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6 de Maio de 2024
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    Venezuela: um pouquinho de coerência?

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Falar de direitos humanos na Venezuela é um daqueles assuntos que me faz sentir solitário no Brasil atual. No discurso que predomina na esquerda, onde atua a maior parte das pessoas que lutam por uma sociedade livre, justa, diversa e inclusiva; o tema parece causar uma miopia coletiva. As secretarias internacionais do PT, PC do B e PSOL rasgam seda de amor acrítico pelos bolivarianos, quase como se desejando que tivéssemos lidado com os ‘nossos’ “golpistas” da mesma forma.

    Já entre os críticos das arbitrariedades cometidas pelo governo venezuelano e a deterioração da crise econômica do país, acabo mal acompanhado por aqueles que apoiariam, por aqui, a mesma estirpe de medidas draconianas se fossem feitas contra militantes de esquerda. Num país embebido pelo discurso polarizado; aprendemos a ver nossos vizinhos por lentes vermelhas ou amarelas; numa dualidade de paraíso e inferno, que francamente não ajuda ninguém.

    Já fiz, em um artigo publicado no Justificando[1], uma análise dessa névoa espessa que invade o discurso público. No mesmo artigo, trouxe uma perspectiva técnica de direitos humanos; citando os pareceres de respeitadas organizações de direitos humanos a nível global; e dos mecanismos internacionais de direitos humanos da ONU e da OEA. Não são acima de crítica, mas utilizam a metodologia internacionalmente reconhecida como melhores práticas para aferir a situação de direitos humanos de um país.

    Leia também: Polarização no Brasil cria névoa sobre a crise de direitos humanos na Venezuela

    O artigo data de 18 de agosto de 2017, e já não reflete a situação corrente do país; que se deteriorou ainda mais. Com a vitória de Maduro nas eleições presidenciais do país; uma nova leva de fatos e denúncias sobre a legitimidade do pleito volta à evidência no imaginário nacional. Mais uma vez; falamos da ‘ditadura’ venezuelana, do perigo econômico do “comunismo” lá aplicado; e da falta de legitimidade do pleito; hora representado como fraudulento; hora como incontestável prova da pujança democrática do país e do amor inabalável do povo venezuelano por seu governante.

    O mesmo relatório critica a “não-validação” de diversos partidos oposicionistas por motivos arbitrários, validando apenas 17 partidos (12 dos quais compõe a base do governo), comparado a 67 partidos na eleição de 2016. A Comissão também critica os critérios de desqualificação de candidatos; com prazos arbitrários estabelecidos para esse fim, que levou a um número recorde de candidatos declarados inelegíveis. Também criticam os prazos e falta de divulgação que impediram cerca de 1.9 milhões de venezuelanos jovens que estariam habilitados a votar, junto com a falta de sufrágio para o fluxo de venezuelanos que fugiram do país por questões de direitos humanos.

    É importante, no contexto da esquerda brasileira, lembrar que o relatório de 2017, de tom semelhante[3], leva as assinaturas do Ex-Ministro Paulo Vannuchi, enquanto Comissionado; e do Ex-Secretário Nacional de Justiça, Paulo Abrão; enquanto Secretário Executivo. Ambos são respeitadíssimos defensores de direitos humanos, e ocuparam pastas importantes nos governos Lula e Dilma. O órgão em si teve participação importante em vitórias de direitos humanos no contexto brasileiro; como o caso Maria da Penha – que deu origem a lei homônima – e os casos Ximenes Lopes e Gomes Lund. Nada deve ser lido acriticamente; mas dispensar como se fossem de “marionetes ianques” essas objeções, é falta de coerência intelectual.

    Falemos também do contexto de direitos humanos na qual a eleição foi disputada. Já em 2017, houve crescentes pronunciamentos de experts independentes da ONU manifestando preocupação com a degradação da situação. Isso inclui uma manifestação conjunta de várias relatorias contra o uso de detenção sistemática de manifestantes e o uso crescente de tribunais militares para julgar civis.[4] O relatório técnico apresentado pelo Alto-Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH) documentou “extensas violações de direitos humanos pelas autoridades nacionais no contexto de manifestações”, categorizando como “sistemática” o uso de força excessiva e prisão arbitrária de manifestantes.

    O relatório deixa claro que a repressão de manifestações passa dos excessos pontuais das forças de segurança; mostrando intenção específica de dissuadir as manifestações, dando assim sinal de uma política sistemática de repressão. Isso pressupõe culpabilidade ou extrema omissão por parte do alto-escalão do governo. Não é questão de ter, como muitas vezes temos por aqui, uma polícia truculenta; mal-treinada, impune por seus excessos – é a repressão da dissidência, planejada e executada pelo governo enquanto política pública.

