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2 de Maio de 2024

Escapando da Realidade com a Tv Globo do Brasil

Materia Veiculada no Jornal The New York Times

há 8 anos

Por Vanessa Barbara

Escapando da Realidade com a Tv Globo do Brasil

No ano passado, a revista “The Economist” publicou um artigo sobre a Rede Globo, a maior emissora do Brasil. Ela relatou que “91 milhões de pessoas, pouco menos da metade da população, a assistem todo dia: o tipo de audiência que, nos Estados Unidos, só se tem uma vez por ano, e apenas para a emissora detentora dos direitos naquele ano de transmitir a partida do Super Bowl, a final do futebol americano”.

Esse número pode parecer exagerado, mas basta andar por uma quadra para que pareça conservador. Em todo lugar aonde vou há um televisor ligado, geralmente na Globo, e todo mundo a está assistindo hipnoticamente.

Sem causar surpresa, um estudo de 2011 apoiado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apontou que o percentual de lares com um aparelho de televisão em 2011 (96,9) era maior do que o percentual de lares com um refrigerador (95,8) e que 64% tinham mais de um televisor. Outros pesquisadores relataram que os brasileiros assistem em média quatro horas e 31 minutos de TV por dia útil, e quatro horas e 14 minutos nos fins de semana; 73% assistem TV todo dia e apenas 4% nunca assistem televisão regularmente (eu sou uma destes últimos).

Entre eles, a Globo é ubíqua. Apesar de sua audiência estar em declínio há décadas, sua fatia ainda é de cerca de 34%. Sua concorrente mais próxima, a Record, tem 15%.

Assim, o que essa presença onipenetrante significa? Em um país onde a educação deixa a desejar (a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico classificou o Brasil recentemente em 60º lugar entre 76 países em desempenho médio nos testes internacionais de avaliação de estudantes), implica que um conjunto de valores e pontos de vista sociais é amplamente compartilhado. Além disso, por ser a maior empresa de mídia da América Latina, a Globo pode exercer influência considerável sobre nossa política.

Um exemplo: há dois anos, em um leve pedido de desculpas, o grupo Globo confessou ter apoiado a ditadura militar do Brasil entre 1964 e 1985. “À luz da História, contudo”, o grupo disse, “não há por que não reconhecer, hoje, explicitamente, que o apoio foi um erro, assim como equivocadas foram outras decisões editoriais do período que decorreram desse desacerto original”.

Com esses riscos em mente, e em nome do bom jornalismo, eu assisti a um dia inteiro de programação da Globo em uma terça-feira recente, para ver o que podia aprender sobre os valores e ideias que ela promove.

A primeira coisa que a maioria das pessoas assiste toda manhã é o noticiário local, depois o noticiário nacional. A partir desses, é possível inferir que não há nada mais importante na vida do que o clima e o trânsito. O fato de nossa presidente, Dilma Rousseff, enfrentar um sério risco de impeachment e que seu principal oponente político, Eduardo Cunha, o presidente da Câmara, está sendo investigado por receber propina, recebe menos tempo no ar do que os detalhes dos congestionamentos. Esses boletins são atualizados pelo menos seis vezes por dia, com os âncoras conversando amigavelmente, como tias velhas na hora do chá, sobre o calor ou a chuva.

A partir dos talk shows matinais e outros programas, eu aprendi que o segredo da vida é ser famoso, rico, vagamente religioso e “do bem”. Todo mundo no ar ama todo mundo e sorri o tempo todo. Histórias maravilhosas foram contadas de pessoas com deficiência que tiveram a força de vontade para serem bem-sucedidas em seus empregos. Especialistas e celebridades discutiam isso e outros assuntos com notável superficialidade.

Eu decidi pular os programas da tarde –a maioria reprises de novelas e filmes de Hollywood– e ir direto ao noticiário do horário nobre.

Há dez anos, um âncora da Globo, William Bonner, comparou o telespectador médio do noticiário “Jornal Nacional” a Homer Simpson –incapaz de entender notícias complexas. Pelo que vi, esse padrão ainda se aplica. Um segmento sobre a escassez de água em São Paulo, por exemplo, foi destacado por um repórter, presente no jardim zoológico local, que disse ironicamente “É possível ver a expressão preocupada do leão com a crise da água”.

Assistir à Globo significa se acostumar a chavões e fórmulas cansadas: muitos textos de notícias incluem pequenos trocadilhos no final ou uma futilidade dita por um transeunte. “Dunga disse que gosta de sorrir”, disse um repórter sobre o técnico da seleção brasileira. Com frequência, alguns poucos segundos são dedicados a notícias perturbadoras, como a revelação de que São Paulo manteria dados operacionais sobre a gestão de águas do Estado em segredo por 25 anos, enquanto minutos inteiros são gastos em assuntos como “o resgate de um homem que se afogava causa espanto e surpresa em uma pequena cidade”.

