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Direito ao Recurso no Processo Penal - Ed. 2022

Direito ao Recurso no Processo Penal - Ed. 2022

2.1.1.Direito ao Recurso do Acusador? Apontamentos Introdutórios para o Desvelamento da Distinção de Premissas

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Sumário:

Ajustadas as premissas teóricas sobre a consagração dogmática e o embasamento legislativo do direito ao recurso no processo penal, este capítulo almejará desenvolver os contornos essenciais de seu conteúdo em uma perspectiva estática. Ou seja, respondidos o “porquê” 1 e o “com base normativa em que”, deve-se partir para o questionamento sobre “o que” realmente é o direito ao recurso sobre a condenação. Tal pretensão se fundamentará em aportes doutrinários acerca da temática e, especialmente, em decisões de órgãos internacionais de proteção de direitos humanos, como o Comitê de Direitos Humanos das Organizações Unidas (CDHONU), 2 a Comissão e a Corte Interamericanas de Direitos Humanos (ComIDH e CorteIDH) e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), todos organismos legitimados a dar a interpretação precisa aos ditames dos respectivos tratados internacionais sobre a matéria.

A força dos precedentes de tais órgãos é crescente no âmbito internacional, embora ainda apresente pontos de discussão, como exposto anteriormente. 3 Conforme Mac-Gregor e Möller, “a interpretação empreendida pelo Tribunal interamericano sobre as disposições convencionais adquire a mesma eficácia que possuem elas próprias”. 4 Portanto, trata-se de fortalecer o fenômeno denominado “diálogo de fontes” 5 ou “diálogo entre jurisdições”, 6 que propicie uma real importância às decisões dos tribunais internacionais com reflexo no âmbito interno, de modo a superar a “internacionalização ambígua ou imperfeita dos direitos humanos”. 7

Portanto, este capítulo almejará explorar o seguinte problema: qual o conteúdo do direito ao recurso no processo penal? Diante desse questionamento, surgem perguntas reflexas: 1) quem é o titular de tal direito?; 2) qual sua extensão ou em quais casos pode ser exercido?; 3) qual sua amplitude ou o que pode ser impugnado?; 4) quem deverá julgar o recurso?; 5) em qual momento ele deve poder ser exercido? Por certo, vale ressaltar a importância do item 3 deste capítulo (amplitude da impugnação), o qual, juntamente às considerações que serão expostas no capítulo 3 posteriormente (o controle da sentença e sua necessária amplitude), apresentará e fundamentará a construção central desta tese: a intrínseca relação entre o direito ao recurso como questionamento da sentença condenatória e a proteção da presunção de inocência do acusado, essencialmente no que diz respeito à superação da dúvida razoável por meio do controle do juízo sobre as provas produzidas.

Contudo, antes de se ingressar na estruturação do conteúdo do direito ao recurso no processo penal, impõe-se a problematização de argumento comum na doutrina acerca da temática, segundo o qual é inviável a construção teórica de um esquema conceitual dos recursos, o que somente se estruturaria a partir da disciplina legal ordinariamente regulada. 8 Nesse diapasão, Barbosa Moreira afirma que “não há nenhum céu de puras essências, onde se logre descobrir um conceito de recurso anterior ao que revela o sistema da lei”. 9 Partindo-se de tal pressuposto, esvazia-se por completo o objetivo deste capítulo, pois, no máximo, seria possível uma descrição do conteúdo do direito ao recurso com base na regulamentação prevista pelo ordenamento brasileiro, ou seja, tornar-se-ia inviável a proposição de um modelo recursal a partir de aportes doutrinários e de jurisprudência internacional. Por certo, não se pode concordar.

Em sentido diverso, esta tese parte da premissa de que o direito processual penal clama por um fortalecimento científico e dogmático de suas categorias próprias. 10 Diferentemente do âmbito material do direito criminal, que constrói ao longo da história conceitos autônomos e independentes (ainda que influenciados pela regulamentação legal), a doutrina processual reproduz há muito uma dependência quase completa ao texto legislado, 11 que reduz o processo penal a mera opção política de discricionariedade legislativa. Do mesmo modo que o direito penal substancial, o âmbito processual necessita de construções científicas sólidas, que apresentem bases essenciais da teoria do processo penal alheias à legislação ordinária. 12 Ou seja, o direito processual penal precisa construir e aprimorar a sua teoria dogmática, que deve existir com independência ao ordenamento legislado (ainda que influenciada por ele).

