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25 de Maio de 2024

Cardápios definidos por lei: o PL 3.292/20 que altera o PNAE.

A tramitação do PL que altera a essência do PNAE

Publicado por Emanuel Ramalho
há 3 anos


  O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) há mais de meio século é instrumento de proteção ao direito à alimentação, além de garantia de segurança alimentar. Seu histórico envolve mudanças na titulação do programa e aperfeiçoamento de suas bases operacionais – como ocorre com as instâncias deliberativas locais e participação fundamental do profissional de nutrição.

  Contudo, nem todas as alterações de seu texto estão voltadas ao fortalecimento do programa. Em 2020 teve início a tramitação do PL 3292/20, de autoria do Dep. Federal Victor Hugo (PSL-GO), propondo alterações na Lei 11.947/09, tendo sido aprovada na Câmara dos Deputados (BRASIL, 2021) e enviada para o Senado.

  Sob a justificativa de valorização da agricultura familiar e de aquisição de alimentos saudáveis, a proposta visa garantir que, em cada aquisição de leite com recursos do programa, no mínimo 40% seja na forma líquida; e somente em algumas situações -também estabelecidas no projeto – haveria a possibilidade de compra do leite em pó.

  Além disso, outras alterações propostas impõem mudanças significativas na essência do PNAE, como se dá com perda de prioridade da agricultura familiar assentada, indigna e quilombola nas aquisições do programa, como demonstrado no quadro comparativo a seguir:


Fonte: BRASIL (2020); Elaboração do autor.

Fonte: BRASIL (2020); Elaboração do autor.


Fonte: BRASIL (2020); Elaboração do autor.


Fonte: BRASIL (2020); Elaboração do autor.

Inserção do art. 14-A

  Art. 14-A. No mínimo 40% (quarenta por cento) dos recursos repassados pelo FNDE, no âmbito do PNAE, e utilizados para a aquisição de leite deverão referir-se à forma fluida do produto adquirido de estabelecimentos locais produtores de laticínio devidamente registrados no serviço de inspeção federal, estadual ou municipal, conforme o caso.

§ 1º A aquisição de que trata o caput deste artigo poderá ser realizada com dispensa de procedimento licitatório, desde que os preços sejam compatíveis com os vigentes no mercado local, observados os princípios previstos no art. 37 da Constituição Federal, e que sejam atendidas as exigências do controle de qualidade estabelecidas pelas normas atinentes ao produto.

§ 2º Na impossibilidade de aquisição do leite na forma fluida e de estabelecimento local produtor de laticínio ou de Município adjacente, poderá ser adquirido leite em pó, desde que seja produzido no Brasil e com matéria-prima nacional, proibida a aquisição em estabelecimentos responsáveis apenas pela manipulação e embalagem do produto final.

§ 3º A observância do percentual previsto no caput deste artigo será disciplinada pelo poder público e poderá ser dispensada quando presente uma das seguintes circunstâncias:

I - impossibilidade de emissão do documento fiscal correspondente;

II - inviabilidade de fornecimento regular e constante;

III – inadequação das condições higiênicas e sanitárias; ou

IV - inexistência de estabelecimento produtor de laticínio nas proximidades da região em que será fornecida a alimentação escolar ou de estabelecimentos nacionais produtores diretos de leite em pó, na forma de regulamento.”

  Como observado acima, a prioridade (expressa na redação atual) para aquisição de produtos oriundos de agricultores familiares assentados, indígenas e quilombolas foi suprimido, equiparando tais sujeitos às demais que compõem a categoria – agricultura familiar.

