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Direito da Concorrência das Plataformas Digitais - Ed. 2022

Direito da Concorrência das Plataformas Digitais - Ed. 2022

1. Arquétipos das Experiências do Direito Norte-Americano e do Direito Comunitário Europeu Como Pontos de Referência

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Sumário:

Esta obra defende uma proposta de leitura ampliativa do mandado de repressão ao abuso de posição dominante (art. 173, § 4º, da Constituição de 1988 e art. 36, caput , inciso II, da Lei nº 12.529, de 2011), a fim de promover a inovação no controle de tais atos. Por isso, importa desvendar os elementos constitutivos e o regime jurídico correlato ao tratamento de uma modalidade específica de abuso de posição dominante no direito concorrencial brasileiro, quais sejam as condutas exclusionárias ou os abusos exclusionários.

Apesar de se tratar de conceito aberto e sujeito a elevado grau de indefinição jurídica, as condutas ou os abusos exclusionários podem ser compreendidos como práticas anticompetitivas – na forma de contratos, estratégias comerciais etc. – que visam à obtenção ou à manutenção de posição dominante por meio da imposição de dificuldades à entrada, ao funcionamento ou à expansão de mercado de concorrentes atuais ou potenciais 1 . Conforme será discutido detalhadamente neste Capítulo, o tratamento de práticas exclusionárias constitui, sem dúvidas, a área da política de defesa da concorrência em que se verificam as maiores controvérsias no contexto mundial, seja pela ausência de uniformidade de modelos econômicos, seja pelas divergências nos critérios jurisprudenciais desenvolvidos e aplicados pelas autoridades antitruste 2 . Nesse campo, há intensa e constante disputa acerca de quais devem ser os standards jurídicos apropriados para a avaliação dessas práticas. Tais controvérsias tornam-se mais sofisticadas no contexto da repressão ao abuso de posição dominante de plataformas digitais.

Diante dos dissensos teóricos sobre a natureza jurídica do abuso de posição dominante – e para que fiquem claras as premissas da proposta de remodelação do controle de condutas exclusionárias veiculada neste livro – é indispensável examinar e esclarecer quais são os critérios substantivos (substantive standards) e os critérios jurídicos (legal standards) que informam a repressão de condutas exclusionárias no direito concorrencial brasileiro 3 .

Para que não pairem dúvidas, deve-se assentar, desde logo, em que sentido esses dois termos são empregados nesta pesquisa. O critério substantivo (substantive standards) da ilicitude consiste no objetivo ou no valor normativo que define a ilicitude da prática exclusionária. Na tradição norte-americana, por influência da Escola de Chicago, a percepção majoritária define que o objetivo ou o valor de bem-estar do consumidor – no sentido de consumer welfare ou total welfare – constitui o único standard substantivo válido para a intervenção antitruste. No direito comunitário europeu, ao contrário, há outros critérios substantivos disponíveis, como a proteção do processo competitivo ou a integração do mercado comum. Por seu turno, o standard jurídico corresponde ao conjunto de regras e métodos jurídicos utilizados pela autoridade antitruste para concluir se determinada conduta potencialmente abusiva deve ou não ser considerada ilícita. Os principais standards jurídicos conhecidos são o regime per se e o regime da regra da razão (rule of reason), embora existam diversos outros standards intermediários.

O desvendamento dos critérios substantivos e jurídicos será feito tomando-se como ponto de referência as experiências do antitruste nos sistemas norte-americano e europeu (item 1). Nesse aspecto, embora algumas vozes da doutrina nacional identifiquem maior aproximação do tratamento dado às condutas unilaterais e às restrições verticais no direito brasileiro à tradição do direito comunitário europeu, é possível observar que existem particularidades na definição dos critérios substantivos de fundamentação jurídica à repressão ao abuso de posição dominante que ultrapassam essa equiparação. A partir da identificação dos critérios substantivos e jurídicos que imperam no controle concorrencial de condutas abusivas nos sistemas antitruste norte-americano e europeu, pretende-se, neste Capítulo, esclarecer a natureza jurídica do abuso de posição dominante no quadro da Lei de Defesa da Concorrencia, tanto em termos do objetivo constitucional da proibição, quanto dos elementos normativos da noção de abuso (item 2). Em seguida, será brevemente discutido como, na prática, o CADE tem empregado esses critérios legais no tratamento de condutas unilaterais e restrições verticais exclusionárias (item 3).