Tal visão aporta consequências para o estudo do objeto desta tese em dois sentidos. Conforme Yáñez Velasco, o direito fundamental ao recurso “não pode existir em consequência à atividade legislativa, mas com anterioridade a ela”. 13 Assim, por um lado, pensa-se que é viável a estruturação teórica de um modelo impugnativo com parâmetros mínimos para a efetivação do direito ao recurso sobre a condenação, 14 o qual, à primeira vista, é aplicável (e necessário) em qualquer ordenamento jurídico-penal, especialmente àqueles que aderiram à normativa internacional acerca da temática. Evidentemente, não se propõe que todos os países adotem idêntica sistemática, 15 mas se delineiam elementos mínimos que devem ser respeitados. Por outro lado, impõe-se uma análise restritiva das cláusulas de abertura contidas nas previsões acerca do direito ao recurso no PIDCP e na CEDH.

Ambos os diplomas convencionais reconhecem o direito ao recurso, mas determinam que sua regulamentação se dará “conforme prescrito em lei”: 16 “Toda pessoa declarada culpada por um delito terá o direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei” (art. 14.5, PIDCP); “Qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados pela lei.” (art. 2º, protocolo adicional 07, CEDH). 17 Cumpre frisar, desde já, que não há restrição semelhante no texto previsto na CADH (art. 8.2.h).

Diante de tal condicionamento, parte da doutrina afirma que o recurso é um “direito de configuração legal”, o que permite ao legislador ordinário ampla discricionariedade acerca da sua regulamentação ou, inclusive, da sua própria existência. 18 Contudo, ao menos em relação à possibilidade de abolição do referido direito, esses mesmo autores, em sua maioria, destacam distinção entre as esferas processuais, afirmando que, em âmbito penal, impõe-se sua existência, 19 ainda que passível de livre regulamentação ordinária. 20

Em razão dessa problemática, o Comitê de Direitos Humanos da ONU (CDHONU), ao analisar a redação do art. 14.5 do PIDCP, assentou reiterada 21 posição na Observação Geral 32 de que “a expressão ‘conforme prescrito em lei’ no referido artigo não tem por objeto deixar à discricionariedade dos Estados Partes a própria existência do direito ao recurso, visto que ele é um direito reconhecido pelo Pacto e não meramente pela legislação interna”. 22 Ou seja, a consagração do direito ao recurso sobre a condenação não é uma questão de simples discricionariedade político-legislativa, mas uma imposição convencional que garante seu reconhecimento e veda sua abolição direta ou latente, por indevidas restrições e exceções. 23

Desse modo, conclui-se que “todas as expressões que atraem aquela configuração ou mediação legal (‘conforme as leis’, ‘segundo a lei’) devem ser entendidas, portanto, como obrigatórias, nunca livres discricionariedades criativas”. 24 Assim, segundo posição assentada pelo CDHONU, “a expressão ‘conforme o prescrito em lei’ se refere, na verdade, à determinação das hipóteses em que um tribunal superior realizará a revisão, assim como à determinação do tribunal que se encarregará disso, em conformidade com o Pacto”. 25

Então, afirmada a posição de que o direito ao recurso sobre a condenação existe independentemente da regulamentação empreendida pelos Estados-partes em seus ordenamentos, questiona-se: como tornar efetivo o reexame de decisões às quais não são previstos recursos na legislação ordinária? Aqui, debate-se intrincada problemática que diz respeito à autoaplicabilidade dos direitos fundamentais. 26

