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4 de Maio de 2024
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    Um julgamento entre a galinha da macumba e o couro do sapato do ministro

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Arte: André Zanardo.

    Do que são feitos os sapatos do Estado Laico? Para responder a essa questão, vamos analisar as cenas do julgamento interrompido acerca do sacrifício animal por religiões afro-brasileiras no STF:

    Hédio Silva Jr., em sustentação oral no julgamento do RE nº 494.601/RS.

    Cena I – O longo processo judicial

    Na quinta-feira 09 de agosto, o plenário do Supremo Tribunal Federal se reuniu para julgar o Recurso Extraordinário nº 494.601 do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Neste recurso, impugna-se a declaração de constitucionalidade da Lei nº 12.131/04-RS, segundo a qual os sacrifícios de animais em cultos de matriz africana não infringem o Código Estadual de Proteção aos Animais do Rio Grande do Sul, uma vez que realizados sem excessos e crueldade. A constitucionalidade da Lei foi declarada em âmbito estadual no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e é questionada no STF desde 2006.

    Não busco comentar exaustivamente os desdobramentos processuais da sessão iniciada na quinta-feira. Para isto, uma consulta no site do Supremo oferece o panorama geral dos ritos e ditos. O relator, Ministro Marco Aurélio, improveu parcialmente o recurso, ao conceder interpretação conforme à Constituição, não conhecendo da lei no que ela explicita o termo “religiões de matriz africana”, pois feriria o princípio da isonomia e protegeria excessivamente uma crença. Em termos gerais, o relator entendeu constitucional a prática de sacrifícios religiosos, não restritos às religiões afro-brasileiras. Além disto, instituiu uma condicionante de que a imolação fosse para consumo humano:

    Em seguida, o Ministro Alexandre de Moraes pediu vistas do recurso, interrompendo o julgamento. O Ministro Edson Facchin apresentou voto divergente, ao entender a lei estadual plenamente constitucional e a pertinência do termo “cultos de matriz africana”, por considerar a importância da enunciação legal de proteção a uma religiosidade vítima de estigmatização histórica e estruturante.

    Antes do voto do relator, o Vice-Procurador Geral da República, Luciano Mariz Maia, ressaltou a injustiça histórica a que as religiões de matriz africana foram submetidas, e deu nome aos bois: racismo institucional. A manifestação do Vice-Procurador provocou lágrimas no lado do plenário onde estavam os afro-religiosos.

    Superado o quase relatório, e ainda tão próxima da cena, discuto duas provocações que o julgamento interrompido sobre o Estado Laico traz à comunidade jurídica e também à sociedade brasileira. Apresento a territorialização racial da cena de um julgamento sobre uma religião historicamente criminalizada, na qual apenas um homem negro teve direito a falar, e pessoas negras e brancas estiveram divididas na assistência do plenário. De um lado homens e mulheres negras com seus turbantes e fios de conta, e de outro pessoas brancas em ternos, gravatas, cintos e sapatos de couro, que fotografavam curiosamente as pessoas do outro lado da sala.

    Na mesma cena, pouco se pronunciou sobre o racismo, a única palavra capaz de torná-la inteligível. Em seguida, discuto a impertinência da condicionante apresentada pelo voto do relator e quais as tarefas que o julgamento interrompido demanda da comunidade jurídica, de especialistas e de adeptas e adeptos de religiões afro-brasileiras.

    Cena II – Os crucifixos e os brancos Supremos

    Adentrar os prédios do Supremo Tribunal Federal é uma experiência racial. Primeiro, depara-se com um ambiente e um dress code mais ou menos inflexível, a depender de qual temática será discutida. Para nós juristas, este ritual pode se tornar naturalizado. Entretanto, destaco o distanciamento inicial que a corte impõe ao exigir que as pessoas acessem, por exemplo ao plenário, de terno, saia, calça e sapato social.