1. Arquétipos das experiências do direito norte-americano e do direito comunitário europeu como pontos de referência

O tratamento de condutas exclusionárias constitui a área da política de defesa da concorrência em que se verificam as maiores controvérsias jurídicas, seja pela ausência de uniformidade de modelos econômicos que sirvam de base para a interpretação dos textos legais, seja pelas divergências nos critérios jurisprudenciais desenvolvidos e aplicados pelas autoridades antitruste 4 . A despeito de essa discussão assumir particularidades no âmbito de cada legislação nacional, as experiências norte-americana e comunitária europeia são comumente apontadas na literatura como dois arquétipos contrapostos 5 . As divergências entre os dois sistemas são significativas e podem ser atribuídas às diferentes raízes históricas das legislações, aos diferentes designs institucionais de tomada de decisão pelas autoridades e de revisão judicial e, principalmente, às diferentes concepções sobre as finalidades da política de defesa da concorrência 6 .

Compreender essa suposta dissociação de objetivos da repressão de condutas unilaterais afigura-se fundamental para as discussões sobre a análise antitruste de plataformas digitais, na medida em que parte significativa da literatura contemporânea tem buscado justificar os resultados divergentes das investigações contra as big techs nos dois lados do Atlântico, alegando justamente que, nos sistemas norte-americano e europeu, a intervenção antitruste visaria à proteção de valores não coincidentes ou opostos 7 . Nesse sentido, a FTC, no julgamento do caso Google Shopping , ao decidir pelo arquivamento das investigações, sustentou que “embora alguns dos rivais do Google pudessem ter perdido vendas devido a uma melhoria no produto do Google , esses efeitos adversos sobre determinados concorrentes de uma rivalidade vigorosa seriam um subproduto comum da ‘concorrência por mérito’ e do processo competitivo que a lei antitruste incentiva” (tradução livre). No mesmo diapasão, diversos autores ecoam a narrativa de que as decisões da Comissão Europeia contra plataformas digitais nos últimos anos representariam uma ode ao estruturalismo típico de um sistema que oblitera o critério do bem-estar do consumidor 8 .

Para os objetivos desta obra, faz-se relevante compreender se e como essas divergências têm implicado distintos padrões de licitude dos comportamentos abusivos das plataformas digitais. Nesse aspecto, a incursão na experiência comparada cumpre o papel de esclarecer em que medida os diferentes resultados nas investigações de abuso de posição dominante nos dois lados do Atlântico devem-se, de fato, à eleição de finalidades distintas para a política antitruste ou tão somente às diferenças marginais dos standards da análise de condutas unilaterais 9 .

Considerando que esta pesquisa propõe uma reformulação do enquadramento do abuso de posição dominante na legislação antitruste brasileira com vistas a privilegiar a proteção da inovação, há duas hipóteses sobre as divergências entre a aplicação das legislações antitruste nos sistemas norte-americano e europeu em relação às plataformas digitais que merecem ser aqui aprofundadas. A primeira estabelece que as práticas unilaterais investigadas só são condenadas no direito comunitário europeu porque a aplicação do art. 102 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) teria como finalidade precípua a preservação do processo competitivo em si, ao passo que, no direito norte-americano, a violação à seção 2 do Sherman Act demandaria demonstração de efetiva perda do bem-estar do consumidor (consumer welfare). A segunda, ainda mais central para esta pesquisa, determina que os dois sistemas enxergariam de forma distinta o papel do antitruste na promoção da inovação. Enquanto no direito comunitário europeu essa intervenção serviria para fomentar a inovação, a percepção dominante nos EUA seria de que a aplicação da lei antitruste gera maiores riscos negativos sobre tais incentivos.

O desvendamento dessas duas hipóteses servirá para que se esclareça sobre quais premissas está estruturada a proposta consubstanciada nesta tese. Consoante será demonstrado, o enquadramento jurídico dos atos de monopolização

(item 1.1) e dos atos de abuso de posição dominante (item 1.2) é bastante controvertido em ambos os sistemas, norte-americano e europeu. Além disso, cada um desses sistemas desenvolveu abordagens próprias de tratamento de condutas de exclusão sob o enfoque da concorrência dinâmica (item 1.3).