Por um lado, há doutrina que ressalta a incapacidade de o reconhecimento convencional do direito ao recurso em tratados internacionais, ainda que ratificados pelos Estados, de criar mecanismo recursal inexistente na legislação ordinária. 27 Sustenta-se que, embora exista um direito fundamental, “um recurso se constitui, antes de tudo, como um ato que não pode estar desprovido de procedimento legal”. 28 Posição semelhante foi afirmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 79.785, de 2000, 29 e reiterada no RHC 79.785 , de 2000, no AG. Reg. no AG. Instr. 601.832, julgado em 2009. Nesta segunda decisão, negou-se a possibilidade de interposição de apelação diante de condenação proferida em julgamento originário por Tribunal Regional Federal, afirmando-se que “não procede, assim, a tese de que a Emenda Constitucional 45/04 introduziu na Constituição uma nova modalidade de recurso inominado, de modo a conferir eficácia ao duplo grau de jurisdição”. 30

Por certo, em um primeiro momento, é obrigação, “um dever imediato e incondicional” 31 dos Estados-partes adotar medidas ativas com o objetivo de assegurar em seus respectivos ordenamentos o respeito aos direitos reconhecidos convencionalmente (CADH art. 2; PIDCP art. 2, § 2º). 32 Nesse sentido se posicionou o CDHONU, no caso Sobhrai v. Nepal, julgado em 2012: “O Comitê lembra o Estado-parte de suas obrigações conforme o artigo 2, parágrafo 2º do Pacto, em que se determina que o Estado é obrigado a tomar as medidas necessárias e adotar uma legislação apropriada para dar efeito aos direitos reconhecidos no presente Pacto. Nos casos em que a lei nacional não for conforme ao Pacto, emendas apropriadas a tal lei devem ser adotadas”. 33

A dificuldade se coloca, todavia, diante da existência ou não de coercibilidade da determinação do órgão internacional ao Estado-parte. Conforme Daniel Pastor, as decisões da CIDH começaram a ser cumpridas na Argentina quando houve uma possibilidade concreta de sanção em caso de desatenção. 34

Assim, em caso de inércia, aparte das discussões sobre a adoção de teoria monista ou dualista acerca da incorporação dos tratados internacionais, 35 o § 1º do art. da CF é claro ao determinar que: “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, o que, segundo Ingo Sarlet, realiza-se também na “garantia do duplo grau de jurisdição”. 36 Tal consequência se aplica, por certo, igualmente aos direitos previstos nos tratados internacionais, pois, para Gustavo Badaró, “uma vez em vigor, os direitos convencionais nela protegidos devem ser aplicados perante todos os órgãos estatais, inclusive os do Poder Judiciário, sem que haja necessidade de edição de lei ou de ato administrativo”. 37 Nesse sentido posicionou-se a CorteIDH no parecer consultivo 7 de 1986, no qual, em análise do direito de resposta, determinou-se que: “a tese de que a frase ‘nas condições que estabeleça a lei’ utilizada no artigo 14.1 somente facultaria aos Estados Partes a criação por lei do direito de retificação e resposta, sem obrigar a sua garantia enquanto o ordenamento jurídico interno não o regule, não se conforma com o ‘sentido ordinário’ dos termos empregados, nem com o contexto da Convenção”. 38

Diante do exposto, sustenta-se que o direito ao recurso sobre a condenação não pode ser esvaziado e ter seu exercício impedido em razão da inércia do legislador. 39 Analisando especificamente o direito ao recurso previsto no artigo 8.2.h da CADH, a CorteIDH, no caso Mendoza e outros v. Argentina, de 2013, assentou: “Se trata de uma garantia do indivíduo frente ao Estado e não somente de um guia que oriente o desenho dos sistemas recursais nos ordenamentos jurídicos dos Estados-partes da Convenção”. 40 Ou seja, conforme Ferrer Mac-Gregor, seus dispositivos não são meras normas pragmáticas, visto que a CADH “tem aplicação direta em todos seus preceitos quando o Estado americano tenha lhe firmado, ratificado ou aderido”. 41