  Embora não haja imposição quanto a aquisição do produto (leite), o projeto obriga que, em havendo interesse na aquisição deste gênero, seja feita no percentual mínimo de 40%; abrindo margem para que outros setores se movimentem para buscar apoio de parlamentares para a inclusão de reservas de mercados às custas dos recursos do PNAE (BRASIL, 2021b)

Pontos controversos

  Diante das intenções trazidas pelo projeto de lei, é preciso ressaltar que novamente o PNAE se vê ameaçado em sua essência, sobretudo com a possibilidade de definir o cardápio por meio de leis (OAE, 2021). Além disso, para além da reserva de mercado criada – e com possibilidade de abertura de precedentes para lobbys futuros -, deve haver atenção para o comprometimento da autonomia do profissional de nutrição junto ao programa. O nutricionista atua na operacionalização do PNAE norteado pela cultura alimentar e produção, sazonalidade e diversificação, dentre outros elementos essenciais para a composição dos cardápios. O que ocorre diante das definições legislativas que padronizam e, de certa forma, limitam a atuação do nutricionista é o comprometimento do olhar para as especificidades locais, para as realidade vividas por cada comunidade envolvida no programa, sobretudo quando se leva em consideração a abrangência na operação do programa – presente em todas as regiões do país.

  Outras questões ainda podem ser postas para fins de análise crítica do projeto, quais sejam: falta de diálogo e abertura de propostas junto aos gestores municipais e estaduais; retirada de liberdade e autonomia dos gestores locais na operacionalização do programa; tentativa de usar o orçamento do PNAE para beneficiar um setor específico, sem preocupação com o fortalecimento do programa.

  No âmbito da organização parlamentar ligada ao setor patronal da agropecuária, há, em outros termos, preocupações corporativistas que tiveram voz ativa na redação final do texto que foi aprovado. O texto original fora apresentado da seguinte forma:

I - o emprego da alimentação saudável e adequada, compreendendo o uso de alimentos variados, seguros, que respeitem a cultura, as tradições, os hábitos alimentares saudáveis e nutritivos, cuja elaboração contemple uma maior diversidade de alimentos, sendo reduzida a oferta de alimentos ultraprocessados, contribuindo para o crescimento e o desenvolvimento dos alunos e para a melhoria do rendimento escolar, em conformidade com a sua faixa etária e seu estado de saúde, inclusive dos que necessitam de atenção específica (BRASIL, 2020, grifo nosso).

  O texto original protocolado na câmara previa a substituição de itens processados na alimentação escolas quando utilizados recursos do PNAE. Entretanto, conforme andamento da proposta na Câmara, a redação proposta no art. 2º, inciso I, perdeu tal previsão. Não por acaso em manifestação e orientação de seus membros, a Frente Parlamentar da Agropecuária criticou veementemente a inserção do termo “ultraprocessados”, sob o argumento de que a terminologia gera preconceito quanto aos produtos industrializados, prejudicando seguimentos produtivos (FPA, 2021).

  Como visto anteriormente, a retirada do termo foi acolhida e o texto foi aprovado, seguindo para o Senado com os pontos controvertidos e sem consenso no âmbito dos que operacionalizam o programa em uma país de proporções continentais – e com particularidades a serem enfrentadas localmente.

Referências

BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 3292/20. Texto original. Disponível em: https://www.câmara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1903721. Acesso em: 07 mai. 2021.

BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Parecer da Comissão de Educação sobre o Projeto de Lei nº 3292/20. Disponível em: https://www.câmara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2280479. Acesso em 07 mai. 2021.

FPA – Frente Parlamentar da Agropecuária. Resumo Executivo – PL nº 3292 de 2020. Disponível em: https://fpagropecuaria.org.br/resumos-executivos/proposicoes-legislativas/cd-pl-3292-2020/. Acesso em: 08 mai. 2021.

OAE – Observatório da Alimentação Escolar. Carta ao Deputado Arthur Lira. Disponível em: https://alimentacaoescolar.org.br/media/notastecnicas/documentos/CartaDepLiraPL_PNAE.docx.pdf. Acesso em 08 mai. 2021.

  • Sobre o autorAdvogado pesquisador em causas indígenas, agrárias e povos tradicionais.
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