O restante da noite foi preenchido com novelas, a partir das quais se pode aprender que as mulheres sempre usam maquiagem pesada, brincos enormes, unhas esmaltadas, saias justas, salto alto e cabelo liso. (Com base nisso, acho que não sou uma mulher.) As personagens femininas são boas ou ruins, mas unanimemente magras. Elas lutam umas com as outras pelos homens. Seu propósito supremo na vida é vestir um vestido de noiva, dar à luz a um bebê loiro ou aparecer na televisão, ou todas as opções anteriores. Pessoas normais têm mordomos em suas casas, que são visitadas por encanadores atraentes que seduzem donas de casa entediadas.

Duas das três atuais novelas falam sobre favelas, mas há pouca semelhança com a realidade. Politicamente, elas têm uma inclinação conservadora. “A Regra do Jogo”, por exemplo, tem um personagem que, em um episódio, alega ser um advogado de direitos humanos que trabalha para a Anistia Internacional visando contrabandear para dentro dos presídios materiais para fabricação de bombas para os presos. A organização de defesa se queixou publicamente disso, acusando a Globo de tentar difamar os trabalhadores de direitos humanos por todo o Brasil.

Apesar do nível técnico elevado da produção, as novelas foram dolorosas de assistir, com suas altas doses de preconceito, melodrama, diálogo ruim e clichês.

Mas elas tiveram seu efeito. Ao final do dia, eu me senti menos preocupada com a crise da água ou com a possibilidade de outro golpe militar –assim como o leão apático e as mulheres vazias das novelas.

Fonte: The New York Times

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67 Comentários

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A TV Globo se arvora com o poder de alterar costumes. Infelizmente, produtores diretores e autores contratados pela Globo pertencem àquela parcela da sociedade que até bem pouco tempo eram considerados à margem dos bons costumes.
Hoje, formaram opiniões distorcidas e imorais sobre costumes. Deixaram do lado artístico para se tornarem ativistas. Apenas para exemplificar, a lei dos chamados crimes hediondos foi votada e aprovada por que uma autora de novelas da Globo teve sua filha morta. Antes disso, as milhares de mortes de meninas, em iguais condições, não representavam nada. Bastou a filha dela ser vitimada para mobilizar toda a emissora, somente porque a autora global queria uma punição mais severa para os autores do crime. Na filha dos outros qualquer punição servia, para a filha dela tinha que ser muito mais rigorosa. Sem contar que na Tribuna do Júri, nas primeiras fileiras estavam presentes a nata dos "cast" artístico da Globo, deixando os jurados "maravilhados" com o queixo caído ante a presença deles. Não que eu esteja defendendo os autores do crime, mas é apenas um exemplo de como esta classe formadora de opiniões age, como se fossem os únicos donos da verdade. O jornalismo praticado, não só pela Globo, mas de outras emissoras, também, ativistas, chega a ser nojento. Foge da informação para a opinião pessoal do editor repercutida por milhares de pessoas. Resumindo, é o exemplo de como a mídia não deve ser. continuar lendo

Concordo. E o pior é que outras emissoras tentam copiar esse estilo da TV Globo. continuar lendo

Pois é, só que como a lei penal não pode retroagir, os autores do crime em questão não poderiam ser por ela atingidos. Os motivos da lei podem não ter sido os mais corretos, mas pela primeira vez se questionou de fato a fragilidade da mulher frente a esse tipo de crime. Ela não foi a primeira mulher famosa vítima de crime de morte, mas teve uma repercussão importante frente à mídia que forçou um agravamento das penas para crimes futuros. Autor desse tipo de crime não é uma vítima da sociedade, é alguém cruel, que se julga no direito de tirar uma vida. Deve, sim, ser tratado com maior rigor. continuar lendo

Olga Penno Crespo, sinceramente seu comentário é confuso na ideia técnica que você pretendeu passar no início do seu texto e eu, mesmo mestrado em ciências penais, não consegui alcançar sua equivocada afirmação

Seu comentário destoa do foco emprestado ao tema e, retrata mais um desabafo ou apelo de ativismo feminista, completamente impertinente a postagem.

Infelizmente em um país onde a imbecilidade se tornou natural e a razão escassa, acontece esse tipo de distorção, gerando, inclusive, comentários completamente destoados ao tema e a postagem, gerando a abordagem de um assunto diverso e alheio ao que se deveria.