Pensa-se, portanto, que, nos casos em que o ordenamento não apresente recurso cabível previsto em suas leis ordinárias em razão de inércia do Poder Legislativo, o judiciário deverá tomar as medidas para garantir a efetividade do direito ao recurso sobre a condenação. Segundo Gustavo Badaró, “o art. 8.2.h da CADH e o art. 14.5 do PIDCP são suficientemente específicos para serem aplicados pelos tribunais no caso concreto”, de modo que o autor propõe a utilização dos recursos ordinário constitucional (ao STJ e STF) e embargos infringentes (em casos de competência originária no STF). 42 Assim, em sentido contrário à posição assentada pelo STF nas decisões expostas anteriormente, pensa-se que deve ser admitida a interposição de recurso inominado, utilizando-se por analogia o procedimento de recurso diverso, mais adequado ao caso em análise, relativizando-se o princípio da taxatividade em prol da efetividade do direito ao recurso do condenado. 43 Tais problemáticas serão analisadas nesta tese no item acerca da extensão do direito ao recurso e suas eventuais exceções, momento em que serão propostas alternativas à ausência de impugnação legalmente regulada. 44

O essencial, ao final dessas problematizações prévias ao estudo específico de cada elemento do conteúdo do direito ao recurso, é consagrar a sua existência autônoma e prévia à eventual regulamentação realizada pelo legislador interno. Nesse diapasão, é possível e necessária a estruturação teórico-dogmática dos contornos mínimos para a efetividade do direito ao recurso sobre a condenação, o qual determinará não só a postura a ser adotada pelo legislador em eventuais reformas, mas de igual modo a garantia do seu exercício pela atuação direta do Poder Judiciário.

2.1.Titularidade do direito ao recurso no processo penal: a consagração ao imputado e o consequente regime jurídico diverso ao acusador

Em um primeiro momento, deve-se analisar quem é o titular do direito ao recurso no processo penal, ou seja, a qual sujeito ele pertence ou por quem pode ser exercido. Diante de tal problema, este tópico desenvolverá aspectos iniciais, determinando o titular do referido direito, mas, em argumentação central desta tese, explorará em seus subtópicos a intrínseca distinção de premissas e, como consequência, o diverso regime jurídico do recurso da acusação. Isso é primordial no estudo das contribuições propostas nesta tese, que se direcionam fundamentalmente a garantir efetividade ao recurso defensivo, o que, somado à referida diferenciação de regime, obstaculiza o transplante das ideias apontadas ao sistema recursal da acusação.

Inicialmente, é primordial distinguir aqueles sujeitos que, conforme a legislação ordinária, possuem legitimação para determinado recurso e quem abstratamente é titular do direito ao recurso. A partir de confusão entre tais categorias, afirmar-se-ia que “está legitimado para recorrer todo aquele que seja parte no processo”, de modo que “a titularidade do direito é de quem foi parte na fase processual que ocasionou a decisão que se pretende impugnar”. 45 Conforme fundamentar-se-á em detalhe no subtópico a seguir, há uma necessária e importante distinção entre o direito ao recurso do condenado e a possibilidade recursal autorizada pela legislação ordinária ao acusador, visto que esta, por exemplo, não é infranqueável ao legislador, podendo ser restringida ou suprimida.

Em relação ao direito ao recurso no processo penal, os textos convencionais são claros ao determinar que “toda pessoa declarada culpada por um delito terá o direito de recorrer [...]” (art. 14.5, PIDCP) e “qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior [...]” (art. 2º, prot. adic. 7, CEDH). Embora a CADH não aponte expressamente tal limitação (“durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas” – caput do art. 8.2), afirma-se que, em interpretação sistemática, resta claro que um tratado internacional, nos termos do referido diploma, tem a função de consagrar direitos às pessoas frente ao poder estatal. 46

Diante disso, a partir da leitura direta das normas convencionais, deve-se reconhecer que o titular do direito ao recurso no processo penal é o condenado. 47 Conforme Gustavo Badaró, “o titular de tal direito é todo o acusado que foi condenado por uma sentença ou acórdão”. 48 Contudo, em certas hipóteses (que serão estudadas posteriormente), 49 o acusado ainda não condenado ou até absolvido terá direito ao recurso, de modo que se mostra mais adequado afirmar que o seu titular é o imputado na persecução penal, 50 embora a sua extensão deva ser analisada em específico. Assim, em termos mais amplos, afirma Julio Maier: “a garantia ampara, em princípio, toda pessoa contra a qual o Estado decide aplicar uma consequência jurídico-penal”. 51

