RHC 51.531 aborda a ponderação de valores pelo delegado de polícia
Ao adotar o sistema acusatório como sistema processual penal norteador da persecutio criminis no Estado Democrático de Direito, o ordenamento Constitucional definiu muito mais do que a divisão entre as funções de julgar, acusar e defender. Delineou os órgãos que deverão exercer funções essenciais de acesso à justiça lato sensu.
Desta forma, nosso constituinte entendeu necessário distinguir o órgão com a função de investigar, outro de acusar paralelamente a outro de defender, por uma questão de paridade de armas, e o de julgar. Por oportuno, a função investigatória da polícia judiciária se serve da mesma função garantista de escopo “essencial à justiça”, reconhecidamente declarada pela doutrina[1], ainda que organicamente prevista no capítulo “Da Segurança Pública”, na Constituição.
Neste diapasão, atribuiu-se ao Estado-investigação, representado pelo delegado de polícia, um feixe de poderes-deveres meios, muitas das vezes de natureza decisória e também cautelar para consecução dos fins da investigação criminal, qual seja a apuração a verdade eticamente construída da infração penal e dos indícios de sua autoria.
Para entendermos este feixe de atribuições da polícia judiciária devemos mergulhar sobre o princípio da reserva da jurisdição, um tema, quando não banalizado, pouquíssimo estudado pela nossa doutrina. É através deste estudo que poderemos compreender o alcance da recente decisão do STJ no RHC 51.531/RO, a despeito da apreensão de aparelho smartphone e conteúdo de conversas de aplicativos como WhatsApp.
A Constituição da República adotou um sistema de reserva absoluta e relativa da jurisdição, ou seja, na investigação criminal haverá medidas que deverão ser decididas exclusivamente pelo Estado-juiz, hipótese de reserva absoluta, e outras medidas decididas pelo Estado-investigador, hipótese de reserva relativa, que passa por um controle posterior do Estado-juiz, conforme as lições de Canotilho, na qual o juiz não possui o monopólio da primeira palavra, mas sim da última, distinto do que ocorre na reserva absoluta da jurisdição, na qual o juiz possui a primeira e última palavra sobre uma decisão.
Insta salientar, que este controle posterior em algumas vezes será de ofício e em outras ocasiões somente quando provocado, que na nossa visão, deve ser comunicado ao judiciário imediatamente após a decisão que demande questão de alta indagação, como a decisão por restrição ou privação de direitos de ir e vir, face ao necessário atendimento ao um sistema de dupla cautelaridade[2], mecanismo que defendemos também em trabalho publicado recentemente na obra Estudos sobre o papel da Polícia Civil em um Estado Democrático de Direito.[3]
Este sistema também é apontado por Luiz Flávio Gomes[4], que, nos citando em artigo de sua lavra sobre audiência de custódia, deixa clara a sua manifestação pela total constitucionalidade de se reconhecer o poder decisório pelo delegado, que por sua vez, possui natureza de uma contracautela[5].
Por uma questão de simples coerência, se a doutrina é uniforme em entender que a liberdade provisória é uma espécie de medida cautelar ou contracautela, consequentemente a conclusão lógica é a de que se o delegado de polícia determina a lavratura do auto de prisão em flagrante e concede liberdade provisória mediante fiança, por exemplo, estaremos diante de duas decisões de naturezas cautelares. Seja emanado por autoridade administrativa[6] ou não, o rótulo não altera o conteúdo e a finalidade. A bem da verdade a função de cautelaridade exercida pelo delegado possui natureza judicial[7], em razão de sua função judicial atípica de aplicar a lei à casos concretos, ainda que em cognição sumária exatamente como são as funções judiciais meio ou cautelares.
Não é por outra razão que defendemos há muito tempo que o delegado de polícia não é uma figura autômata no âmbito da investigação criminal, pois a todo instante exerce função imanente de decidir, e uma das mais importantes, que dá sentido à sua função democrática, além da exclusiva função de investigar[8], é assegurar a autocontenção do poder do Estado no ius persequendi dos fatos e a efetivação das garantias fundamentais do investigado, como por exemplo, decidir pela não lavratura do auto de prisão em flagrante por estar calçada em prova ilícita, exercendo o papel de verdadeira autoridade de garantias[9], exteriorizando, neste mister, função materialmente judicial, que não se confunde com a estritamente jurisdicional, segundo interpretação da Corte Interamericana de Direitos Humanos[10].
Há um mito de que todas as garantias fundamentais para serem afastadas dependam única e exclusivamente de uma decisão primeira do judiciário, não havendo dúvidas que seja esta a regra, mas, nem mesmo nas lições de Canotilho encontramos monopólio da jurisdição como fundamento aos meios investigatórios, ou seja, um...
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