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6 de Maio de 2024
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    Sou um negro no tribunal dos brancos, disse Mandela em julgamento

    Publicado por Folha Online
    há 10 anos

    DE SÃO PAULO

    Primeiro presidente negro da África do Sul (1994-99), Nelson Mandela passou 27 anos preso por se opor ao apartheid sul-africano.

    Leia abaixo a íntegra do discurso que ele fez em defesa própria perante um tribunal em Pretória, em 1962.

    Mandela morreu nesta quinta-feira, aos 95 anos, em sua casa em Johannesburgo.

    *

    "Meritíssimo, antes de me pronunciar sobre a acusação, há um ou dois pontos que eu gostaria de mencionar.

    Primeiro, o meritíssimo recordará que a questão foi adiada a meu pedido da última segunda-feira até hoje, para permitir que meu defensor se organizasse para comparecer hoje. Ainda que agora eu tenha acesso a um defensor, depois de consulta com ele e meus advogados decidi conduzir minha defesa pessoalmente.

    Mandela vida

    Em algum momento ao longo deste processo, espero poder indicar que o caso representa um julgamento quanto às aspirações do povo africano, e por isso considerei apropriado conduzir pessoalmente minha defesa. Mesmo assim, mantive os serviços de meu defensor, que me acompanhará ao longo do julgamento, e gostaria que meu advogado estivesse disponível também; isso considerado, conduzirei minha defesa pessoalmente.

    O segundo ponto que eu gostaria de mencionar é uma solicitação dirigida ao meritíssimo juiz. Para começar, gostaria de deixar perfeitamente claro que as declarações que vou fazer não se dirigem ao meritíssimo em modo pessoal, e tampouco pretendem contestar a integridade do tribunal. Respeito profundamente o meritíssimo juiz e em momento algum questiono seu senso de equanimidade e justiça. Devo também mencionar que nada do que mencionarei nessa solicitação deve ser entendido como menção pessoal ao promotor.

    O ponto que desejo mencionar em meu argumento não se baseia em considerações pessoais, mas em questões importantes que vão além do escopo do julgamento atual. Também gostaria de mencionar que, no curso dessa solicitação, me referirei frequentemente ao homem branco e aos brancos em geral.

    Quero deixar claro que não sou racialista e detesto racialismo, porque o encaro como algo bárbaro, quer proveniente de um negro, quer de um branco. A terminologia que empregarei é forçosa dada a natureza da solicitação que estou fazendo.

    Quero solicitar que o meritíssimo juiz se afaste do caso. Contesto o direito deste tribunal de julgar meu caso, por dois motivos.

    Primeiro, eu o contesto porque temo que não receberei julgamento justo e correto. Segundo, não me considero legal ou moralmente sujeito a obedecer leis criadas por um Parlamento no qual não tenho representação.

    Em um julgamento político como este, que envolve um confronto entre as aspirações do povo africano e as dos brancos, os tribunais do país, tais como atualmente constituídos, não podem ser imparciais e justos.

    Em casos como esse, os brancos são parte interessada. Ter um funcionário branco do Judiciário presidindo ao julgamento, por mais que eu o tenha em alta estima, e por mais justo e equânime que ele seja, é dar a um branco o papel de juiz em um caso branco.

    É impróprio e uma violação de um princípio elementar de justiça confiar aos brancos o julgamento de casos que envolvem a negação por eles dos direitos humanos básicos do povo africano.

    Que forma de justiça permite que a parte injuriada presida ao julgamento daqueles contra os quais ela move acusações?

    Um Judiciário controlado inteiramente pelos brancos e aplicando leis criadas por um Parlamento branco no qual os africanos não têm representação - leis que na maioria dos casos foram aprovadas diante da oposição unânime dos africanos...

    (Magistrado): Imagino se devo interferir já neste momento em sua solicitação, senhor Mandela. Não estamos indo além do escopo do julgamento? Afinal, só existe um tribunal hoje, e é o tribunal dos brancos. Não existe outro tribunal. A que propósito serve o senhor fazer essa solicitação quando só existe um tribunal, como o senhor bem sabe? Por que tribunal o senhor gostaria de ser julgado?

