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16 de Junho de 2024
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    Sônia Taciana Sanches Goulart: a primeira Juíza do Trabalho do Brasil

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    Quem foi essa mulher que ousou assumir um cargo que nunca antes, na história desse País, tinha sido exercido por uma mulher? Aceitou o desafio de ocupar um espaço, até então, exclusivamente masculino?

    A curiosidade surgiu após a divulgação da notícia, no portal do TRT 1ª Região/RJ, sobre a posse de Sônia Sanches como Juíza suplente no Conselho Regional do Trabalho da 1ª Região, embrião da atual Justiça do Trabalho, sendo, portanto, a primeira Juíza do Trabalho do Brasil.

    Constava na notícia, ainda, que Sônia estudou na Faculdade Nacional de Direito (atualmente UFRJ), e se formou em 1937 na mesma turma de Délio Maranhão e Arnaldo Süssekind, do meu avô Milton José Raulino Müller e do avô do coração, Daniel Aarão Reis.

    A identificação com essa pioneira foi imediata: estudamos na mesma Faculdade, prestamos o mesmo concurso, atuamos no mesmo Tribunal e nos apaixonamos pelo mesmo ramo do Direito, aquele de profundo alcance social, onde se fala em reequilíbrio da desigual relação entre capital e trabalho através de proteção jurídica, em dignidade do trabalhador, em limites para a exploração do ser humano e que, talvez por isso, até hoje sofre tanto ataque.

    Imagino o encantamento de Sônia diante do Direito do Trabalho, um ramo novo que acenava com Justiça Social em um país onde há pouco mais de quarenta anos ainda vigia o sistema escravocrata, e que seus interlocutores e colegas de turma, Arnaldo e Délio, instigavam ainda mais o interesse em se aprofundar no tema.

    Fui, então, “procurar no almanaque como é que isso tudo começou”, mas poucas são as informações sobre “esse valente primeiro morador”: Além da notícia do tribunal, Sônia deu uma entrevista para a Revista “No Mérito”[1] da AMATRA-1 e foi mencionada em um artigo sobre a História e Memória do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região no Regime Militar.

    As poucas informações disponíveis indicam uma mulher independente e arrojada: mãe solteira e desquitada do pai da segunda filha, começou a trabalhar aos 19 anos como secretária e no 3º ano da Faculdade assumiu, através de concurso, cargo no Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários (IAPI), onde fez carreira e atuou como procuradora.

    Definitivamente, não correspondia ao padrão de boa moça da Revista Cruzeiro, onde as moças eram basicamente orientadas a viver para seus maridos, mirando-se no exemplo “Daquelas mulheres de Atenas”. Provavelmente por fugir desse padrão, Sônia Sanches não foi reconduzida após cumprir mandato como Juíza Suplente e, ainda, sofreu um veto prévio para retornar ao Tribunal através de concurso público.

    Nas suas próprias palavras, “nem tendo feito tudo ‘direitinho’, dentro da lei, da segunda vez, [casamento formal com o pai da sua segunda filha] nem assim me perdoaram…”.

    O pioneirismo teve seu preço, afinal de contas, toda mulher que recusa o papel que tradicionalmente lhe é reservado, que não se conforma em servir e ocupar apenas lugares secundários, que recusa manter o casamento ainda que infeliz, essa sempre paga a fatura da ousadia. A sociedade patriarcal é impiedosa com as mulheres que subvertem sua hierarquia, por isso, “quando você se transforma em uma garota pública, eles caem de pau em cima de tudo quanto é lugar, e de um jeito especial” como nos lembra Virginie Despnetes[2].

    Aliás, as charges da época demonstram como era mal vista a mulher que ocupava atividades “masculinas”.

    A possibilidade de Sônia Sanches retornar ao TRT e ao Direito do Trabalho veio em 1956, quando foi realizado o primeiro concurso público para Juiz do Trabalho na 1ª Região (RJ), mas Sônia logo recebeu o recado, passado através de seu pai, de que “não queriam mulher no cargo e muito menos desquitada”.