Pelo seu histórico de comentários, sugiro que aguarde um avanço maior em seus estudos de direito para não correr o risco da mediocridade. continuar lendo

Hoje posso afirmar que raramente assisto televisão.
Prefiro ler (esse costume pretendo ampliar), dedilhar o piano e meditar, assim como se fosse um monge budista, fico imóvel envolvido em meus pensamentos e isso me faz bem.
Procuro pelas notícias durante o dia, já que fico à mercê de uma tela conectada à internet, através da qual me comunico com meus clientes e o mundo. Certo ou errado? Não sei. É assim, apenas isso.
Fui aos poucos deixando de pertencer à massa ligada na Globo e/ou outras emissoras tão ruins quanto, principalmente pela queda no nível de suas programações, quando por questões obvias comerciais optaram por fazer televisão popular. Passaram a usar o seu poder de convencimento para moldar a sociedade ao seu estilo e a seu gosto. Transformaram obras primas em noveletas onde a realidade se cria e se modifica, onde o modismo impera, onde os valores são apenas os do dia e dos interesses próprios.
O crime virou atração (povo adora crime) e o banalizado sexo luta por sobreviver ao declínio do mesmismo e se apoia em sexualidades mil de futilidades inúmeras, onde cada vez mais a vulgaridade toma o assento onde antes reinava a família brasileira.
Hoje, a mídia constrói no agora mesmo o mundo que quer usar daqui a pouco. Esse é o poder que fica nas mãos de quem domina as telas mais conhecidas do país.
Faz a política e os políticos. Todos se curvam ao seu poder.
Cria mitos, constrói fortunas, nomeia heróis, massacra adversários, assim, apenas apertando um ponto na tela mágica do poder e da sedução.
Lendo o texto muito bem construído pelo Nadir Tarabori não tenho como não compactuar de que hoje estamos vivenciando o exemplo ativo de como a mídia não deve ser.
Simples opinião ou indiscutível constatação? continuar lendo

Parabéns compartilho do mesmo pensamento que você meu amigo!
Belas palavras! continuar lendo

Parabéns pela seu gosto pela leitura! Pactuo da mesma opinião! continuar lendo

Pessoal, meu vizinho de cima desgovernou o carro, desceu ladeira a baixo e quebrou meu muro e quebrou a parabólica que estava do outro lado do muro, como só pegava a Globo na parabólica, estou quase 2 anos sem ver a globo, estou começando a acreditar que meu vizinho me ajudou em algo. continuar lendo

Aí entra a velha questão: os espectadores são apáticos porque a TV os faz assim ou a TV é assim porque os espectadores desejam ser apáticos?

Para mim, a segunda hipótese é a mais consistente.

Quais as alternativas à Globo, na TV aberta?
Programas "policiais" que ocupam a maior parte do dia, novelas, discussões de casos familiares (leia-se "barracos cotidianos") e programas religiosos.
Televisões abertas vivem da venda de propaganda. A propaganda é mais procurada e melhor paga às TVs e horários com maior audiência.
Sabendo disso, as TVs mantém serviços em tempo real de avaliação da quantidade de espectadores, minuto a minuto.
Avaliam não só a apreciação dos espectadores em relação aos programas na grade diária, como também o interesse das pessoas a cada notícia dada num jornal, por exemplo.
Como resultado, as TVs vão se moldando ao gosto dos espectadores, procurando mostrar sempre o que os mantém com a TV ligada e sintonizada em seu canal.

A "involução" da MTV é um exemplo claro de como os espectadores mudam a programação e não necessariamente para melhor.
Por muitos anos a MTV foi basicamente um canal de música. Mas a programação também incluía debates, discussões políticas e sociais, etc.
Com o passar do tempo e os acessos à internet aos mesmos clipes e músicas, os espectadores perderam o interesse por esse tipo de conteúdo como também pelos programas de entrevistas e debates, levando a MTV a se tornar uma TV com programas de entretenimento, comportamento juvenil, comédias e "jogos", que por fim não ficavam muito atrás do que faz o programa do GuGu, Silvio Santos, Ratinho, etc.
Dessa forma se sustentou por mais um tempo mas, mesmo assim, o interesse do público foi minguando, talvez porque esses programas de entretenimento também existem nas outras TVs e num formato que permite que o público adulto também os assista (e não apenas o público juvenil, para quem o formato da MTV era dirigido).
A paulatina perda de audiência tornou inviável a continuidade da MTV.

Ou seja, por mais que seja confortável acusar as televisões de "emburrecer" o povo, na verdade, é o público que faz a TV e não a TV que faz o público. continuar lendo

Criticar a Globo é quase um esporte em determinados círculos.
A opção "progressista" proposta há alguns anos consumiu alguns bilhões de reais em TV estatal que praticamente não tem audiência.
Mas eu acho engraçado mesmo é o tamanho gigantesco da interseção entre os conjuntos "pessoas que criticam a parcialidade da Globo" e "pessoas que são contra a iniciativa escolas sem partido".
É dizer, quando a parcialidade é contra o que defendem, é ruim, se não, é boa... continuar lendo