1.1. Atos de monopolização na seção 2 do Sherman Act

No direito norte-americano, as condutas exclusionárias são endereçadas a partir da etiqueta legal de atos de monopolização (monopolization practices), prevista na seção 2 do Sherman Act 10 . A despeito da centenária aplicação desse dispositivo, até hoje os atos de monopolização são fracamente definidos na jurisprudência e na doutrina, de sorte que não há uma formulação jurídica universalmente aceita 11 .

Do ponto de vista histórico, é possível situar pelo menos duas fases na jurisprudência dos Tribunais norte-americanos 12 . A primeira coincide com o período clássico do antitruste, que se inicia com a publicação do Sherman Act, em 1890, e perdura até os anos 1940. Nesse período, em que foram julgados os famosos casos Standard Oil 13 e American Tobaco 14 , os Tribunais consideravam que uma empresa poderia ser condenada pela seção 2 do Sherman Act se ela praticasse, de forma unilateral e com intenção de monopolizar um mercado, as mesmas condutas puníveis pela seção 1 do Sherman Act por meio de acordos com concorrentes 15 .

Ou seja, além de se fazer uma aproximação conceitual das duas modalidades de abuso, buscava-se examinar, a partir de fatos objetivos, se a conduta poderia ser considerada uma exteriorização de uma intenção específica de monopolizar (specific intent to monopolize), a qual poderia ser inferida quando a conduta não pudesse ser justificada com base em objetivos competitivos legítimos 16 . Essa perspectiva assumia que muitas práticas unilaterais poderiam ser consideradas per se ilegais, o que, frequentemente, reduzia a análise antitruste ao enquadramento desse teste de intenção específica.

A segunda fase histórica desenvolve-se a partir da famosa decisão do Segundo Circuito no caso Alcoa , de 1945 17 . De um lado, essa decisão pode ser identificada como o ápice de uma perspectiva típica da Escola de Harvard, na medida em que explicitamente assume que o objetivo da legislação antitruste seria a manutenção de estruturas de mercados desconcentradas 18 . Por outro, a posição do Juiz Hand marca um primeiro movimento, ainda que tímido, de abandono do uso do padrão de ilicitude per se em direção a uma abordagem de balanceamento dos efeitos 19 . A decisão ressalvava que um agente econômico monopolista poderia ser eximido de responsabilidade pela violação à seção 2 se ficasse demonstrado que o exercício do seu monopólio ocorreu por diversos fatores de superioridade econômica, tais como eficiências econômicas ou tecnológicas ou mesmo baixas margens de lucros mantidas permanentemente e sem discriminação 20 .

A jurisprudência passou a ecoar a evolução dos trabalhos da Escola de Chicago, que, a partir do início da década de 1950, argumentava que muitas práticas unilaterais de monopolização deveriam ser reputadas per se legais 21 . Essa crença estruturava-se em duas premissas principais: (i) a ideia de que as condutas unilaterais poderiam gerar eficiências econômicas; e, principalmente, (ii) a noção de que seriam raras as situações fáticas em que o agente econômico com posição dominante teria incentivo para excluir concorrentes igualmente eficientes 22 . A influência dessas construções na jurisprudência norte-americana é consistente, porém, parcial. Se por um lado a visão redentora das restrições verticais afastou padrões rígidos de legalidade e abriu caminho para a análise de eficiências, por outro, o padrão de licitude per se dessas práticas não foi incorporado na jurisprudência.

Partindo do raciocínio de balanceamento inicialmente desenvolvido no caso Alcoa , a Suprema Corte norte-americana estabeleceu, no caso Grinnell, de 1966, que a ofensa à seção 2 pressuporia a verificação de dois elementos: “(i) a detenção de poder de monopólio em um mercado relevante; e (ii) a aquisição ou manutenção intencional desse poder de mercado, o que não se confunde com o crescimento ou desenvolvimento como consequência de um produto superior, perspicácia comercial ou acidente histórico” (tradução livre) 23 . Tal tentativa de sistematização, no entanto, revelou-se imprecisa, …

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3 de Junho de 2024
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