    No julgamento de quinta-feira, pessoas adeptas de religiões afro-brasileiras adentraram com seus símbolos. O primeiro deles, não seria o turbante e os fios de conta; ouso dizer que o primeiro símbolo que ingressou no Supremo Tribunal Federal foi a cor e a identidade representadas em sua religiosidade. E por isto, sentada do lado turbante da audiência, do lado direito da Presidenta Ministra Carmen Lúcia, vi o olhar de surpresa quando a sirene tocou e os ministros entraram no salão com suas capas pretas. Talvez muitos deles nunca tenham visto uma mãe-de-santo ao vivo, muito menos tantos afro-religiosos em um mesmo local. Entretanto, reuniram-se em sessão plenária ao som de atabaques que vinham do lado de fora do Supremo.

    A premissa do julgamento é racializada, já no fato de que nenhum dos ministros é uma pessoa negra. Na trajetória da corte centenária, apenas um ministro negro. Entre os julgadores, a maioria masculina e a totalidade branca. Dentro da cerca que separava a audiência e a instituição judiciária, apenas uma mulher negra, a juíza baiana Andremara dos Santos, atual Secretária-Geral do Supremo Tribunal Federal. Acima de todos nós, o crucifixo, ele mesmo declarado constitucional.

    A racialização da mais alta corte é permanente. A discussão sobre o Estado Laico esteve no centro das preocupações do STF nos últimos dias. Na segunda-feira da mesma semana, 06 de agosto, ocorreu o último dia da audiência pública no âmbito da ADPF nº 442 que questiona a criminalização do aborto até a 12º semana de gestação. Nesta outra cena, as mesmas ausências e permissividades com símbolos. As mulheres que assistiram a audiência não puderam entrar no recinto estampando dizeres pró-descriminalização. Tive um adesivo com os escritos “nem presa, nem morta por aborto” arrancado do paletó. Mas não houve a mesma restrição aos símbolos cristãos. Homens e mulheres entraram com camisetas que anunciavam sua crença e algumas pessoas assistiram a audiência pública com rosários nas mãos. Além disto, se as mulheres negras são as vítimas predominantes da criminalização do aborto, elas foram minoria entre os expositores da audiência pública. Apenas três mulheres negras foram ouvidas, de um total de 61 expositores que fizeram o uso da tribuna.

    Cena III – De como se deu no Supremo o caso dos sapatos de couro

    Aqui, corro o risco de perder atenção das leitoras e leitores, que neste momento podem identificar uma jurista apegada à forma. A questão que se coloca é perceber que a forma se impõe desde o princípio, a serviço de crenças, grupos raciais e do gênero masculino.

    O título do texto devo à fala do advogado Hédio Silva Jr, que realizou sustentação oral representando a União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil e o Conselho Estadual da Umbanda e dos Cultos Afro-Brasileiros do Rio Grande do Sul (CEUCAB/RS). O advogado – única pessoa negra e a último a fazer sustentação oral – questionou o fato de que todos os que o precederam utilizavam sapatos de couro. Significa que não é o abate de animais que está em questão no Judiciário, mas o controle estatal das religiosidades de um grupo violentado desde o sequestro e escravidão. Dr. Hédio foi o primeiro a pronunciar: trata-se de uma manifestação do racismo religioso.

    Sugiro assistir na íntegra a sessão que está disponível no canal do Supremo na plataforma Youtube. Nas falas dos que se manifestaram contra, foram mobilizados argumentos discriminatórios há muito contestados por diferentes campos do conhecimento (antropologia e direito, por exemplo).

    O representante do Ministério Público gaúcho utilizou o termo “seita” e chamou de “esquizofrenia legal” a lei que resguarda o sacrifício animal de religiões afro-brasileiras. Na sustentação oral do advogado do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, o mesmo resgatou a terminologia “magia negra”, reivindicou a alegoria do gato preto nas sextas-feiras treze, e defendeu a inconstitucionalidade da lei mencionando práticas culturais violadoras de direitos humanos realizadas em outros países, como a mutilação genital feminina e o casamento infantil.

