Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
20 de Junho de 2024
    Adicione tópicos

    Um movimento antidemocrático

    Publicado por Rogério Tadeu Romano
    há 4 anos

    UM MOVIMENTO ANTIDEMOCRÁTICO

    Rogério Tadeu Romano

    I – CULTURA DO CANCELAMENTO

    Movimento que tem força principalmente nas redes sociais, a cultura do cancelamento envolve uma iniciativa de conscientização e interrupção do apoio a um artista, político, empresa, produto ou personalidade pública devido à demonstração de algum tipo de postura considerada inaceitável. Normalmente, as atitudes que geram essa onda são do ponto de vista ideológico ou comportamental.

    Nas palavras do Dicionário Macquarie, a cultura do cancelamento é “um termo que captura um aspecto importante do estilo de vida deste ano. Uma atitude tão persuasiva que ganhou seu próprio nome e se tornou, para o bem ou para o mal, uma força poderosa”. O termo é selecionado por um comitê de linguistas, especialistas e teóricos selecionados pela instituição, encabeçando uma lista de quatro que também é submetida à votação do público.

    No dicionário, a palavra cancelar quer dizer “eliminar ou riscar para tornar sem efeito”. É exatamente isso que a cultura do cancelamento da web propõe. Basta que uma pessoa pública ou não — apesar de que os famosos acabam sendo as principais “vítimas” — faça algo errado para que as propostas de “cancelamento” comecem a surgir.

    O movimento surgiu na onda da ascensão de reinvindicações nacionalistas e populistas.

    Estátuas são derrubadas e músicas populares e livros que, por diversas gerações foram cultuadas na sociedade, de uma hora para outra para a ser motivo de ódio e desprezo.

    Esse movimento recentemente recebeu repúdio de intelectuais nos Estados Unidos.

    Publicado na revista Harper’s, o texto lembra que não há oposição entre justiça social e liberdade de expressão e que “o melhor modo de derrotar más ideias é pela discussão e a persuasão, não por tentativas de silenciá-las ou simplesmente desejar que não existissem”.

    Segundo o site da Folha, em 8 de julho de 2020, mais de 150 intelectuais, escritores e artistas nos EUA e em outros países assinaram uma carta aberta lamentando um "clima de intolerância” vindo de “todos os lados”, não só da direita radical, e uma censura que promove a humilhação pública, em alusão à “cultura do cancelamento” —boicote a pessoas e marcas com visões e comportamentos considerados inadequados.

    Entre os 153 signatários do manifesto, estão o linguista Noam Chomsky, os escritores J.K. Rowling, Salman Rushdie, Andrew Solomon e Margaret Atwood (autora de" O Conto da Aia "), a ativista feminista Gloria Steinem, o trompetista Wynton Marsalis e o cientista político Yascha Mounk, colunista da Folha.

    O manifesto começa apoiando os protestos contra a brutalidade policial e as desigualdades raciais que explodiram nos EUA e no mundo após o assassinato de George Floyd, um homem negro desarmado, por um policial branco em Minneapolis no dia 25 de maio.

    A carta continua, porém, dizendo que “esse necessário acerto de contas” intensificou atitudes morais e compromissos políticos que tendem a “enfraquecer as normas do debate aberto e da tolerância às diferenças em favor da conformidade ideológica”.

    “Aplaudimos o primeiro acontecimento, mas também levantamos nossa voz contra o segundo”, diz o texto, que cita “uma intolerância a pontos de vista opostos, uma moda de promover a vergonha e o ostracismo públicos e a tendência de reduzir questões políticas complexas a certezas morais cegas”.

    Ainda segundo a Folha, na lista dos que assinaram, estão pessoas de espectros ideológicos diferentes, do esquerdista Noam Chomsky ao neoconservador Francis Fukuyama, de nomes tradicionalmente associados à defesa da liberdade de expressão, como Nadine Strossen, ex-presidente da União Americana das Liberdades Civis, a críticos contundentes do politicamente correto nos campi, como o linguista Steven Pinker e o psicólogo Jonathan Haidt.

    Há ainda alguns intelectuais negros, como o historiador Nell Irvin Painter, os poetas Reginald Dwayne Betts e Gregory Pardlo e o linguista John McWhorter.

    II – A TEORIA DEMOCRÁTICA DISCURSIVA

    Tal posição está correta e dentro dos ideais das teorias discursivas que surgiram desde a década de setenta do século anterior.

    Para isso, propõe-se uma distinção entre o que é válido para o sujeito (subjetivo) e para todos os seres racionais (objetivo), conceitos que Perelman (Tratado da argumentação - A nova retórica) se utiliza para delimitar seu auditório universal e particular. Já nas palavras de Kant, o assentimento é um evento em nosso entendimento que, embora possa repousar sobre fundamentos objetivos, também exige causas subjetivas na mente daquele que julga. Se este juízo é válido para qualquer pessoa, desde que seja dotada de razão, o seu fundamento é objetivamente suficiente e assentir a ele chama-se, então, convicção. Se ele possui o seu fundamento tão somente na natureza particular do sujeito, então o assentir a ele denomina-se persuasão (KANT, 1787). Aí está a principal diferença entre convicção/convencimento e persuasão: enquanto a persuasão funciona como uma verdade interna, para um único sujeito, a convicção se dá quando o mesmo assentimento, que serviu para um sujeito em particular, é comunicado e considerado válido para a razão de quaisquer seres humanos. A concordância de todos os juízos teria fundamento no objeto, daí ser considerado o conceito de objetividade, em contraponto à subjetividade (fundamento no sujeito). Segundo o autor, ainda, é só aí que se dá uma comunicação, quando o assentimento pode ser creditado por todo um conjunto racional, e não subjetivo. Nada posso afirmar, isto é, declarar como um juízo necessariamente válido para qualquer pessoa, senão aquilo que tem como efeito uma convicção. Posso guardar uma persuasão para mim no caso de me sentir bem assim, mas não posso nem devo pretender torná-la válida fora de mim (KANT, 1787).

