Zuenir Ventura diz que já amava o Piauí antes de vir aqui
Acabo de voltar de Teresina lembrando o que a gente às vezes esquece: não dá para entender o Brasil prestando atenção apenas em Brasília e sem conhecer os vários Brasis que o compõem. De perto, as partes costumam desmentir o todo. É a terceira visita que faço à capital piauiense, que, segundo o estereótipo, é uma das mais quentes e pobres do país. Ah, sim, e produz caju e o refresco cajuína. Pronto, e é tudo.
Carregados dos preconceitos etnocêntricos que nos fazem acreditar que não há vida inteligente fora do eixo Rio ? São Paulo, nos surpreendemos quando vemos um auditório superlotado de 700 jovens ouvindo papos literários, como aconteceu no Salão do Livro do ano passado, ou quando esta semana, durante duas noites, 400 alunos e professores disputaram lugares para nos ouvir, Ana Miranda, Ivan Ângelo e Nirlando Beirão, falando de crônica.
Isso talvez explique a existência de tantos escritores na terra de Da Costa e Silva e Assis Brasil. Não é em qualquer lugar que se pode encontrar um livro só sobre os que se foram antes, como ?Sociedade dos poetas trágicos ? Vida e obra de 10 poetas piauienses que morreram jovens?, de Zózimo Tavares. Entre eles estão dois personagens inovadores: Mário Faustino, morto em 1962, com 32 anos, num desastre de avião, e Torquato Neto, que se suicidou em 72, aos 28 anos. Com o primeiro trabalhei e do segundo fui amigo.
Crítico e poeta, Faustino deixou apenas um livro, ?O homem e sua hora? (?Não morri de mala sorte/Morri de amor pela morte?), mas mantinha uma polêmica página de vanguarda no suplemento do ?Jornal do Brasil?, onde experimentava e apontava novos caminhos estéticos. O Concretismo lhe deve bastante. Como disse Haroldo de Campos, ?ele fez o mais ágil e inteligente jornalismo literário que jamais vi entre nós?.
Compositor e jornalista, Torquato também só deixou um livro, editado após sua morte por Wally Salomão, ?Os últimos dias de Paupéria?, mas esteve na origem do Tropicalismo, o qual fecundou com idéias e algumas das mais poéticas letras do movimento, como ?Geléia geral?, ?Soy loco por ti América? (com Capinam), ?Louvação? e ?Rancho da rosa encarnada? (com Gilberto Gil), ?Pra dizer adeus? (com Edu Lobo), ?Mamãe coragem? (com Caetano Veloso), entre muitas outras.
Na véspera de voltar, quis revisitar a Praça do Liceu. Ali, em 72, encontrei Torquato, sem suspeitar que seria o nosso último abraço. Pouco depois, ele conseguia no Rio o que já tentara quatro vezes: suicidar-se. Já passava da meia-noite e Luiza, cantora da cidade, entoou a capela para o grupo o lindo poema musical que Caetano fez em homenagem ao amigo, aquele que fala da ?cajuína cristalina em Teresina? e que começa com uma interrogação metafísica: ?Existirmos ? a que será que se destina?? Nunca tinha tomado cajuína. Gostei mais do suco de bacuri do seu Abraão. Não rima, mas foi um dos melhores sabores que já provei.
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