Portanto, o direito ao recurso no processo penal possui “um beneficiário – a pessoa imputada – e um obrigado a sua prestação – o Estado-parte”. 52 Ressalta-se, desde já, que elemento comum aos três diplomas convencionais citados é a condição para reconhecimento do referido direito de “ser pessoa”, ou seja, os preceitos de direitos humanos são “de aplicação aos seres humanos ou de existência visível, e historicamente tiveram a finalidade de proteção contra os abusos do Estado”. 53 Vale apontar a íntima conexão de tal argumentação com o fundamento teórico-dogmático sustentado anteriormente nesta tese, conforme o qual o recurso se concretiza como uma garantia dirigida à proteção do acusado no processo penal, pela efetivação de seus direitos fundamentais, de controle e limitação do poder punitivo estatal.

Duas situações carecem de análise detida: a atuação do advogado e do membro do Ministério Público em favor da defesa. Embora o defensor técnico do acusado possua legitimidade própria para recorrer, 54 não se pode afirmar que há titularidade compartilhada do direito ao recurso. Como exposto, este abstratamente concebido é categoria distinta à legitimação em concreto dos recursos definidos na lei ordinária. Por outro lado, a hipótese em que o acusador interpõe recurso em favor do réu, cujo interesse impugnativo é discutido na doutrina, mas admissível diante da submissão do MP à legalidade (e não em razão de uma inviável imparcialidade), 55 também atestaria situação diversa à titularidade do direito ao recurso, que, como se aprofundará posteriormente, não se coloca em relação ao acusador no processo penal.

Por fim, importante questão assentada em decisões dos órgãos internacionais de direitos humanos atesta que a possibilidade de interpor o recurso precisa estar disponível de modo independente ao seu titular, o imputado, sem condicionamento à prévia autorização do julgador ou do membro do MP. Conforme o TEDH, no caso Gurepka v. Ucrânia, de 2005, em que se analisou a adequação de espécie impugnativa que só poderia ser iniciada pelo promotor ou por uma moção do presidente da Corte superior, “diante do fato de que tal procedimento não era diretamente acessível à parte e não dependia de sua iniciativa e seus argumentos, a Corte considera que tal remédio não era suficiente para as finalidades da Convenção”. 56 De modo semelhante, o Comitê de Direitos Humanos da ONU, no caso Bandajecsky v. Belarús, afirmou que uma impugnação caracterizada como extraordinária e dependente da discricionariedade do julgador ou promotor para sua interposição “não pode ser caracterizada como um ‘recurso’ para os fins do artigo 14, parágrafo 5º, e que tal determinação foi violada”. 57

2.1.1.Direito ao recurso do acusador? Apontamentos introdutórios para o desvelamento da distinção de premissas

Assentada a afirmação de que o titular do direito ao recurso no processo penal é o imputado e que tal fato se dá em íntima relação com a sua consagração como garantia de controle e limitação do poder punitivo estatal, impõe-se a análise de suas consequências às premissas do regime recursal criminal. Em um primeiro momento, este subtópico traçará as distinções existentes entre tal modelo e eventual mecanismo impugnativo cabível ao acusador para o reexame de uma absolvição. Pensa-se que, em razão de intrínseca diferenciação de elementos essenciais, suas lógicas e eventuais fundamentações não podem ser compartilhadas. Assim, é importante perceber que as construções e propostas desta tese (tanto em suas bases estáticas – parte 1 – quanto em suas consequências dinâmicas – parte 2) não podem ser transplantadas ao modelo impugnativo do acusador, visto que se desenvolvem a partir da lógica recursal defensiva.

Depois, questionar-se-á se existe um direito ao recurso do acusador em razão da insatisfação de sua pretensão, possibilitando-se, por exemplo, o reexame de uma absolvição. Ademais, abordar-se-á, ainda que de modo introdutório em razão dos diversos objetivos desta tese, a proposta de limitação ao recurso do acusador sobre a absolvição.