    Já em Março de 2018, o Alto-Comissário Zeid Al-Hussein passou a recomendar a criação de uma Comissão de Inquérito pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, dizendo-se alarmado com a erosão de instituições democráticas no país. Ele chega a cogitar se as centenas de assassinatos extra-judiciais, prisões e tortura no contexto do conflito político atingem o nível de “crimes contra a humanidade”, previstos no estatuto do Tribunal Penal Internacional (TPI). A promotora do TPI, Fatou Bensouda, já inclusive instaurou inquérito preliminar para averiguar essa possibilidade, fazendo da Venezuela o primeiro país das Américas a ser investigado pelo órgão.

    Tanto a OEA, a ONU e o Carter Center se negaram a enviar observadores internacionais para o pleito, citando falta de tempo hábil em vista do processo inusitadamente acelerado. A União Européia, o ACNUDH, e vários países da região se recusam a aceitar o resultado, que só contou com o reconhecimento significativo da Rússia e China, além dos aliados regionais Cuba, Nicarágua e Equador. Na falta dessa boa fé internacional; e na falta de mecanismos críveis de investigação internas de denúncias de fraudes; as acusações de compra de votos; mudanças arbitrárias de zonas eleitorais, e manipulação das urnas, não podem ser apuradas de forma crível.

    Já passou da hora de abordarmos essa questão com mais coerência. A militância de esquerda pró-Venezuela, de um lado; e os comentaristas da Rede Globo, de outro; terão que adotar uma postura coerente – afinal, uma eleição é legítima quando um ou mais candidatos são proibidos de concorrer, após um processo criticado internacionalmente por não atender parâmetros mínimos de direitos humanos?

    (Dica: a resposta deve ser aplicável em todos os países do mundo.)

    Não importa a ideologia – repressão sistemática de manifestações, julgamento de civis por tribunais militares, intimidação por milicianos; são coisas que deveríamos querer ver extirpadas do mundo. São hipócritas os que usam a Venezuela como isca para evitar discutir as questões de direitos humanos no Brasil, como se a comparação fosse apta. Porém, a hipocrisia de quem aceita o autoritarismo quando ele “vem pela esquerda” nada mais faz do que empoderar tal discurso. As vozes coerentes devem prevalecer.

    Leonardo Nader é doutorando em Direitos Humanos e Política Global pela Scuola Superiore Sant’anna, em Pisa, na Itália. É mestre em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela UPEACE e pela Universidade de Oxford.

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/venezuela-um-pouquinho-de-coerencia/588449802

    1 Comentário

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    Até que você se esforçou para escrever um texto coerente ... mas seu veio esquerdista não deixou.

    "No discurso que predomina na esquerda, onde atua a maior parte das pessoas que lutam por uma sociedade livre, justa, diversa e inclusiva" ... essa é a mesma esquerda que apoia um governante que manda o exército sufocar com violência e matança a população que vai às ruas? Que arma milicias para cometerem crimes?

    - Sim. Afinal o próprio PT declarou isso em resolução. Queriam interferir nas carreiras militares para oprimir os protestos contra Dilma e o PT. Apoiam Angola, Nicarágua, Cuba, Venezuela e Bolívia. Nunca lutaram pela democracia, mas por uma ditadura nos moldes leninista-marxista. Olha o "exército de Stédile".

    "acabo mal acompanhado por aqueles que apoiariam, por aqui, a mesma estirpe de medidas draconianas se fossem feitas contra militantes de esquerda" ... Treze vezes ... esse foi o número a mais de manifestantes a favor do impeachment de Dilma, e não se vê uma única manifestação com violência. Já os eternos autovitimizados esquerdistas até incendiaram um ministério ... mas isso pra eles é democracia ... agora piche a parede da sede do PT pra ver o esperneio.

    E ainda chora querendo comparar Lula aos oposicionistas presos na Venezuela. Lula foi condenado em duas instâncias e teve seus recursos negados no STJ e STF além da ONU ... ah, já sei, a ONU é "golpista".

    Aqui no Brasil as eleições podem ser fiscalizadas por diversos órgãos internacionais, já na Venezuela apenas os órgãos chavistas o fazem ... por que será? Por que será que o voto está vinculado ao "Cartão da Pátria"? ... Talvez porque lá o salário não dê mais do que um único prato de comida.

    Pois é, apesar de se esforçar em manter uma coerência, esse discurso "morde e assopra" não convence. Até mesmo a China cortou o dinheiro pra Venezuela. Mas ainda resta o "às" na manga: por a culpa nos EUA. continuar lendo