelem pelas nossas táticas. Pior ainda, dá-se munição para a arma mais contundente deste século: a narrativa. A direita está afiada em tecer uma narrativa de uma esquerda composta por “trabalhadores que não trabalham, estudantes que não estudam, e intelectuais que não pensam”: isso não é novo, mas agora, de celular em mãos, podem criar um fluxo de notícias confirmando essa narrativa. Movimentos como o MBL e o Endireita Brasil se especializam nesse contra-ataque; quase que subsistindo exclusivamente dele. Tiveram um prato cheio quando uma autodenominada militante tentou, em repúdio a uma suposta ‘apropriação cultural’, constranger uma paciente de câncer a tirar o seu turbante. A direita está ficando cada vez mais adepta de tirar as práticas de seu contexto, extrapolar seus efeitos e distorcer suas motivações.

    Em tempos de crescimento da direita intolerante, talvez seja o momento de rever as táticas da esquerda em busca de formas de lutas aptas a recrutar ao centro, e ao apolítico, dando força às causas sociais. Podemos desenvolver novas formas de luta que dialoguem com o apolítico, que atraia as pessoas de espaços neutros para causas libertárias?

    Nossa indignação alimenta o ‘mito’

    Se há algo com que Bolsonaro e o MBL contam, é com a nossa indignação. Seus seguidores se preocupam menos com o que ele propõe, e mais com o impacto de que seus impropérios têm em seus adversários. Ele não é chamado de ‘mito’ pela profundidade de seu raciocínio; mas sim por causar reações indignadas nas pessoas certas. Há muito a direita aprendeu a criar uma conexão com o segmento apolítico adotando o discurso da ‘zoeira’. Jornalistas do The Intercept, por exemplo, identificaram como os membros da Alt. Right usam as comunidades on-line ligadas à identidade Gamer, e mesmo aquelas que se dedicam à trollagem, como espaço de recrutamento e disseminação.

    Para trolls, o público ativista é um alvo cobiçado pela sua capacidade de indignação, e de angariar atenção para determinado conteúdo. Stone parodiou essa dinâmica quando cunhou o ‘Axioma de Trevor’, que postula que a recompensa do troll não é a reação que ele recebe de seu alvo, mas sim da reação que terceiros terão ao seu comportamento, e a consequente reação de outros a esse engatilhamento. Assim, se Jair Bolsonaro (A) ataca Jean Wyllis (B), ele não o faz pela reação de Wyllis, mas esperando que sua agressão ‘engatilhe’ ativistas LGBT (C), contando que suas intervenções extremadas causem reações em D, E, F e G, e por aí em diante; viralizando a controvérsia de forma a dar notoriedade ao troll original.

    O motivo pelo qual terceiros consideram satisfatório testemunhar ativistas indignando-se pode ter muito a ver com as acusações de arrogância e elitismo citadas acima. Porém, para aqueles como Trump e Bolsonaro, essa exploração está no cerne de sua estratégia eleitoral. Quanto mais boicotado, vaiado, interrompido ou piqueteado ele for, mais ganhará apoio daqueles que, apesar de não necessariamente concordar com tudo que ele diz, se encontram mais incomodados por seus oponentes. Para quem não gosta de política, a zoeira é o derradeiro ato de desafio, e Bolsonaro consegue fazer todos os tipos de ativistas dançar conforme sua música. Ele ‘mita’ no enfrentamento, subsiste enquanto bastião imóvel do ‘senso comum’ contra a onda ‘problematizadora’. O fez de forma tão eficiente que, agora já no mainstream, é impossível ignorá-lo.

    +[ASSINANDO O +MAIS JUSTIFICANDO VOCÊ TEM ACESSO À PANDORA E APOIA O JORNALISMO CRÍTICO E PROGRESSISTA]+

    Nossas identidades fragmentam coalizões

    Na era da selfie, ideologia e identidade estão mais cada vez mais atreladas ao ego; muito por causa da ascensão das teorias interseccionais, demonstrando que as opressões se empilham e interagem entre si. Assim, uma mulher negra sofre uma dupla carga de opressão, não adequadamente explicada no feminismo ou no anti-racismo puros. Daí em diante se ela for LGBT, ou tiver uma deficiência. Essa conclusão preconiza a criação de vertentes teóricas para cada combinação. Apesar de isso enriquecer os debates nas ciências sociais e jurídicas; é preciso cogitar se há alguma relação com este marco conceitual e a fragmentação das ideologias progressivas em movimentos cada vez mais identitários e voltados para si próprios.