    Epílogo – As tarefas deixadas por um julgamento interrompido ou a preparação para o segundo ato

    A interrupção do julgamento demanda a reflexão e amplo debate dos argumentos exteriorizados até o momento. A mobilização dos direitos dos animais como adversários das manifestações culturais de grupos historicamente estigmatizados demonstra que a discussão precisa ser aprofundada em outras premissas. Esta oposição é propositalmente mobilizada. Talvez seja o momento de especialistas e dos adeptos das religiões afro- brasileiras apresentarem – mais uma vez – a relação entre natureza e humano e a noção de vida partilhada por elas. Estas relações se dão de modo sofisticado e há respeito à natureza, uma vez que a natureza e os animais são partes constituintes do culto. Para além do racismo religioso que atravessa a questão, há um desconhecimento da forma própria e reverente que os cultos de matriz africana se colocam diante do meio ambiente.

    Para a comunidade de juristas resta a tarefa de se aproximar do códice jurisprudencial construído nos últimos anos pelo STF e suscitado no julgamento do RE nº 494.601, a respeito da relação entre manifestações culturais e direito ao meio ambiente: a inconstitucionalidade da Vaquejada, a proibição da rinha de galo e da Farra do Boi. Além do melindre colocado pela especificidade de cada caso, para a análise jurídica do sacrifício animal nas religiões afro-brasileiras não se pode partir da oposição manifestações culturais versus direitos dos animais e silenciar o aspecto central da questão que se localiza no racismo religioso.

    Por fim, o atraso do julgamento pode servir para que os grupos e especialistas se posicionem sobre a condicionante imposta no voto do relator. Para o Ministro Marco Aurélio Mello, só seria constitucional o sacríficio religioso que se destinasse ao consumo humano. Ainda que o sacrifício animal finde na partilha do alimento pela comunidade, depara-se com diversos riscos. O primeiro diz respeito ao controle que tal condição poderá ensejar no futuro. Na manifestação da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, o Procurador desta Casa afirmou que a exceção do sacrifício religioso como desrespeito ao meio ambiente pela lei estadual discutida, já seria uma resposta legislativa a perseguições institucionais que os terreiros sofriam à época da sanção da Lei.

    Se a Suprema Corte decidir a constitucionalidade do sacrifício de animais por meio de uma condição, pode abrir espaço para ações arbitrárias de controle sobre as manifestações afro-religiosas. Além disto, a mencionada condição consiste em gestão estatal de práticas religiosas de base comunitária, cujos foros de regramento se dão em âmbito muito local. Dentro da terminologia “religiosidades afro-brasileiras” estão abarcadas dezenas de religiões distintas, que podem combinar a reivindicação africana com a raiz indígena, ou mesmo com o cristianismo dentre outras variações. Haveria normatização de práticas que guardam noções próprias de justo, culto e natureza, e o Judiciário demonstra deste modo que a territorialização racial da cena do julgamento é mais que uma alegoria, uma verdadeira incompreensão e desconhecimento de práticas centenárias que possuem o sacrifício religioso como constituinte, cuja existência significa enfrentamento histórico ao racismo.

    Se o questionamento do jurista Hédio Silva Jr. sobre de que eram feitos os sapatos dos que subiam à tribuna serviu para desvelar o racismo religioso que perpassa o Recurso Extraordinário, demonstra também a fragilidade do Estado Laico Brasileiro. Neste caso, os sapatos do Estado Laico são feitos de couro animal, oriundos de incontestados abates da grande indústria frigorífica. Seguem os homens brancos com sapatos, decidindo a vida dos que nem sempre puderam usá-los. Os sapatos dos Estado Laico Brasileiro são feitos de couro animal, racismo e hipocrisia.

    Ana Laura Silva Vilela é doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília, onde pesquisa o papel das lideranças religiosas femininas na construção dos direitos das comunidades tradicionais de terreiro.

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