    (Mandela): Bem, meritíssimo, primeiro gostaria que o senhor tivesse em mente que em diversos casos nossos tribunais estabeleceram que o direito do litigante a recusar um magistrado é um direito extremamente importante, que deve contar com a plena proteção do tribunal, desde que tal direito seja exercido honestamente. Tenho apreensões, honestamente, como pretendo demonstrar agora, de que a injusta discriminação que sofri durante minha vida seja responsável por injustiças muito graves, e alegarei que a discriminação racial, que fora do tribunal é responsável pelos meus problemas, dentro dele me submeterá à mesma injustiça. O meritíssimo juiz pode discordar disso, mas tem todo o direito, e até mesmo a obrigação, de me ouvir, e por isso sinto que o meritíssimo...

    (Magistrado): Eu gostaria de ouvir, mas primeiro quero que o senhor embase sua solicitação para que eu me afaste do julgamento.

    (Mandela): Bem, são esses os motivos, eu os estou desenvolvendo, meu senhor. Se o meritíssimo me der tempo...

    (Magistrado): Não quero me afastar do escopo do julgamento.

    (Mandela): Quanto ao escopo da solicitação, estou dentro do escopo com essa solicitação, porque estou expondo motivos que, em minha opinião, provavelmente não resultarão em um julgamento justo e correto para mim.

    (Magistrado): Bem, prossiga.

    (Mandela): Se o meritíssimo assim permite. Eu estava desenvolvendo o ponto de que um Judiciário inteiramente controlado por brancos e aplicando leis criadas por um Parlamento branco no qual não temos representação, leis que na maioria dos casos foram aprovadas diante de oposição unânime dos africanos, não pode ser considerado como tribunal imparcial em um julgamento político no qual um africano é o réu.

    A Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe que todos os homens são iguais perante a lei e têm direito a igual proteção da lei, sem discriminação. Em maio de 1951, o Dr. D. FG. Malan, então primeiro-ministro da África do Sul, declarou ao Parlamento da União que essa cláusula da declaração se aplicava ao nosso país. Afirmações semelhantes foram realizadas em diversas ocasiões do passado por muitos brancos importantes do país, entre os quais juízes e magistrados. Mas a realidade é que não existe qualquer igualdade perante a lei, no que tange ao nosso povo, e as declarações em contrário são definitivamente incorretas e enganosas.

    É verdade que um africano que responda a uma acusação diante de um tribunal desfruta, na superfície, dos mesmos direitos e privilégios de um acusado branco, ao menos no que tange à condução do julgamento. Ele será submetido às mesmas regras processuais e evidenciárias que se aplicam a um acusado branco. Mas seria absurdamente incorreto concluir com base nesse fato que um africano desfruta de igualdade perante a lei.

    Em seu significado correto, igualdade perante a lei significa o direito de participação na feitura das leis pelas quais uma pessoa é governada, uma constituição que garanta os diretos democráticos de todas as seções da população, o direito de buscar proteção ou compensação junto ao tribunal em casos de violação de direitos garantidos pela constituição, e o direito de tomar parte na administração da justiça exercendo as funções de juiz, magistrado, promotor público, consultor jurídico e postos semelhantes.

    Na ausência dessas salvaguardas, a expressão"igualdade perante a lei"perde todo significado e é enganosa, ao menos no que tange a nós. Todos os direitos e privilégios que mencionei são monopólio dos brancos, e não desfrutamos de nenhum deles.

    Os brancos fazem todas as leis, nos arrastam a seus tribunais e acusam, e se arvoram em juízes contra nós.

    É perfeitamente admissível e correto mencionar claramente a questão: o que significa essa barreira de cor na administração da Justiça? Por que, neste tribunal, estou diante de um magistrado branco, um promotor branco e fui conduzido à sala por um guarda branco? Alguém poderia sugerir honesta e seriamente que nesse tipo de atmosfera a balança da justiça é precisa e correta?

    Por que nenhum africano, na história deste país, teve a honra de ser julgado por seus irmãos de raça, por pessoas de sua carne e de seu sangue?

    Direi o motivo ao meritíssimo juiz: o verdadeiro propósito da rígida separação de cores é garantir que a justiça ministrada pelos tribunais se conforme à política do país, por mais que essa política conflite com as normas de justiça aceitas nos judiciários de todo o mundo civilizado.

    Sinto-me oprimido pela atmosfera de dominação branca que pende sobre esta sala. De alguma forma, essa atmosfera me traz à memória as desumanas injustiças causadas ao meu povo do lado de fora do tribunal por essa mesma dominação branca.

    Isso me lembr...

    Ver notícia na íntegra em Folha Online

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