    Os partidos de esquerda no Brasil certamente são culpados de cultivar os nichos identitários, sem necessariamente empoderá-los. O grosso dos candidatos continua vindo do cansado segmento dos homens brancos cis-hétero sem deficiência. Muitas vezes, ser ‘Liderança negra’ de um partido ainda quer dizer “liderar os negros de um partido”, e não “ser lider partidário que tem a pele negra”. Há em todos os partidos quadros oriundos de segmentos historicamente marginalizados, capazes de inspirar militância não só em seus congêneres, mas no eleitorado em geral. Enquanto as lutas por visibilidade, representatividade e participação políticas continuarem endógenas; e seus discursos e mobilização não apelarem para o partido e a sociedade como um todo; o topo da institucionalidade continuará reservado ao privilégio.

    Nosso autoritarismo contra os autoritários parece hipocrisia

    O marco de direitos humanos delineia muito generosamente os limites da liberdade de expressão de discursos impopulares, mesmo aqueles não-inclusivos, autoritários e discriminatórios. De acordo com as normas de tratados internacionais; ninguém pode ser punido por ter uma convicção, por mais hedionda que ela seja. Já a expressão dessas convicções admite restrições, desde que sejam previstos em lei, e necessários para a proteção de direitos e reputação alheios, ou à manutenção da saúde, ordem ou moral públicas. Há provisões para a proibição da propaganda de guerra, como também para a o discurso de ódio nacional, racial ou religioso que incite violência, discriminação ou hostilidade. Por outro lado, há proteções à pregação de valores e ensinamentos morais nos púlpitos; e do direito dos pais de escolherem o tipo de educação moral e religiosa que os filhos receberão. Cada centímetro cedido da liberdade de expressão tem um custo; e sua aplicação politizada representa grande risco à democracia.

    O recente embate sobre as redações do ENEM é um exemplo onde a tentativa de silenciar crítica às narrativas de direitos humanos saem pela culatra. Mas há exemplos mais entrincheirados em nossas práticas. Os conceitos de ‘espaço de fala’ e ‘apropriação cultural’ não podem servir de licença para um policiamento extrajudicial do comportamento de terceiros. São importantes para compreender fenômenos sociais estruturantes, mas não permitem à militância impô-los a pessoas que não se pautam por eles. O quadro normativo do Brasil, que ainda ostenta a figura arcaica dos “crimes de expressão” na injúria, calúnia e difamação; facilitam a armadilha de que se tente silenciar os discursos machistas, racistas e homofóbico com ameaça de prisão e multa. As ideias regressivas são muito mais perigosas entrincheiradas no submundo, onde não podem ser tolhidas pelo escrutínio público. O racismo brasileiro é pernicioso exatamente por esse motivo – é crime, impronunciável abertamente; mas enraizado na cultura e nas instituições do país.

    Conclusão:

    Este texto é um exercício de autocrítica, e acaba sendo culpado de todos os pecados que aponta. Por mais que uma observação sociológica preconize todo o tipo de caução sobre o efeito que a militância tem na ascensão do discurso retrógrado, é eticamente difícil manter o foco nas idiossincrasias dos oprimidos e de suas formas de organização. É injusto dedicar tantas páginas aos erros da esquerda na promoção dos direitos humanos, enquanto a direita não titubeia nem relenta em removê-los e violá-los. Porém, o efeito agregado dessa conjuntura, quando observado a nível global, está pendendo mensuravalmente em direção ao retrocesso. É possível que seja hora de uma correção de curso e reavaliação de estratégias; algo que não pode ser feito monocraticamente por um escritor na solidão de seu teclado. Nossa ética inclusiva, nossa ênfase em participação popular, nosso compromisso com a democracia e nossa celebração da diversidade ainda são nossas melhores qualidades; e tal projeto tem condição de apelar a todas as classes, cores, gêneros, religiões e demais condições humanas. Nossas escolhas de organização devem fazer mais uso dessa vantagem.

    Leonardo Nader é doutorando em Direitos Humanos e Política Global pela Scuola Superiore Sant’anna, em Pisa, na Itália. É mestre em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela UPEACE e pela Universidade de Oxford.

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