    Para Kant (1800), já no que diz respeito à lógica, considera que a convicção pode ser tanto uma certeza lógica como quando nos convencemos através de provas objetivas, ou quando já possuímos uma convicção “prática”, baseada em crenças morais. Já a persuasão seria um convencimento não suficiente, construindo-se, assim, apenas uma opinião. A persuasão forma-se a partir de opiniões, enquanto o convencimento pode ser tanto baseado em um saber – convicção lógica – quanto em uma crença – convicção prática. Kant (1798) inclusive afirma que não se pode opinar sobre juízos derivados de razão pura ou de moralidade, já que deles são exigidos o princípio da universalidade. Kant introduz uma ideia interessante ao associar a convicção ou convencimento à validade universal, mas mantém o dualismo platônico entre emoção e razão, como duas faculdades inscritas na alma humana, relacionando o primeiro termo a algo puramente privado e incomunicável, fruto de um sentimento meramente subjetivo – determinado por inclinações sensíveis – e ligando o segundo à razão objetiva, válida universalmente e conhecida a priori – independentemente de qualquer elemento empírico.

    Dentro do contexto democrático há de se ressaltar o diálogo e a persuasão pela utilização de melhores argumentos, fugindo-se a sofismas.

    Para Habermas, direitos humanos e princípio da soberania formam as ideias sobre as quais ainda é possível justificar o direito moderno. Conforme ele, as tradições políticas liberais e republicanas concebem os direitos humanos como expressão de autodeterminação moral e a soberania do povo como expressão de autorrealização ética, estabelecendo, portanto, uma relação de concorrência entre estes dois elementos.

    Para Habermas, as normas gerais de ação se ramificam em regras morais e jurídicas. Assim a autonomia moral e política são cooriginárias, podendo ser analisadas com auxílio do princípio do discurso que coloca em relevo o sentido das exigências de uma fundamentação pós-convencional. Para Habermas, esse princípio teria um conteúdo normativo, uma vez que explicita o sentido da imparcialidade de juízos práticos (para Kant, o direito é um juízo de razão prática, sendo ele um moralista, relativista nos juízos de razão pura, próprio das ciências, e dogmático nos juízos de razão prática).

    Para Habermas, o princípio do discurso é formulado do seguinte modo: são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o assentimento na qualidade de participantes de discursos racionais. O princípio do discurso explica, pois, o ponto de vista sob o qual, segundo Habermas, é possível fundamentar imparcialmente normas de ação e pressupõe que questões práticas em geral podem ser julgadas imparcialmente e decididas racionalmente pelo procedimento discursivo-argumentativo, o que funciona como critério de legitimidade das pretensões de validade levantadas.

    O princípio da democracia destina-se, pois, a amarrar um procedimento de normatização legítima do direito. Ele significa, portanto, que somente podem pretender ter validade legítima leis juridicamente capazes de ter o assentimento de todos os parceiros de direito em um processo de normatização discursiva. O princípio da democracia contém, desta forma, o sentido performativo intersubjetivo necessário da prática da autodeterminação legítima dos membros do direito que se reconhecem como membros iguais e livres de uma associação intersubjetiva estabelecida livremente.

    Na lição de Habermas, o princípio da democracia pressupõe preliminarmente e necessariamente a possibilidade da decisão racional de questões práticas a serem realizadas no discurso, da qual depende a legitimidade das leis.

    III – O OVO DA SERPENTE DO AUTORITARISMO

    No Brasil, a colunista da Veja, Vilma Gryzinski, disse que “a ideologia identitária é o berço onde são chocados os ovos da serpente. Em nome da justiça social, promove ativamente a censura, a vitimização e a culpabilização em massa”.

    Disse ainda Vilma Gryzinski: “Com a cumplicidade amedrontada dos líderes que deveriam honrar seus postos, “editores são demitidos por publicar artigos controversos, livros são cancelados por suposta inautenticidade, jornalistas proibidos de escrever sobre determinados assuntos, professores são investigados por citar obras da literatura em classe, um pesquisador é demitido por circular um estudo acadêmico com revisão de pares.”

    É a luz desse entendimento que se propõe soluções nesses tempos de manifestações contestatórias que, partindo de uma ideia de justiça social, acabem por violentar direitos que se firmaram anteriormente.

    A livre opinião é dilacerada diante de movimentos que a pretexto de justiça social, não suportam conviver com ideias diferentes.

    De toda sorte, deve-se ver com cautela um movimento cujos excessos estão levando as pessoas a serem silenciadas de uma nova maneira, de forma a se ter um “acerto de contas”, que afronta aos padrões do bom diálogo democrático.

    Esse “cala a boca” afronta a democracia.

    • Publicações2340
    • Seguidores675
    Detalhes da publicação
    • Tipo do documentoNotícia
    • Visualizações423
    De onde vêm as informações do Jusbrasil?
    Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/um-movimento-antidemocratico/878054145

    Informações relacionadas

    Anajarino Júnior, Advogado
    Artigosano passado

    Os atos antidemocráticos contra os três poderes da República Federativa do Brasil: uma análise dos desafios à democracia e à constituição

    Beatriz Sales, Advogado
    Artigoshá 3 anos

    Modelo: Relatório de audiência

    Gisele Leite, Juiz de Direito
    Artigoshá 7 anos

    O que vem a ser diálogo?

    1 Comentário

    Faça um comentário construtivo para esse documento.

    Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)