    Foi quando ela decidiu se inscrever. Quando ousou dizer que mulher desquitada e mãe solteira não só podia, como devia ser Juíza do Trabalho, pois essa trajetória a faz conhecer de perto a obrigação de servir sem questionar, de manter o “bom humor” ao ouvir humilhações e sabe, como ninguém, que para sobreviver nesse mundo patriarcal “há que apanhar/e sangrar/e suar/como um trabalhador”.

    Alteridade e solidariedade que subvertem a lógica da opressão. Perigoso.

    Na prova oral, o interrogatório de Sônia durou três vezes mais tempo do que os demais; seus títulos – procuradora concursada do IAPI, procuradora da Previdência e da Justiça do Trabalho, por permuta, e Juíza Suplente – valeram menos do que o de Diretor de Secretaria, exercido por outros candidatos.

    Ainda assim, ela foi aprovada, porém, só tomou posse como Juíza Substituta em 1960. Três anos depois da posse, lá estava ela, novamente pioneira, na sala de audiências da 11ª Junta de Conciliação de Julgamento do Rio de Janeiro, para a cerimônia de fundação da AMATRA-1, a primeira associação de Juízes do Trabalho do Brasil, que nasceu “sem sede, sem estatutos registrados e também sem diretoria formal, resultado apenas de um sonho de um punhado de gente com espírito associativo, muitas idéias, muita coragem e muito carinho recíproco” com lembra Anna Acker [3], também aprovada no concurso de 1956.

    Nessa altura, por conta do concurso, ingressaram na Justiça do Trabalho mulheres, ex-sindicalistas e ex-filiados do Partido Comunista, o Judiciário se tornara mais diverso e os Juízes do Trabalho se uniam para exigir reconhecimento e condições de trabalho.

    Nadando contra a corrente, os fundadores da primeira AMATRA iniciaram uma luta que dura até hoje, quando ainda precisamos nos mobilizar pela manutenção da Justiça do Trabalho e para que as Juízas e os Juízes do Trabalho possam, ao menos, exercer a básica função de interpretar e aplicar a Lei Trabalhista conforme a Constituição Federal e os Princípios próprios do Direito do Trabalho.

    Sônia Sanches e Anna Acker não só abriram as portas do Judiciário Trabalhista para as mulheres, mas seguraram essa porta aberta para que Angélicas, Áureas e Auroras, Rosildas, Giseles, Lucianas, Julianas, Patrícias, Raquéis, Danielas, Lauras, Elinays, Noemias, Nubias, Valdetes e tantas outras Sônias e Anas entrassem, um exercício de sororidade que transcende gerações e que mantém viva, em cada uma de nós, a luta dessas pioneiras na construção da Justiça e do Direito do Trabalho.

    Como já disse o poeta, o que “nós somos, nós somos; uma boa índole e corações heróicos, enfraquecidos pelo tempo, mas fortes na vontade de lutar, procurar, encontrar e não hesitar” (Lord Alfred Tennyson). Certamente será com muita sororidade e com a “benção” das bravas pioneiras que cumpriremos os desafios hermenêuticos de interpretar, a partir da semana que vem, a lei 13.467/17, que altera regras da CLT.

    Daniela Valle da Rocha Müller é membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia). Foi advogada na área de Direitos Humanos e também trabalhista, já foi Juíza do Trabalho na 10ª Região e desde 2001 é Juíza do Trabalho da 01ª Região, Rio de Janeiro. Atualmente é diretora de Direitos Humanos da AMATRA-1, vegetariana, mas não todos os dias, mãe, cozinheira e entusiasta da produção orgânica, vai se virando no meio da luta de classes e sonha com a eficácia plena da legislação social.

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    [1] NO MÉRITO – publicação AMATRA 1, ano IX, nº 30 – maio a agosto 2003 – edição especial 40 anos de Amatra, aberta pela entrevista concedida por Sônia Taciana Sanches Goulart à sua colega de concurso Anna Acker, que assim inicia a matéria “Nossa primeira entrevistada foi Sônia Sanches Goulart. Pudera! Se o interesse está em polemizar, ninguém melhor que ela!”

    [2] Despentes, Viriginie, “Teoria King Kong”, 1ª edição, São Paulo : n-1 edições, 2016.

    [3] – História e Histórias da Amatra 1 , Rio de Janeiro, Ediouro Gráfica Ltda, 2008.

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