2.1.1.1.Sobre as premissas diversas do recurso da acusação e a consequente configuração de um regime impugnativo distinto

A consagração do direito ao recurso no processo penal, nos termos propostos nesta tese, acarretará consequências à estruturação procedimental do juízo recursal, 58 fundamentalmente em razão da necessária amplitude do reexame (item 2.3) para a efetividade do controle a ser realizado sobre a decisão do juiz de primeiro grau. Como visto anteriormente, tal afirmação se estrutura a partir da premissa de que o titular do direito de impugnação é o imputado, essencialmente direcionado à sentença condenatória. Assim, questiona-se: os fundamentos desenvolvidos nesta tese e suas consequentes propostas podem ser transplantadas ao regime recursal da acusação?

Além do já exposto reconhecimento, em sede normativa nos diplomas convencionais, direcionar-se exclusivamente ao sujeito acusado, 59 pensa-se que, em essência, tais regimes partem de lógicas intrinsecamente distintas. Nesse sentido, aponta-se que os recursos defensivo e acusatório são “ontologicamente diferentes”, 60 pois este “careceria de análoga transcendência e não teria por que gozar da mesma plenitude”. 61 Assim, conforme Jaques Penteado, “o arguido merece um tratamento legal diverso daquele proposto para o acusador em face do princípio do duplo grau de jurisdição”. 62

E o ponto fundamental, pedra de toque do processo penal, que emana reflexos para todas as fases da persecução criminal, é a presunção de inocência. 63 Em seu viés de regra de juízo, 64 impõe como standard probatório a necessidade de provas incriminatórias além da dúvida razoável, 65 o que determina não só o momento do sentenciamento em primeiro grau, mas é primordial ao reexame no juízo recursal. 66 Para Giulio Illuminati, “embora a complexidade do fenômeno analisado, a regra de juízo se mantém invariável inclusive no procedimento de impugnação”. 67

Desse modo, no momento da decisão do recurso, em razão da presunção de inocência, a reforma da condenação para absolvição se impõe a partir da fragilização do juízo anterior com base no reconhecimento da dúvida razoável. Contudo, o sentido inverso requer a supressão da dúvida de modo a permitir a desvirtuação da presunção de inocência, o que deve requerer o avanço sobre maiores barreiras epistêmicas. 68 Ou seja, resta claro que a lógica recursal é distinta tendo em vista tais diferentes mecanismos, o que é ressaltado por Calderón Cuadrado ao atestar que se impõe um diferente tratamento entre alterar-se “da dúvida para a certeza” e “da certeza para a dúvida”. 69

A partir da referida diferença na tutela da liberdade em razão da presunção de inocência, 70 torna-se plenamente legítimo o incremento do poder do tribunal revisor para modificar uma condenação, em oposição aos rígidos limites que devem ser impostos para o reexame de uma absolvição. 71 Portanto, “é perfeitamente admissível a construção de um recurso assimétrico em função de quem for o recorrente”. 72 Segundo Daniela Chinnici, “a configuração do papel das partes na apelação não pode ser idêntica em relação ao Ministério Público e ao imputado”, o que impõe a “delineação de uma apelação distinta conforme se trate de impugnação da sentença de absolvição ou de condenação”. 73

Tal afirmação trará consequências para a estruturação do direito ao recurso em sua visão dinâmica de impacto ao procedimento do juízo recursal em segundo grau. Por exemplo, eventual relativização do princípio da imediação, a partir da reprodução de gravações audiovisuais para permitir o reexame em sede recursal, somente poderia ser autorizada em benefício do acusado: 74 “passar da dúvida que acarreta na maioria dos casos uma sentença absolutória para a, denominada com clara e consciente imprecisão, certeza da condenação não é possível sem imediação”, mas o sentido contrário é admissível, sob pena de “ir contra o direito fundamental do condenado a recorrer da sentença condenatória”. 75

Diante do exposto, conclui-se e reitera-se que esta tese tem como objetivo analisar o direito ao recurso no processo penal, o qual se …

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20 de Maio de 2024
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